Paradoxo da Corte

Cruel dilema do advogado. Recorrer a quem? Ao bispo?

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1 de julho de 2014, 8h00

Nos idos da década de 90, o eminente ministro Eduardo Ribeiro, então assíduo palestrante na Associação dos Advogados de São Paulo, chegou a afirmar, em tom crítico, em mais de uma oportunidade, que as decisões de inadmissão do trânsito dos recursos especiais, proferidas pelo TJ-SP, eram as mais lacônicas das Cortes brasileiras.

Passados 20 anos, tal anomalia, como é notório, perdura nos dias de hoje para frustração dos advogados de um modo geral. A única alteração que se observa de tempos em tempos se limita à atualização (mera atualização) dos dois ou três precedentes do STJ, invocados no ato decisório à guisa de fundamentação, quase sempre para negar seguimento ao recurso especial.

Em regra, em duas laudas, prevalece o velho chavão: “a douta Câmara analisou a causa em consonância às exigências legais, examinando todas as questões suscitadas e fundamentando o acórdão, nos limites em que proposta a demanda”; ou “… Observe-se não ter sido demonstrada sua ocorrência, eis que as exigências legais na solução das questões de fato e de direito da lide foram atendidas pelo acórdão ao declinar as premissas nas quais assentada a decisão”.

Ainda, quando o recurso é também escudado na alínea “c”, vem a seguinte justificativa padronizada: “Nem mesmo pela alínea ‘c’ o recurso pode ser admitido. O dissenso jurisprudencial deve ser demonstrado de forma analítica, mediante o confronto das partes idênticas ou semelhantes do acórdão recorrido e daqueles eventualmente trazidos à colação, na forma exigida pelo artigo 541, parágrafo único, do CPC, com a transcrição dos trechos que configurem o dissídio, mencionadas as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados…”. Ponto final!

Ora, o simples cotejo da motivação da decisão que inadmite o processamento do recurso com o que normamente consta dos autos e com a própria argumentação recursal evidencia que foi aquela proferida de modo genérico, prestando-se, praticamente, a ser juntada em qualquer outro processo.

Em outras palavras, não é difícil verificar que tal ato decisório descortina-se idêntico a inúmeros outros proferidos pelo TJ-SP, em causas que não guardam qualquer similitude jurídica. A referida decisão, pois, emerge absolutamente análoga a tantas outras, fazendo até crer, com o devido respeito, que não foram examinadas mais a fundo as razões deduzidas no respectivo recurso especial.

Ressalte-se que, enfrentando esta mesma situação, a 2ª Turma do STJ, no julgamento do AgRg. no AgInstr. 1.264.053, proveniente também do TJ-SP, decidiu que: “1. A matéria agitada no recurso especial, cuja caminhada foi obstada, merece ser reapreciada no âmbito desta Corte de Justiça. Diante disso, necessário se faz determinar a subida do recurso especial, sem prejuízo do juízo de admissibilidade definitivo que será oportunamente realizado neste tribunal. 2. Ademais, o despacho de admissibilidade negativo, exercido pelo tribunal de origem, é extremamente genérico. Este fato, por si só, prejudica o exercício do direito de defesa da parte, que fica impossibilitada de compreender quais os pontos específicos que obstaram a subida do apelo…”. De aduzir-se que, no corpo desse importantíssimo e corajoso aresto, de relatoria do ministro Humberto Martins, lê-se que: “… Por fim, não custa lembrar que quando o tribunal de origem afirma que os fundamentos do recurso especial não são suficientes para infirmar as conclusões do acórdão, ele acaba por adentrar na questão de fundo e a exercer juízo de valor que compete a esta Corte Superior…”.

Lamento, no entanto, que a correta orientação assentada no pronunciamento acima transcrito não seja frequente.

Na verdade, diante de decisão monocrática de indeferimento do recurso especial, visto que contra ela incabível embargos de declaração (e. g.: AgRg no AREsp. 498.846-RJ), resta ao advogado preparar as razões de agravo, fazendo verdadeiro exercício de adivinhação. Sim, porque, como o ato decisório agravado carece de fundamentação, ainda que mínima, não há como enfrentar, de modo concreto e objetivo, a inexistente ratio decidendi.

Na maioria das vezes, procurando chamar a atenção do relator, perante o STJ, o advogado, ao elaborar o agravo, reporta-se, de forma resumida, às razões do especial. Em seguida, reafirma que houve contrariedade a tal regra da legislação federal e, ainda, se for o caso, que o acórdão recorrido, conforme procurou demonstrar, aparta-se de precedente de outro tribunal ou da jurisprudência do próprio STJ. Observe-se que esta argumentação é o máximo que o advogado pode fazer, procurando quase sempre adivinhar os motivos determinantes da negativa de seguimento do recurso especial.

E aí vem o pior. Logo cedo, ao abrir as suas respectivas intimações, o advogado é surpreendido, por paradoxal que possa parecer, com o seguinte ato decisório do relator no STJ: “O agravo não merece conhecimento… As razões do agravo apresentado não impugnaram, de modo consistente, os fundamentos da decisão agravada. Ressalte-se que não bastam alegações genéricas para refutar os argumentos da decisão que inadmitiu o recurso especial. Conforme orientação pacífica desta Corte, as razões do agravo devem demonstrar o desacerto da decisão contra a qual se insurge, sob pena de não conhecimento do recurso (Súmula 182/STJ)”.

O epílogo do conhecido livro O processo, de Franz Kafka, suscita a reflexão acerca de um julgamento sem que se tivesse assegurado à parte interessada um mínimo de ciência dos fundamentos pelos quais veio a ser condenada. É claro que, na situação vertente, entre a ficção e a realidade não existe qualquer ponto em comum. No romance, emerge a perplexidade; na nossa vida forense fica a interrogação: o que fazer no âmago desse cenário? Recorrer ao bispo?

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