AP 470

"Papel central de Marcos Valério foi forjado por políticos"

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26 de janeiro de 2014, 8h01

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Quando o escândalo apelidado de mensalão chegou ao Supremo Tribunal Federal, ainda na forma do Inquérito 2.245, o advogado Marcelo Leonardo estava em uma luta solitária. Ele apresentou, sozinho, o primeiro pedido para que o caso fosse desmembrado.

Na época os réus ligados ao PT defendiam que todos fossem julgados no STF, pois, diz ele, acreditavam que ali teriam alguma chance. Marcelo Leonardo, porém, alertava aos petistas: “Julgados no Supremo serão condenados e terão mandado de prisão expedido”. Dito e feito.

Foi inclusive sobre seu cliente, o ex-publicitário Marcos Valério, que recaiu a pena mais elevada: 40 anos de prisão e multa de R$ 3 milhões pelos crimes de corrupção ativa, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e formação de quadrilha, que novamente será enfrentada pelo STF nos Embargos Infringentes.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Marcelo Leonardo disse que a corte foi injusta com o ex-sócio da DNA Propaganda. “O Marcos Valério foi profundamente injustiçado. Ele foi transformado em um personagem importante do caso, quando na realidade era o suposto operador do intermediário.”

Professor de Direito Penal na UFMG, o advogado afirma que, na esfera criminal, a relevância maior é de quem detém a posição de comando, regra ignorada no caso do ex-publicitário. “Depois do julgamento, eu não vi ninguém dizer que as penas impostas ao Marcos Valério não eram escandalosas e exageradamente injustas.”

Marcelo Leonardo é especialmente crítico em relação às decisões do STF sobre lavagem de dinheiro, corrupção e peculato. “Nem a denúncia oferecida pelo Procurador-Geral da República narra corretamente uma lavagem de dinheiro, nem havia no processo prova que permitisse um juízo de condenação sobre lavagem de dinheiro.” Quanto à condenação por desvio de recursos do fundo Visanet, diz que o STF ingorou os documentos que comprovam o emprego do dinheiro em publicidade: “As ações de propaganda foram feitas pela agência DNA Propaganda, e há farta documentação nesse sentido”.

Ele classifica de "erro" a decisão da corte pela rejeição ao desmembramento do processo, e diz que o STF dificilmente cometerá esse equívoco novamente. Por enquanto, essa é mais uma previsão de Leonardo que se confirma. No caso apelidado de mensalão tucano e na acusação de cartel em licitações do metrô de São Paulo, o desmembramento foi aceito.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual é a opinião do senhor sobre o julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão?
Marcelo Leonardo — É fora de dúvida que o julgamento da Ação Penal 470 não teve uma tramitação normal e semelhante a outros julgamentos no Poder Judiciário. Isso, pela própria cobertura [jornalística] que se fez em torno do caso, ficou evidente. Desde o início, eu, pessoalmente, como advogado do Marcos Valério, sustentei que, fiel à jurisprudência do Supremo, esse processo deveria ter sido desmembrado. E na primeira vez, fiz esse pedido sozinho, mas naquele momento os acusados diretamente ligados ao Partido dos Trabalhadores trabalharam contra o desmembramento. 

ConJur — Por que os réus do PT defendiam o julgamento em conjunto?
Marcelo Leonardo — Eles acreditavam que o julgamento no Supremo seria diferente. E desde o início eu dizia uma frase: “Julgados no Supremo serão condenados e terão mandado de prisão expedido”. O Supremo não ia perder a oportunidade de, por meio desse julgamento, transmitir um recado para a sociedade brasileira. Perdi a primeira decisão sobre o desmembramento no Supremo por seis a cinco, sendo que o ministro Joaquim Barbosa, como relator, deu voto favorável ao desmembramento.

ConJur — Quando foi isso?
Marcelo Leonardo — Logo no início, 2006 ou 2007. Quando a gente fez esse pedido, nós fizemos um levantamento que revelava que todos os ministros do Supremo já tinham votado, no colegiado ou proferido decisões monocráticas, de forma favorável ao desmembramento. Tenho certeza que daqui para frente o Supremo jamais vai cometer esse erro.

ConJur — Por que o senhor tem tanta segurança quanto a isso?
Marcelo Leonardo — Esta semana já teve uma decisão no caso do cartel [de licitações de trem e metrô em São Paulo] em que o Supremo, seguindo a jurisprudência do tribunal, desmembrou o caso, como tinha desmembrado no que a mídia chama de mensalão mineiro, por decisão do ministro Joaquim Barbosa, atendendo pedido que nós fizemos naquele processo.

ConJur — Dá pra tirar uma lição disso?
Marcelo Leonardo — Aquele voto que o ministro Ricardo Lewandowski deu no início do julgamento, no dia 2 de agosto, quando se decidiu uma Questão de Ordem, e a maioria do Supremo entendeu que era renovação do que antes já havia sido pedido, e por fidelidade à primeira decisão lá de trás manteve a unidade do processo e julgamento, é a orientação que vai ser seguida daqui para frente [Lewandowski votou pelo desmembramento].

ConJur — Marcos Valério teve um julgamento justo?
Marcelo Leonardo — O Marcos Valério foi profundamente injustiçado. Ele foi transformado em um personagem importante do caso, quando, na realidade, era o suposto operador do intermediário. O intermediário seria o Delúbio Soares, que era a pessoa que repassava a ele todas as ordens sobre a quem deveria ser feito pagamento relativo a dívidas de campanha eleitoral. Mas essa pessoa [Marcos Valério] foi colocada em uma posição de maior relevância estrategicamente pela própria classe política.

ConJur — Por que o colocaram nessa posição central?
Marcelo Leonardo — Porque ele era um dos envolvidos que não era político, não era filiado a nenhum partido e não exercia nenhum mandato. A posição desse personagem foi inclusive objeto da criação de algumas expressões, como “Valerioduto”. Como ele próprio questionava: “Porque isso não é o PTduto?”

ConJur — Por que o Marcos Valério não tinha posição central no mensalão?
Marcelo Leonardor — Porque o importante é quem mandou e quem recebeu. Na esfera penal, o intermediário nunca é o importante em uma prática que venha a ser taxada de criminosa.

ConJur — O Marcos Valério recebeu a maior condenação do processo: mais de 40 anos de prisão e multa de R$ 3 milhões. Foi desproporcional?
Marcelo Leonardo — Depois do julgamento eu não vi ninguém dizer que as penas impostas ao Marcos Valério não eram escandalosas e exageradamente injustas. Não vi nenhuma manifestação no sentido diverso, até por se reconhecer que as pessoas que seriam as mais responsáveis pelo caso é que deveriam, se fosse o caso, sofrer penas maiores. E não ele, que figurava como um intermediário.

ConJur — Em que o mensalão alterou a doutrina e a jurisprudência?
Marcelo Leonardo — Tomara que esse julgamento não influa na formação da jurisprudência dos tribunais brasileiros, porque, usando uma expressão de um ministro do Supremo [Luis Roberto Barroso], esse julgamento foi um ponto fora da curva. Algumas das manifestações nos votos dos ministros sobre conceito de lavagem de dinheiro e de utilização da teoria do domínio do fato, não são, do ponto de vista jurídico/penal, as mais adequadas.

ConJur — Qual foi o erro do STF na lavagem de dinheiro?
Marcelo Leonardo — No julgamento, o Supremo admitiu que havia lavagem de dinheiro sem que estivessem narradas na denúncia ou provadas no processo as três fases indispensáveis à sua caracterização. Na lavagem de dinheiro, havia como pressuposto a existência de um recurso de origem ilícita, a realização de operações destinadas a dissimular ou ocultar a existência e a origem desses valores, e, posteriormente, uma atividade destinada a reintroduzir aquele valor na economia formal com aparência de licitude. A denúncia não narra isso e o processo não prova isso.

ConJur — Poderia explicar melhor?
Marcelo Leonardo — O dinheiro saiu de contas bancárias identificadas, de titulares identificados, e foi sacado e entregue a pessoas determinadas, que, inclusive, foram denunciadas. O banco teve o cuidado de identificar os diferentes recebedores e, em razão disso, foi possível a existência do processo. Mas não houve a terceira etapa, que seria propriamente a lavagem do dinheiro que eventualmente estivesse sujo. Nem a denúncia oferecida pelo Procurador-Geral da República narra corretamente uma lavagem de dinheiro, nem havia no processo prova que permitisse um juízo de condenação sobre lavagem de dinheiro.

ConJur — O STF entendeu que os empréstimos ao PT eram fraudulentos.
Marcelo Leonardo — Se o empréstimo fosse fraudulento, não havia dinheiro que tivesse saído do banco, de sua conta, para a conta da agência de propaganda. Ficou provado pela perícia que, nas épocas próprias dos contratos, os valores saíram de contas próprias dos bancos para a conta da agência de propaganda. E foi da conta da agência de propaganda que o dinheiro saiu para o repasse aos parlamentares. Que houve empréstimo, houve. E nesse ponto a SMP&B registrou na sua contabilidade o repasse dos R$ 55 milhões como empréstimo ao Partido dos Trabalhadores. O senhor Delúbio Soares, como diretor tesoureiro do PT, reconheceu que tinha pedido a Marcos Valério o empréstimo, e que os pagamentos que ele relacionou em lista correspondiam àqueles que tinha solicitado. Dizer que esses empréstimos eram fraudulentos não corresponde às fiscalizações do Banco Central, que, contemporâneas aos fatos, registraram os empréstimos e deram a eles uma classificação. Depois reduziram a classificação dos empréstimos pelo risco de não pagamento, que existia evidentemente, depois do escândalo de 2005, quando não haveria mais a menor possibilidade de quitação, porque as agências tiveram que fechar suas portas. 

ConJur — O Marcos Valério dava como garantia para os empréstimos ao PT contratos com o governo. Isso não soa estranho?
Marcelo Leonardo — Os contratos foram objeto de licitação, que foram auditadas pelo Tribunal de Contas da União, sem nenhuma fraude. As agências ganharam pela sua competência.

ConJur — Qual é a opinião do senhor sobre a decisão do STF quanto ao ato de ofício?
Marcelo Leonardo — Esse é um outro problema. A orientação jurisprudencial do próprio Supremo, na Ação Penal em que foi julgado Fernando Collor, dizia que era preciso demonstrar que o funcionário público praticou um ato de ofício em razão da vantagem recebida. Foram denunciados apenas nove parlamentares e dirigentes de partidos políticos, mas a alegação era de que isso contribuiu para aprovar projetos de interesse do governo Lula no Congresso Nacional. Não se aprova projeto só com nove pessoas. Por outro lado, a atividade parlamentar ficou evidenciada por estatísticas, levantamentos, depoimentos de centenas de testemunhas durante o curso do processo dos mais diferentes partidos e origens, tanto da oposição quanto da situação, em que todos diziam que as votações no Congresso Nacional não tinham relação com os recebimentos. Mas o Supremo Tribunal Federal quis entender de forma diferente.

ConJur — Na decisão sobre peculato, a questão central envolve recursos que seriam do Banco do Brasil. O Supremo entendeu que houve desvio de dinheiro para pagar parlamentares, mas há uma série de documentos, inclusive no processo, que demonstram o gasto em publicidade. O STF errou?
Marcelo Leonardo — Quem examinasse a prova do processo sem nenhum pré-julgamento acabaria entendendo em primeiro lugar que não existiram recursos do Banco do Brasil. Os recursos eram da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP), que atendia na época pelo nome fantasia de VisaNet, que é inequivocamente uma empresa privada, e que nela o fundo de incentivo VisaNet não envolvia recursos públicos. De acordo com várias das testemunhas ouvidas no processo e documentos encaminhados ao Supremo pela CBMP, a receita do fundo era decorrente de 1% do rendimento dos cartões da bandeira Visa, destinados à propaganda do cartão Visa. As ações de propaganda foram feitas pela agência DNA Propaganda, e há farta documentação nesse sentido.

ConJur — Como o senhor se sentiu com a decisão do STF?
Marcelo Leonardo — Doía muito para nós, advogados, ouvir ministros do Supremo dizendo que foram repassados R$ 73 milhões e nada foi realizado. Foram quatro repasses. Para cada repasse tinha de haver a comprovação de que o valor anterior foi empregado nas ações de publicidade. Quando se autorizava o repasse seguinte aparecia expressamente mencionado que as ações de incentivo anteriormente realizadas contribuíram para aumentar o número de usuários do cartão Visa. O faturamento do cartão Visa do Banco do Brasil, o OuroCard, tornou-se líder no mercado brasileiro em razão das ações de propaganda. Inúmeras pessoas viram propaganda do OuroCard na televisão, nos jornais e revistas, nas emissoras de rádio, em outdoors, aeroportos, uniforme de atletas, nas camisetas distribuídas para torcida em partidas de diferentes modalidades esportivas, como, por exemplo, no vôlei. Tudo isso foi atividade desenvolvida pela DNA Propaganda para cobrir as tarefas de incentivo, e há substanciosa documentação nesse sentido. Mas não se queria ver isso.

ConJur — Por quê?
Marcelo Leonardo — Porque havia uma versão que devia ser admitida para haver as condenações, para dar exemplo.

ConJur — No caso da DNA, o STF entendeu que as notas fiscais eram inidôneas.
Marcelo Leonardo — Há uma diferença entre inidoneidade de uma nota fiscal para efeito de reconhecimento do documento para fins de fiscalização de natureza tributária e a realização ou não da atividade econômica espelhada naquela nota fiscal. O serviço aconteceu e foi prestado. Nós não podemos tapar o sol com a peneira, porque não podemos esquecer que a maior parte do valor relativa às ações de propaganda desenvolvidas pela DNA envolveu pagamento para veículos de mídia brasileiros, os mesmos que deram cobertura ao julgamento e às condenações. Eles foram os maiores beneficiários dos valores. E isso está documentado. Os veículos de mídia mais conhecidos do Brasil, todos eles, receberam dinheiro da DNA Propaganda a partir das ações de propaganda de interesse da VisaNet.

ConJur — Quando o escândalo explodiu, surgiu uma lista dos beneficiários. Foi ideia sua entregá-la para a Procuradoria Geral da República?
Marcelo Leonardo — Quem decidiu dar essas informações foi o Marcos Valério, com o propósito de colaborar com as investigações. Ele entregou à PGR uma lista com a totalidade dos valores que repassou, a pedido do Partido dos Trabalhadores, com o nome das pessoas recebedoras. Tanto é verdade que não houve ninguém denunciado no processo que não estivesse na lista que ele forneceu. E não se avançou nenhum centímetro além daquilo que estava nos esclarecimentos por ele prestados. Daí nós entendemos que o Supremo foi injusto em não reconhecer a condição de réu colaborador e reduzir as penas impostas ao Marcos Valério, inclusive desestimulando com este exemplo a colaboração do acusado no Brasil.

ConJur — A Folha de S.Paulo disse que no dia 12 de julho de 2005 o senhor participou de uma reunião secreta onde teria nascido a tese do caixa dois. Foi aí que ela nasceu?
Marcelo Leonardo — A narrativa do caixa dois é de um fato verdadeiro. Se forem conferidos os depoimentos prestados por mais de 100 pessoas no curso da Ação Penal 470, vai se verificar que todos os parlamentares dos diferentes partidos que foram ouvidos no processo afirmavam categoricamente que eles tinham conhecimento que o PT havia firmado acordos financeiros com partidos da base aliada para pagar despesas da campanha de 2002 e da campanha de 2004. Isso não foi nenhuma criação. É um fato concreto que veio a ser demonstrado pelo depoimento de inúmeras testemunhas, que no julgamento o Supremo desprezou lamentavelmente.

ConJur — Por que houve tanta insistência no sentido de que teria havido desvio de recursos?
Marcelo Leonardo — A acusação precisava afirmar, no caso, que havia desvio de recursos públicos para poder sustentar as acusações de peculato e corrupção. Isso foi repetido inúmeras vezes para criar a imagem. A gente conhece da história aquela frase: “Reproduza uma mentira N vezes que as pessoas começam achar que ela é verdade”.

ConJur — Mas no julgamento o ministro Joaquim Barbosa disse que não precisaria que houvesse dinheiro público para a ocorrência de peculato. Ele deu até como exemplo o carcereiro que pega dinheiro de um preso.
Marcelo Leonardo — A gente faz a defesa da acusação que está posta no processo. A acusação é que havia desvio de dinheiro público. A defesa fez prova de que o dinheiro não era público e até a própria Polícia Federal, em algumas das perícias, reconheceu que o dinheiro nunca transitou por contas do Banco do Brasil. O pagamento era feito diretamente pela Companhia Brasileira de Meios de Pagamento para a DNA Propaganda, reconhecendo assim que não houve sequer trânsito dos valores pelo Banco do Brasil. Depois de demonstrado isso, aí se procurou um outro caminho, que não era o da denúncia.

ConJur — Fala-se que o dinheiro foi desviado, mas o Banco do Brasil foi atrás da DNA para reaver esses recursos?
Marcelo Leonardo — Eu sei que há uma ação da DNA contra o Banco do Brasil e a VisaNet.

ConJur — O Banco do Brasil deve dinheiro à DNA?
Marcelo Leonardo — Sim.

ConJur — Quanto?
Marcelo Leonardo — Há uma ação em torno disso. Eu não acompanho essa área cível. Eu sei da existência da ação. 

ConJur — Há esperança para o julgamento dos Embargos Infringentes relativos à condenação por formação de quadrilha?
Marcelo Leonardo — Os Embargos Infringentes têm uma limitação. Devem ser com suporte nos votos vencidos. Na atual composição do Supremo, há dois ministros que não votaram esse assunto. Vai depender do voto deles. Há algumas indicações. Os dois ministros, Teori Zavascki e Luis Roberto Barroso, no julgamento do senador Ivo Cassol, votaram pela inocorrência do crime de quadrilha, com argumentos muito semelhantes aos dos votos vencidos, o que nos dá esperança de reverter a decisão quanto a esta imputação. 

ConJur — Em um julgamento como o do mensalão, o conteúdo político é decisivo?
Marcelo Leonardo — Negar isso seria negar o óbvio. Indiscutivelmente o Supremo é um tribunal político.

ConJur — Isso é bom ou ruim?
Marcelo Leonardo — Ficou claro, com o julgamento desse caso e de outros, que o Supremo não tem experiência em julgar Ações Penais. E isso é natural, porque até 2001 o STF praticamente não tinha casos julgados. Vigorava a regra sobre imunidade parlamentar, que exigia licença prévia das Casas Legislativas, que não davam. Somente com a Emenda Constitucional 32 aprovada em 2001 foi dispensada a licença prévia. Aí começaram a tramitar no STF processos envolvendo agentes políticos, especialmente os parlamentares. Era até injusto dizer que “o Supremo nunca julgou e nem condenou ninguém”. As Casas Legislativas não davam a licença. Agora, imaginar que 11 ministros julgam em um ano 60 mil ou 70 mil processos, ou 100 mil processos, como era antes da reforma, é exigir algo humanamente difícil de ocorrer.

ConJur — A transmissão do julgamento pela TV Justiça interferiu no julgamento?
Marcelo Leonardo — Eu sou daqueles que entendem que deve haver a publicidade. A publicidade é um valor do sistema acusatório e existe até para a proteção do próprio acusado. Nós não devemos voltar ao modelo da Idade Média, do julgamento sigiloso, secreto, porque isso pode por em risco as garantias do acusado. Mas a publicidade opressiva só faz mal ao processo penal. Hoje nós temos livros publicados e teses de doutorado sobre mídia e Poder Judiciário, e quase todos os juristas que estudaram esse tema, como o professor Raul Cervini, do Uruguai, tendem a sustentar que há dano à imparcialidade e à independência dos julgamentos submetidos à publicidade opressiva. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio.

ConJur — Há quem defenda que os julgamentos de Ações Penais não sejam transmitidos.
Marcelo Leonardo — Nós estamos com a experiência ainda bem jovem. Mas devemos refletir particularmente sobre a publicidade opressiva, aquela em que o veículo de mídia processa, julga e condena rapidamente, com base às vezes nas primeiras notícias e primeiras informações, e depois quer que o Poder Judiciário ratifique aquilo que já decidiu. Esse é um problema gravíssimo no Brasil. Há influência não só no Supremo Tribunal Federal, mas também no juiz de primeiro grau. O julgamento pelo júri em São Paulo do casal Nardoni não tinha a menor condição de ser feito com independência e imparcialidade diante da publicidade opressiva que houve sobre o caso.

ConJur — Houve publicidade opressiva no mensalão?
Marcelo Leonardo — Com certeza.

ConJur — Como o senhor avalia a cobertura da imprensa no caso?
Marcelo Leonardo — Alguns veículos procuraram fazer um trabalho de jornalismo sério, ouvindo todos os lados e divulgando as informações de forma imparcial. Mas nós tivemos também inúmeros veículos que fizeram uma publicidade opressiva sobre o caso, tendenciosa, sem ouvir todas as partes, e dando especial valor às informações vindas da acusação. 

ConJur — Depois do caso do mensalão, que o projetou em rede nacional, houve mais procura pelo escritório?
Marcelo Leonardo — Eu não posso negar que houve uma maior divulgação do nosso trabalho profissional, e que esse trabalho foi reconhecido. Isso naturalmente produz resultado.

ConJur — O que diferencia um caso como o do Marcos Valério, de grande exposição na mídia, da defesa de um réu comum em termos de estratégia?
Marcelo Leonardo — Na medida em que há uma grande cobertura da mídia, é preciso um cuidado especial na condução do caso, porque todos os magistrados, sejam de primeiro grau, de segundo grau ou das instâncias superiores, são pessoas da sociedade que escutam rádio, veem televisão, leem jornal, e podem ser naturalmente influenciados pela cobertura. O trabalho é maior porque a cobertura midiática pode influir no julgamento.

ConJur — Vocês chegam a contratar uma assessoria de comunicação?
Marcelo Leonardo — Depende de cada cliente. Na advocacia criminal muitas vezes você tem que prestar ao cliente um serviço que nós chamamos de gestão de crise. Uma empresa que acaba envolvida em uma operação da Polícia Federal passa por uma crise interna que pode necessitar de vários prestadores de serviços diferentes. Pela maior repercussão da área penal, muitas vezes essa gestão da crise tem que ficar centralizada no advogado criminalista, e pode envolver assessoria de comunicação e de outra natureza.

ConJur — A qual linha de pensamento do Direito o senhor se considera filiado?
Marcelo Leonardo — Eu me considero filiado à corrente do chamado Direito Penal Mínimo ou da mínima intervenção. Entendo que não é através da criminalização de condutas e nem do endurecimento de penas que vamos contribuir para reduzir os níveis de violência ou criminalidade. A efetiva aplicação das leis é que pode contribuir para reduzir os níveis de impunidade. A experiência brasileira demonstra estatisticamente que a agravação de pena não contribui para reduzir criminalidade.

ConJur — Poderia dar um exemplo?
O Brasil adotou em 1990 a Lei de Crimes Hediondos, mas o número de casos de homicídio qualificado, tráfico de drogas e estupro não diminuiu. De 1990 para cá, o Brasil definiu vários crimes como hediondo, inclusive aumentou essa lista. A cada caso de repercussão na mídia havia um espasmo legislativo para aumentar o rol. E o resultado da aplicação disso qual foi? Zero, em termos de contribuição para reduzir a criminalidade. Essa ideia de endurecimento não resolve. Estudos estatísticos sobre pena de morte nos EUA demonstram que a agravação da pena não reduz determinado tipo de crime na comparação com diferentes estados. Há estudos sobre violência, criminalidade e Direito Penal na ONU demonstrando a existência de mais de 50 diferentes penas alternativas à privativa de liberdade. Temos algumas no Código Penal brasileiro, mas essa lista tem de aumentar. Mudança de lei não é panaceia que resolve os problemas. Toda vez que eu escuto diante de um caso criminal de repercussão um governante dizer que precisa mudar o Código Penal ou o Código de Processo Penal, acredito que mais uma vez alguém está fazendo demagogia legislativa.

ConJur — Como o senhor vê a discussão sobre venda e consumo de drogas no Brasil?
Marcelo Leonardo — Eu fiz parte da comissão de juristas nomeada pelo Senado Federal para preparar o anteprojeto de novo Código Penal, e na comissão eu votei favoravelmente à descriminalização em relação ao uso de drogas.

ConJur — De todas as drogas?
Marcelo Leonardo — A comissão se limitou à descriminalização do uso da maconha. É claro que o assunto é polêmico, como há polêmica em relação a vários outros temas que envolvem a elaboração de um Código Penal. Mas o debate muitas vezes vai para a irracionalidade e fica passional. É preciso que isso seja visto de forma diferente, analisando experiências dentro e fora do Brasil. Há um problema carcerário seríssimo no país, e o Poder Judiciário tem expressiva parcela de culpa pela superpopulação prisional. Apesar de ter havido mudança na legislação sobre prisão provisória, de indicá-la como última alternativa a ser adotada, a cultura do Poder Judiciário é de mandar prender. Isso só agrava a questão. Às vezes a gente consegue mudar a lei, mas não muda a cultura do aplicador da lei. 

ConJur — Há dificuldades em separar o usuário do traficante?
Marcelo Leonardo — A atual Lei de Tóxicos prevê tratamento diferenciado para o usuário, mas muitas vezes o Ministério Público o denuncia por tráfico, embora não seja tráfico. O Poder Judiciário aceita a denúncia e a pessoa fica recolhida sob uma falsa acusação de tráfico de drogas, contribuindo para prejudicar ainda mais as chances de ressocialização no sistema.

ConJur — O que o Judiciário poderia fazer?
Marcelo Leonardo — O Poder Judiciário deveria aplicar medidas cautelares alternativas à prisão provisória. Se o condenado não é perigoso ao convívio social, dever-se-ia fazer opção pelas alternativas à pena de prisão. Isso poderia contribuir muito para desafogar o sistema prisional. Minas Gerais hoje está vivendo uma experiência nova de uma penitenciária público-privada, cópia de modelo americano. Instalação nova, tudo funcionando, onde é vedada a superlotação. A empresa privada que administra a unidade recebe um valor por preso, por mês, e tem um limite, que é a capacidade da unidade. Não pode ter mais preso do que a capacidade da unidade, porque viola o contrato. E nessa unidade todos os presos trabalham, porque existem convênios com empresas privadas.

ConJur — O senhor vê a iniciativa com bons olhos?
Marcelo Leonardo — Vamos ver o resultado. Mas se não tiver ninguém que tome a iniciativa de fazer algo diferente, nós vamos conviver com presídios como o de Pedrinhas.

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