Ideias do Milênio

“As gravadoras têm de se organizar de outra maneira”

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28 de janeiro de 2014, 13h30

Entrevista concedida pelo maestro italiano Claudio Abbado ao jornalista Renato Machado, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30. A entrevista foi reprisada por conta da morte do maestro, no dia 20 de janeiro, aos 80 anos.

A Filarmônica de Berlim é a primeira orquestra do mundo em importância, em tradição de sonoridade romântica, em fama. Dirigir a Filarmônica de Berlim sempre foi o objetivo máximo de todos os maestros. Desde que ela foi fundada, no século passado, os regentes foram de origem alemã ou austríaca. Depois de Hebert von Karajan, aquela figura mítica, quem seria o eleito? Em 89 morria Karajan, caia o muro de Berlim e um estrangeiro, um italiano, foi eleito para subir ao pódio da Filarmônica de Berlim. Não foi a única grande mudança. O maestro Claudio Abbado pediu para sair da orquestra em 2002 e mudou o que era considerado imutável: o som, a composição dos músicos, o repertório, ele acrescentou muita música do século XX, acima de tudo, ele trouxe a orquestra daquele nível quase mitológico para o nível do convívio humano. Eu conversei com o maestro sobre o espaço e a importância da música clássica nesse nosso mundo tão barulhento.

Renato Machado — A tessitura, o som, o resultado sonoro da Filarmônica de Berlim hoje é conhecido por todos. Trata-se de um resultado especial. Fala-se do som Abbado, pode-se falar do som Abbado, do resultado sonoro Abbado.

Reprodução
Claudio Abbado — Podemos falar de um som da Filarmônica de Berlim, que é uma grande tradição desde o tempo de Furtwängler e, posteriormente, de Von Karajan. Esse som caracteriza-se em relação à música romântica, à música do século XIX, por ser muito quente, pleno e expressivo. É um som muito rico. Esse som ainda existe hoje nos momentos certos, nos quais é necessário. Naturalmente, há também um som mais diferenciado quando a orquestra toca uma composição mais contemporânea, mais moderna. Se tocamos música barroca, o som é totalmente diferente. Há anos, havia um som belíssimo e igual para tudo. Hoje, há um som mais diferenciado, mais ligado à música, como acredito que seja certo. Os músicos tocam como se usassem instrumentos barrocos. Não são instrumentos barrocos, mas, quando é necessário, como para Bach, Monteverdi ou Mozart, eles tocam de outra maneira. O vibrato não é o mesmo usado para Tchaikovski, por exemplo. Se necessário, tocamos viola de gamba, flauta doce, címbalo, órgão, com uma orquestra pequena, reduzida ao mínimo.

Renato Machado — Essas mudanças foram feitas lentamente ou os músicos as aceitaram logo?
Claudio Abbado — Para Monteverdi, foi rápido, pois não podíamos fazer de outra maneira. Para Bach, também foi rápido. “A Missa” de Bach, por exemplo, foi tocada sem vibrato, com arco barroco, quatro violinos, um contrabaixo, nem isso, um rabecão, e um pequeno órgão portátil. Realmente sem vibrato algum, com cordas de tripa, não de metal. No ano precedente, tocamos “A Paixão Segundo São Mateus” de uma maneira intermediária. Era uma orquestra reduzida, mas ainda não era…

Renato Machado — Vi em Salzburgo um concerto para flauta de Mozart com uma orquestra pequena.
Claudio Abbado — Uma orquestra pequena e um modo leve e articulado. A articulação da música barroca é totalmente diferente da articulação da música romântica.

Renato Machado — Os músicos aceitaram isso como uma novidade?
Claudio Abbado — Digamos que foi um trabalho que durou alguns anos. Mesmo porque, antes que eu assumisse, havia maestros como Boulez, Harnancourt e Simon Rattle, que ainda não haviam regido a Filarmônica de Berlim. Isso também ajudou a levar a orquestra em uma certa direção.

Renato Machado — O que sempre distinguiu a Filarmônica de Berlim foi a dedicação de seus músicos. Todos eles são professores dos instrumentos que eles tocam.
Claudio Abbado — A Filarmônica de Berlim é uma das poucas orquestras que toca música contemporânea nas suas turnês. Por exemplo, em NY, no Carnegie Hall, tocamos músicas de Luigi Nono e também composições de Riem recentemente na turnê, Wolfgang Riem. Mas, nesta primeira turnê na América do Sul, decidimos tocar de Beethoven a Ravel, Debussy e Mahler. Acho que a 9ª. de Mahler é uma das maiores expressões da música e da orquestra, pois podemos sentir todas as facetas da orquestra.

Renato Machado — Em Salzburgo, no ano passado, a 9ª de Mahler foi um grande evento, e o seu final é cheio de significados e sentidos filosóficos. O senhor poderia falar da importância dessa sinfonia?
Claudio Abbado — Acho que, na evolução de todas as sinfonias de Mahler, essa é a mais profunda, a sinfonia mais completa, na qual encontramos os significados mais profundos da vida e da morte, tudo o que Mahler queria externar. É necessário conhecer bem todos os lieder de Mahler, pois, em certos momentos, são como expressões sem palavras. Podemos pensar numa ópera em uma sinfonia de Mahler.

Renato Machado — A venda de discos clássicos está numa trajetória decrescente. Ao mesmo tempo, as apresentações ao vivo são muito vibrantes, sobretudo quando há jovens presentes. Como o senhor vê essa contradição?
Claudio Abbado — A contradição acontece porque ainda há discos, mas precisamos organizá-los de outra maneira. Tentamos gravar todos os concertos. Gravamos discos a partir de concertos ao vivo, como fizemos com todas as sinfonias de Beethoven. Eu as havia gravado há 15 anos com a Filarmônica de Viena e, agora, as gravei com a Filarmônica de Berlim. É uma nova maneira de tocar Beethoven por minha parte e por parte da orquestra. Concentrei-me nas relações de tempo.

Renato Machado — A propósito, as relações de tempo são controversas.
Claudio Abbado — Antes, falemos dos discos. Na minha opinião, oferecendo ao público discos ao vivo, há muito mais interesse. As gravadoras também têm de entender que é necessário buscar novos caminhos. Hoje, com a Internet e os computadores, podemos fazer discos em cinco minutos. As gravadoras têm de se organizar de outra maneira. É o que estão fazendo. O DVD também será uma nova porta, uma nova imagem.

Renato Machado — O maestro Claudio Abbado foi aos poucos trocando o efetivo da orquestra Filarmônica de Berlim. Havia muitos músicos já na idade da aposentadoria e não houve mais barreiras de nacionalidades. Aos poucos a orquestra foi mudando de rosto, mudando de gestos e mudando de estilo. Os jovens foram tomando conta das estantes. Hoje 80% dos músicos são novos. Todos os musicólogos falam dos tempos de Beethoven. Qual seria a leitura correta desses tempos?
Claudio Abbado — Acho que o mais importante é encontrar uma relação de tempos. Se Beethoven escreve que o metrônomo de um tempo é de 100 para 1/4, e o de outro movimento é de 100 para a metade, esse tempo deve ser igual. Parece-me algo lógico e claro.  Podemos discutir sobre o metrônomo dos tempos de Beethoven. Talvez o metrônomo não fosse exato. Podemos discutir sobre isso, mas, se Beethoven escreve que o 2º movimento, 84, e o final da 8ª sinfonia têm o mesmo tempo de 1/8, que é igual à metade do compasso, o significado é muito claro. Mas é difícil porque existe o hábito de tocar o último tempo muito mais lentamente.

Renato Machado — É um hábito romântico, uma tradição?
Claudio Abbado — É um hábito porque, às vezes, é muito mais cômodo. É um hábito porque, no século XIX e no início do século XX, os adágios eram tocados muito mais lentamente, como se fosse um adágio da época romântica. Um adágio é um pouco mais calmo do que um andante, não é um largo. Como a própria palavra diz, um andante deve “andar”, deve fluir. De fato, os metrônomos de Beethoven o dizem claramente. Às vezes, não é algo fácil de se realizar, sobretudo porque existe esse hábito. Mas, tendo encontrado as relações dos tempos, o importante é fazer música, e não apenas ficar controlando os tempos.

Renato Machado — A contribuição dos jovens é muito importante e o será no futuro. O senhor vê um futuro com mais jovens na música clássica? Existe futuro para a música clássica?
Claudio Abbado — Sem dúvida. A música clássica tem um grande futuro. Os jovens só querem trabalhar da mesma maneira como trabalhamos com a orquestra, ou seja, com paixão pela música, com a possibilidade de fazer música juntos, e não com todos os problemas sindicais. Às vezes, os sindicatos, em vez de ajudarem, prejudicam a música.

Renato Machado — Maestro, uma última pergunta. A decisão tão comentada por todos de deixar a orquestra…
Claudio Abbado — Não vou deixar a orquestra. Às vezes, é preciso entender o que as pessoas dizem. Eu preciso, depois de tantos anos de trabalho com as orquestras do Scala, de Viena e, agora, de Berlim, de um pouco mais de tempo. Acho que todas essas viagens e esses programas diferentes são interessantes, mas é melhor dedicar-se a uma só obra durante um ano inteiro. Assim, é possível aprofundar-se e conhecer melhor uma obra. Depois de 2002, realizarei apenas um projeto por ano, ao qual possa dedicar mais tempo. Isso pode ser com a Filarmônica de Berlim, pois já trabalhamos muito juntos, e eles querem continuar comigo. Portanto, tentaremos realizar um projeto por ano. Para mim, é importante realizá-lo com músicos que querem fazê-lo por paixão pela música.

Renato Machado — Como a sua.
Claudio Abbado — Sim, é justo que seja assim, deve ser uma paixão, um amor pela música, e não apenas um trabalho, uma rotina. Odeio rotinas e hábitos, sobretudo. Se é possível sair disso… Acho que, depois de tantos anos, posso fazer isso. Naturalmente, não é só isso, preciso de mais tempo para os meus filhos e netos, para ler mais, ir à montanha ou ao mar. O problema é que, na 1ª vez, falei em velejar. Os jornalistas escreveram apenas que quero velejar. E é verdade.

Renato Machado — Também é verdade.
Claudio Abbado — Também. Mas a verdadeira razão é que quero ter mais tempo para realizar um projeto. Continuarei a trabalhar com esses músicos.

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