De geração em geração

Vício de estudantes gera monografias iguais a petições iniciais

Autor

  • Felipe Asensi

    é diretor do Instituto Diálogo pós-doutor em Direito e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

19 de janeiro de 2014, 6h42

Monografia não é petição inicial, e isto também serve para dissertações de mestrado e teses de doutorado. Com freqüência, os estudantes de direito, independente de em qual nível estejam, tendem a reproduzir um vício compartilhado pelos seus professores que, por sua vez, reproduzem um vício compartilhado por seus antigos professores: a ideia de que a produção acadêmica tem que se assemelhar a uma petição inicial!

Não é difícil observar orientadores e orientandos que, nas salas de aula e nas conversas de orientação, se preocupam muito mais em firmar posição e cristalizar opiniões do que efetivamente conhecer como o direito funciona. Isto é, preocupam-se muito mais como o direito deveria ser — sob o seu ponto de vista — do que como o direito é efetivamente — a partir dos dados empíricos.

Observe-se que isto tem um motivo: a confusão entre o que é a prática jurídica e o que é o trabalho acadêmico. A prática jurídica — representada por petições, recursos, acordos, contratos, audiências, etc — é orientada pelo dever ser, pelo juízo de valor e pela defesa de posição. O trabalho acadêmico é voltado para a pesquisa empírica, para as conclusões amparadas em métodos, técnicas e dados. As conclusões não podem vir antes da coleta de dados e as hipóteses são sempre passíveis de negação a partir desses dados.

O resultado disso é que o resultado supostamente acadêmico — uma monografia, dissertação ou tese — pode não passar de uma reprodução, e não produção do conhecimento. Muitos escrevem sobre a (não) aplicabilidade da Lei Maria da Penha para homens ou sobre a (in)constitucionalidade da Lei Seca, mas pouquíssimos produzem dados empíricos que sustentam suas conclusões. Além disso, não é difícil encontrar pessoas que dizem que a pesquisa que realizaram no TCC foi bibliográfica ou que escolhem um tema pela defesa que querem fazer dele.

Assim, a conclusão vem antes do texto efetivamente nascer. A mímica torna-se mais importante que a originalidade. A tecnologia do “ctrl+c” e “crtl+v” passa a ser amplamente mais usada do que a razão e o método. Como efeito, a curiosidade, a dúvida e a vontade de conhecer como as coisas são — características típicas dos cientistas — podem dar lugar ao “achismo” e à reprodução ingênua — características típicas dos reprodutores de ideias.

Porém, como eu havia insinuado no início deste artigo, os reprodutores não são reprodutores porque são preguiçosos. Isto ocorre de maneira consciente, mas, principalmente, inconsciente. Vale ainda dizer que a reprodução pode ocorrer tanto no orientador quanto no orientando e que ambos podem ser meros “ecos” do que está na lei, nos livros e nas decisões. Alguns, inclusive, vão até o Código de Hamurabi para falar de agências reguladoras e outros recorrem à legislação suméria para discutir a Lei da Ficha Limpa.

O efeito perverso desta reprodução é a separação radical entre produtor das versões do conhecimento e o consumidor das versões do conhecimento. Nem um nem outro necessariamente tem suas conclusões ancoradas no conhecimento científico, especialmente porque não necessariamente realizaram uma pesquisa científica.

O produtor das versões do conhecimento (e não do conhecimento) é aquele que escreve o texto de uma maneira meramente opinística e, com seus juízos de valor, vai moldando o que é justo, injusto, certo, errado, legal, ilegal, isto é, vai imprimindo a sua versão sobre um determinado conhecimento. O produtor possui toda uma carga simbólica que reforça uma relativa autoridade a respeito do que ele escreve e defende. No direito, esta autoridade passa a ser concebida pelos diversos profissionais de maneira bastante ingênua e, inclusive, com uma perspectiva pouco crítica. Não é por acaso que é chamado de “doutrinador”, e não de “autor”.

O consumidor das versões do conhecimento, por sua vez, é aquele que tem o produtor como objeto de desejo, como um ser iluminado. Caso não tenha escrito livro, o endeusado também pode ser um legislador ou um julgador, mas será livre de qualquer crítica que não seja a mera divergência de opinião a partir de artifícios como a “intenção do legislador” ou “o espírito da decisão”. Os interesses e valores do produtor não são relevantes para o consumidor. Como dizia Marx, toda mercadoria tem um fetiche, e este fetiche no direito pode vir acompanhado de adjetivos como “ilustre doutrinador”, “festejado jurista”, “eminente julgador” e “egrégio tribunal”.

O fato é que, para fazer um trabalho acadêmico, o primeiro passo é reconhecer que ele não deve se submeter à mesma lógica da prática forense. Até que me convençam do contrário, não considero possível conceber uma tese de doutorado sobre a inconstitucionalidade dos Embargos Infringentes ou uma dissertação de mestrado sobre o princípio da presunção da inocência no Brasil, China, Afeganistão e Ilhas Fiji. O trabalho acadêmico requer pesquisa, curiosidade, rigor, metodologia e, principalmente, a procura incessante por dados e informações que suportem ou não as hipóteses de maneira objetiva e científica.

O segundo passo talvez seja mais ousado. Ele requer o rompimento do paradigma de que o conhecimento se produz pela seqüência: a) introdução; b) evolução histórica; c) conceitos; d) fontes do direito; e) princípios; f) questões legais e jurisprudenciais; g) conclusão. O direito não funciona por literalidades e linearidades. A reprodução desta seqüência em monografias, dissertações, teses, artigos e livros só contribui para o enfraquecimento do conhecimento científico. O fato é que, assim como ocorre com os fumantes, o uso do cachimbo entorta a boca!

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