Financiamento de campanha

Crowdfunding eleitoral, por que não experimentar?

Autor

  • Ana Paula de Barcellos

    é sócia-consultora do escritório Barroso Fontelles Barcellos Mendonça & Associados e professora titular de Direito Constitucional da Uerj. Tem mestrado e doutorado em Direito Público pela Uerj e pós-doutorado pela Universidade Harvard.

7 de julho de 2014, 14h00

No último dia 22 de maio, o Tribunal Superior Eleitoral entendeu, ao analisar consulta proposta pelo deputado Jean Wyllys, que o crowdfunding eleitoral, ou financiamento coletivo, seria inválido no país. Crowdfunding é o termo utilizado para designar a prática pela qual determinada pessoa (física ou jurídica) arrecada recursos de forma amplamente pulverizada, em geral se valendo de plataformas na internet, a fim de financiar algum tipo de projeto. Os exemplos são variados: o financiamento coletivo tem sido usado para viabilizar o desenvolvimento de novas tecnologias (como as impressoras 3D), custear viagens de voluntários e outras iniciativas beneficentes, ou ainda para fins eleitorais. Aparentemente, a decisão do TSE não suscitou maiores reações ou repercussões, nem mesmo dentro da corte, que se manifestou de forma unânime. O crowdfunding é um fenômeno novo e certamente não é singelo, mas, por isso mesmo, as razões apresentadas na decisão do TSE merecem uma reflexão mais detida.

A decisão do TSE apresenta quatro fundamentos principais para afastar a possibilidade do crowdfunding eleitoral. Em primeiro lugar, se alega que ele não seria possível pois não está autorizado pela lei. Apenas a arrecadação de doações “em sítio do candidato, partido ou coligação na internet” é prevista e, portanto, permitida. Em segundo lugar, o intermediário, responsável pela arrecadação no financiamento coletivo, poderia vir a ser remunerado, o que, a juízo da corte, desvirtuaria “o próprio conceito da doação eleitoral”. Em terceiro lugar, a corte afirmou que “a arrecadação de doações coletivas normalmente é acompanhada de programas de recompensa”, o que também não seria permitido na seara eleitoral. Por fim, o TSE manifestou desconforto com a questão da transparência, já que a emissão do recibo ao doador não poderia ser delegada a terceiros, nem se poderia reunir diversas doações em um único recibo (no caso, dirigido ao intermediário encarregado do financiamento coletivo).

O tema do financiamento eleitoral é sensível por sua conexão direta com a ameaça de abuso de poder econômico. A legislação eleitoral tem tentado minimizar esse risco tanto sob a perspectiva da oferta de recursos – estabelecendo regras sobre doações e prestação de contas – quanto sob a ótica da demanda, em um esforço de limitar a publicidade e reduzir, assim, o custo das campanhas eleitorais. Mas como compreender o financiamento coletivo nesse contexto? Algumas questões parecem relevantes.

Em primeiro lugar, o argumento de que a falta de previsão legal específica inviabilizaria essa modalidade de doação parece um excesso. A regra constitucional continua sendo a da liberdade de modo que as restrições às liberdades das pessoas é que devem ser previstas na lei, e interpretadas de forma estrita, e não o oposto. É verdade que a Lei 9.504/97 não trata de crowdfunding, mas ela prevê expressamente as doações via internet por meio de “mecanismo disponível em sítio do candidato, partido ou coligação na internet”. O TSE teria competência normativa para regulamentar detalhes operacionais do financiamento coletivo, sendo que já existe resolução específica da corte disciplinando a arrecadação de recursos através da internet. A lei prevê inclusive que os candidatos e partidos não serão responsabilizados por fraudes ou erros ocorridos no âmbito de doações pela internet da qual não tenham conhecimento.

Em segundo lugar, a lei autoriza de forma específica o uso de cartão de crédito nas doações pela internet, de modo que o argumento de que não se poderia cogitar um intermediário entre o doador e o candidato também não se sustenta. Ademais, qual seria o problema de o organizador do financiamento coletivo ser remunerado, uma vez que o valor da remuneração fosse claramente divulgado de forma prévia, e, afinal, obedecido? Os cartões de crédito também não cobram taxas por seus serviços? E tantas outras pessoas físicas e jurídicas que prestam serviços relacionados com as eleições também não cobram pelo trabalho? Por que a possibilidade de o organizador cobrar pelo serviço prestado seria um problema em si?

Em terceiro lugar, a decisão parece revelar um grande desconforto com as novas tecnologias. A afirmação de que o crowdfunding seria normalmente acompanhado por programas de recompensa não corresponde propriamente à dinâmica do fenômeno. O financiamento coletivo é utilizado no contexto de projetos com fins lucrativos, mas também em iniciativas filantrópicas e para fins eleitorais. No caso de doações eleitorais, por evidente, qualquer tipo de contrapartida ao doador seria claramente vedada pela legislação, sequer havendo necessidade de maiores questionamentos sobre o ponto. Também as preocupações manifestadas quanto à transparência, embora da maior relevância, não correspondem à realidade das operações na internet. Os saques na boca do caixa, os depósitos em espécie não identificados e as malas de dinheiro existem no mundo físico, mas não são viáveis, como regra, na internet. Na realidade, operações financeiras online podem ser rastreadas com muito maior facilidade e precisão do que operações físicas, e eventual regulamentação pelo próprio TSE poderia facilmente exigir o registro individualizado e pessoal de cada doação e assegurar o respeito aos limites quantitativos permitidos de doações.

Por fim, e este talvez seja o ponto mais importante, o crowdfunding, ainda que carregue os mesmos riscos inerentes a qualquer doação eleitoral, traz, por outro lado, um potencial relevante de fomento à participação popular e a formas alternativas de financiamento eleitoral, que não deveria ser ignorado. É verdade que o crowdfunding pode apenas vir a replicar a prática de financiamento eleitoral existente no país. Mas também é verdade que ela pode introduzir um elemento novo. O financiamento coletivo permitiria que as pessoas em geral, fora das estruturas partidárias, se mobilizassem para apoiar determinada candidatura com a qual se identificassem do ponto de vista ideológico, tudo no âmbito de uma plataforma com a qual estão acostumadas: a internet. Sobretudo jovens. De outra parte, o financiamento coletivo poderia vir a ser um meio de obter recursos para aquelas candidaturas que têm menos acesso aos doadores tradicionais, justamente porque tem menos chances de êxito. A internet oferece oportunidades interessantes exatamente aos grupos que não contam com o apoio específico de poderes econômicos ou sociais.

O financiamento coletivo dificilmente desaparecerá, de modo que é provável que a questão volte a ser discutida no futuro. O novo sempre traz um certo desconforto mas é preciso, ao menos, examinar com cuidado seu potencial e, quem sabe, experimentar.

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    é professora de Direito Constitucional da UERJ, pós-doutora pela Universidade de Harvard, doutora e Mestre pela UERJ e sócia-consultora do escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados.

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