Análise Constitucional

Avaliação da democracia togada passa pelas causas e efeitos

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

12 de janeiro de 2014, 7h00

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“Acho que decisão política tem que tomar quem tem voto. Agora, a inércia do Congresso traz riscos para a democracia. E proteger as regras da democracia é um papel do Supremo”. Com essas palavras, relativas à questão das doações de pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, o ministro Luís Roberto Barroso talvez tenha sintetizado um novo referencial de atuação do Supremo Tribunal Federal, em sua coerente e corajosa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada no dia 22 de dezembro de 2013.[1]

Coerente entrevista por expressar uma concepção que marca, há muito, a trajetória pessoal de Barroso, seja como doutrinador[2], seja como advogado.[3] Corajosa por expor, de maneira clara e honesta, a crença de que o STF tem um papel de tal modo proeminente no sistema institucional brasileiro, que pode substituir a atuação dos demais poderes — exercendo, portanto, diretamente suas funções — quando considerar, segundo seus próprios critérios, que esses poderes se encontram de algum modo inertes, em formulação que, para muitos, seria a síntese do ativismo judicial.[4]

Em suma, o exercício subsidiário das funções dos demais poderes pelo Supremo teria como fundamento um déficit de atuação por parte do Executivo e do Legislativo. A insuficiência dos representantes popularmente eleitos na implantação de políticas públicas ou na elaboração de normas é que habilitaria o tribunal, por exemplo, a determinar a realização de um programa de saúde pública não priorizado pelo governo da hora[5] ou a fixar uma norma geral e abstrata em matéria não contemplada pelo Congresso Nacional.[6]

Assim, examinado esse argumento sob outra óptica, é possível afirmar que a base para a atuação excepcional do Supremo estaria no reconhecimento de uma incapacidade popular no exercício da cidadania, que levaria à reiterada escolha de representantes — administradores e legisladores — incapazes de realizar o conteúdo democrático da Constituição. O STF, nessa perspectiva, salvaria o povo de suas próprias escolhas, desempenhando, no sistema institucional brasileiro, um papel orientador e corretivo dos poderes constituídos, papel esse que, em condições normais, seria do eleitorado.

Tal lógica, porém, não é nova na história das instituições políticas brasileiras. São vários os casos de órgãos de poder que, diante de um eleitorado por eles tido como fraco ou insuficiente, incapaz de escolhas consideradas por esses mesmos órgãos como corretas, passaram a desempenhar tarefas de suplementação democrática.

Exemplo mais gritante dessa realidade talvez se tenha na experiência do sistema parlamentar do Segundo Reinado[7], em que a alternância dos partidos políticos no poder se dava pelo desígnio do imperador e não pela vontade popular manifestada nas eleições, no que já foi chamado de “doutrina brasileira do Poder Moderador”.[8]

Ante a insuficiência do eleitorado, cabia ao imperador, segundo sua visão pessoal acerca das necessidades da população e das urgências do Estado, chamar à composição de um novo gabinete esta ou aquela agremiação partidária, independentemente de contar com a maioria no Parlamento. Era o “parlamentarismo às avessas” — em que o monarca fazia as vezes do povo —, denunciado de forma magistral por José Thomaz Nabuco de Araújo no famoso Discurso do Sorites.[9]

Nessa realidade, como registra Cezar Saldanha Souza Junior, o Poder Moderador cumpria não só uma função de árbitro no jogo político — como era próprio da teoria européia de Benjamin Constant, plasmada no artigo 98 da Constituição de 1824 —, mas também era “um poder subsidiário da comunidade”, que supria, “dentro da lei, as deficiências de um eleitorado ainda muito fraco em força política, na medida dessa fraqueza e enquanto as condições econômicas, sociais e mesmo políticas não lhe permitem uma atuação mais efetiva”.[10]

Ou seja, as intervenções de poder pessoal do monarca — chamado, à época, de “imperialismo”[11] — eram justificadas por uma insuficiência da população em, por meio de eleições, escolher representantes capazes de cumprir a contento as exigências típicas de um regime democrático. O imperador desempenhava uma suplementação democrática, que tornava viável — apesar da suposta incapacidade popular no exercício da cidadania — o funcionamento do sistema parlamentar.

Nesse quadro de artificial alternância democrática, o Império chegou a ser classificado por Bartolomé Mitre, presidente da Argentina entre 1862 e 1868, como uma “democracia com coroa”[12]; sendo igualmente popular a expressão “democracia coroada” para designar o Segundo Reinado.[13]

De fato, porém, em nome de um sistema em aparência democrático, a coroa invadia searas que ordinariamente seriam de poderes popularmente respaldados, justificando sua ação na tese — inegavelmente elitista — da incapacidade do povo.

Não é de se estranhar, assim, que, ao final do Império, Ferreira Vianna, ministro do regime imperial e membro do Partido Conservador, assim avaliasse o Segundo Reinado: “O Imperador levou cinquenta anos a fingir que governava um povo livre”.[14]

É interessante constatar — sem que disso decorra qualquer juízo de valor — que a justificativa para o “imperialismo” de Pedro II era a mesma que hoje se dá para o ativismo dos tribunais, qual seja, a insuficiência do povo, que não escolhe representantes suficientemente idôneos para o exercício das funções que lhes são constitucionalmente atribuídas no regime democrático brasileiro.

A razão de ser da “democracia coroada” seria a mesma que leva à construção de um novo oximoro, o da “democracia togada”, decorrente da atuação supletiva do Judiciário na implantação de políticas públicas ou na elaboração de normas, em substituição aos popularmente eleitos Executivo e Legislativo.

Diante da constatação dessa comum etiologia, não seria absurdo concluir que essas duas democracias qualificadas — a “coroada” e a “togada” — têm raízes não muito populares, posto partirem da aristocrática ideia da maior capacidade de alguns frente à incapacidade de muitos. Ambas as concepções acabariam por menosprezar a participação do povo, privilegiando a atuação politicamente irresponsável de seus “representantes” não eleitos; seja o imperador, seja a noblesse de robe.

Seria ainda possível registrar, para melhor ilustrar a questão e encetar a polêmica, que o “imperialismo” característico da “democracia coroada” não foi capaz de diminuir sua própria causa; ou seja, não criou — ao longo do Segundo Reinado — um eleitorado consciente que permitisse uma diminuição gradativa das intervenções do monarca. Em essência, o exercício extravagante do Poder Moderador somente servia para reforçar o próprio Poder Moderador e, ao mesmo tempo, torná-lo responsável único pelas agruras da vida institucional do Império.[15]

Do mesmo modo, nada indica que o ativismo da “democracia togada” tenha gerado — ou tenha a potencialidade de gerar — as condições necessárias para a superação de sua existência, chamando os representantes popularmente eleitos a suas responsabilidades constitucionais.

Muito antes pelo contrário. É correto afirmar que a atuação supletiva dos tribunais — e em especial a do Supremo — pode desonerar as elites políticas de suas responsabilidades, transferindo para os juízes o ônus de decisão em searas que não lhes são naturais e permitindo que essas mesmas elites se perpetuem inertes e incólumes no poder: se as medidas decorrentes da decisão judicial são bem sucedidas, naturalmente ficam associadas ao governo que as executou; se fracassam, são imputadas ao Judiciário.[16] A “democracia togada” teria, pois, um patente viés conservador, conferindo um bill of indemnity para aqueles causadores da inércia que estaria em sua gênese.

No momento em que se passa a afirmar, de modo honesto, um novo referencial de comportamento institucional para os tribunais, permitindo-se a discussão aberta de seus prós e contras, é necessário ter presentes essas e outras questões relacionadas à “democracia togada”, para que se avalie com clareza quão promissores podem ser seus efeitos e quão popularmente legítimas são suas causas.


[1] A íntegra da entrevista e sua transcrição podem ser encontradas em folha.com/no1388727

[2] Basta ler, por exemplo, textos como “A reconstrução democrática do direito público no Brasil”. In: A reconstrução democrática do direito público no Brasil, Luís Roberto Barroso (org.), Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 1-39, onde se lê: “No tocante à judicialização, deve-se consignar que o papel do Judiciário e, especialmente, das cortes constitucionais e supremos tribunais deve ser o de resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais poderes, quando seja o caso. Sem, contudo, desqualificar sua própria atuação, exercendo preferências políticas de modo voluntarista em lugar de realizar os princípios constitucionais. Além disso, em países de tradição democrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucional funcionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitos entre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandes papéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional” (p. 39).

[3] Entre outras ações de repercussão patrocinadas pelo ministro enquanto no exercício da advocacia, pode ser mencionada, como exemplo, a ADPF 54, rel. Min. Marco Aurélio, sobre a interrupção da gestação de fetos acometidos de anencefalia. Cuida-se de evidente exemplo em que as partes, ante “a inércia do Congresso”, buscaram a intervenção do STF.

[4] Nesse sentido, Elival da Silva Ramos: “Por ativismo judicial, deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Essa ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional se faz se faz em detrimento, particularmente, da função legislativa, não envolvendo o exercício desabrido da legiferação (ou de outras funções não jurisdicionais) e sim a descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial das funções constitucionalmente atribuídas a outros Poderes” (cf. Ativismo judicial. Parâmetros dogmáticos, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 308).

[5] Como decidido, por exemplo, no RE 716.777 — AgR, rel. Min. Celso de Mello, DJe 15.05.2013, ou no RE 271.286 — AgR, rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2000.

[6] Como decidido, por exemplo, nos célebres mandados de injunção sobre o direito de greve dos servidores públicos: MI 670, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes; MI 708, rel. Min. Gilmar Mendes; e MI 712, rel. Min. Eros Grau, todos com publicação no DJe de 31.10.2008.

[7] Para uma análise do funcionamento do sistema parlamentar do Império, ver: Carlos Bastide Horbach. “O parlamentarismo no Império (II). Representação e democracia”. Revista de Informação Legislativa, ano 44, n. 174, abril-junho de 2007, p. 213-231 (disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/141153/R174-14.pdf?sequence=3).

[8] Cezar Saldanha Souza Junior. A crise da democracia no Brasil, Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 157 e seguintes.

[9] Joaquim Nabuco. Um estadista do Império, Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 764-767.

[10] Cf. A crise da democracia no Brasil, p. 157. Em outro trecho, segue o autor: “(…) a atuação do poder moderador só se justifica , na doutrina brasileira, dentro dos lindes do princípio da subsidiariedade, que ilumina a doutrina política democrática. Segundo ele, cumpre ao poder moderador intervir na fiscalização e na limitação dos órgãos políticos, quando a comunidade não puder desempenhar, por si mesma e pelos canais a seu alcance, essas funções. O poder moderador existe não para abafar a comunidade, mas — como delegação dela — para suprir suas eventuais deficiências no exercício do controle democrático dos governos” (p. 160).

[11] Para Joaquim Nabuco, a expressão “imperialismo”, além de significar o absolutismo constitucional a que a falta de eleições reais reduzia o regime representativo, o polichinelo eleitoral dançando segundo a fantasia de ministérios nomeados pelo Imperador, significava a ação de um poder irresponsável por parte do monarca, a causa da decadência política e a aspiração de poder absoluto em um país livre, nulificando a nação representada no parlamento (cf. Um estadista do Império, p. 683).

[12] Historia de San Martín y de la emancipación sud-americana, p. 107.

[13] Nesse sentido, João Camillo de Oliveira Torres. Democracia coroada, Petrópolis: Vozes, 1964.

[14] Carlos Bastide Horbach. “O parlamentarismo no Império (II). Representação e democracia”, p. 228.

[15] José Murilo de Carvalho, por exemplo, demonstra que era comum culpar o imperador pelo enfraquecimento dos partidos exatamente por que era ele o responsável, por conta do exercício pessoal do Poder Moderador, por chamá-los ao poder: “O principal acusado pela fraqueza dos partidos era, como sempre, o rei. Ao Poder Moderador, em especial, atribuíam-se as dificuldades de consolidação dos partidos. Aqui também as acusações vêm desde futuros republicanos como Saldanha Marinho até conservadores impenitentes como Ferreira Vianna. Este último, testemunha do fim do Império, vivia a fustigar o poder pessoal, o imperialismo, como se dizia, em seus discursos na Câmara. (…) Acusava-se o rei de manipular os partidos, de arbitrariamente chamá-los ao poder e dele apeá-los, de desrespeitar seus programas políticos, atribuindo, por exemplo, aos conservadores a tarefa de votar reformar liberais, de aproximá-los e separá-los para confundi-los, de jogar as lideranças umas contra as outras. A própria ideia de conciliação foi atribuída ao imperador, que deste modo buscaria desmoralizar os partidos e enfraquecê-los” (cf. Teatro de sombras. A política imperial, 2ª. ed., Rio de Janeiro: UFRJ – Relume Dumará, 1996, p. 378).

[16] Nesse sentido, a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “No quadro apontado, o Judiciário, se se considerar sua esfera de intervenção, estaria mais forte. Disto, porém, não lhe resultou aumento de prestígio, ao contrário.

Em primeiro lugar, porque sua carga muito cresceu e com ela um retardamento da prestação judicial. Daí descontentamento dos que recorrem a ela, ou dela esperam providências, como a punição exemplar dos ‘corruptos’.

Em segundo lugar, seu poder de interferência na órbita político-administrativa o tornou co-responsável dos insucessos ou frustrações que para a opinião pública decorrem da má atuação do Poder. Mais, veio ele a ser visto como um colaborador do governo.

Ou, quando decide contra as medidas deste, é por ele apontado como responsável — a serviço da oposição — por decisões contrárias ao interesse popular…

Em ambos os casos, assume uma feição de órgão político, no pior sentido do termo” (cf. Aspectos do Direito Constitucional contemporâneo, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 215).

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