Progressão de pena

Semiaberto deveria se chamar “semifechado”, diz advogado

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11 de janeiro de 2014, 6h44

O cumprimento do regime semiaberto no atual sistema prisional brasileiro está, na prática, sendo inviabilizado pela ausência de estabelecimentos adequados, que consomem mais recursos do Estado à medida que mantêm por mais tempo quem já poderia estar em liberdade. Além disso, o sistema favorece a superlotação dos presídios, dificulta a triagem e a organização dos presos de acordo com seu perfil. Esse quadro geral compromete, no final das contas, a própria ressocialização. As conclusões são do advogado criminalista Rodrigo de Oliveira Ribeiro, que desde agosto de 2012 atua como membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro.

“Não é por menos que críticos da execução penal chamam o regime semiaberto de semifechado. Isso porque, apesar da Lei de Execução Penal prever a construção de estabelecimentos penais para a execução progressiva da pena, como casas de albergados, colônias agrícolas, industriais ou similares, praticamente nada foi feito nos últimos 28 anos, desde que a lei entrou em vigor”, afirma. Atualmente, as superlotadas prisões brasileiras mantêm cerca de 300 mil presos além de sua capacidade, que é de meio milhão. Sem mencionar os mais de 200 mil mandados de prisão para serem cumpridos. 

Vontade política
proposta de alteração da Lei de Execução Penal, apresentada por uma comissão de juristas ao Senado, é, na visão do advogado, um esforço questionável. Para ele, construir presídios “decentes” é mais urgente do que investir em uma nova lei. “Fico na dúvida se todo esse esforço na redação de artigos é válido, porque ao final, se não houver vontade política essas normas não terão aplicação nenhuma”, avalia.

Para Ribeiro, a mudança na Lei de Execução Penal é discutida sem que as reformas estruturais, arquitetônicas e de engenharia sejam feitas. “Precisamos no momento de construções daqueles estabelecimentos previstos no artigo 203 (da LEP), e não da construção de novas normas”.

O conselheiro cita a carta do jurista René Ariel Dotti, em que declinou do convite para participar de audiência pública sobre a reforma da LEP. Na ocasião, o jurista declarou que "as fundadas regras para uma adequada execução converteram-se em meras proclamações otimistas".

Apesar das críticas, o advogado vê pelo menos um "ponto alto" na proposta de lei. Trata-se da previsão de que a penitenciária que atingir superlotação não poderá receber mais presos, a chamada "progressão antecipada". Mesmo assim, acredita que para alcançar a finalidade a que se destina, o aplicador da lei terá que ser flexível na hora de interpretá-la. Para Ribeiro, um cenário complexo seria aquele em que um preso perigoso tivesse a chance de ser transferido para um albergue, por conta da falta de vagas no presídio.

Regras não escritas
Em sua atuação como advogado criminalista, e agora também como membro do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro, Rodrigo Ribeiro conta que precisou aprender outro conjunto de regras, que não estão escritas em lugar nenhum, mas que são reveladoras do grau de complexidade em transpor para a vida real aquilo que está na LEP, particularmente quanto à progressão de pena para o regime semiaberto.

Como no caso de A.M.R., um preso de 65 anos que cumpria pena em regime fechado, em um presídio próximo da família, na região metropolitana do Rio. Em 2011, com um terço da pena cumprida, seu advogado requereu a progressão para o semiaberto. A.M.R., então, foi transferido para outra unidade, de onde, teoricamente, poderia ir para casa todos os dias da semana, desde que voltasse sempre para dormir na instituição penal.

No entanto, ele jamais usufruiu desse direito. Em primeiro lugar, porque o presídio para o qual foi transferido fica bem mais longe de seus familiares. A viagem diária de ônibus seria muito cara. Porém, mais determinante foi o fato dele estar agora em um presídio em que convivem presos de várias facções criminosas. Entre as tais “regras não escritas”, está aquela em que o preso em semiliberdade deve levar e trazer objetos solicitados pelos presos que integram facções. Caso não se encaixe nas regras, o preso fica marcado e passa a sofrer retaliações de todo tipo, incluindo, claro, agressão física.

70 fugas
Um dos casos mais impressionantes foi o de um preso com mais de 70 fugas registradas, um dos primeiros processos com que Ribeiro deparou como conselheiro. “Na hora, pensei comigo: esse cara gabaritou a planta do presídio… Mas não era nada disso. É porque no retorno ao presídio, muitas vezes ele chegava atrasado. E se o preso chega após o horário, mesmo que sejam 20 minutos, ele é impedido de entrar e o sistema registra o atraso como fuga. O pior é que o sujeito ainda vai dormir na rua”, conta.

Segundo Ribeiro, não é raro passar em frente a um dos presídios de Bangu e encontrar presos dormindo perto da entrada. “Eventualmente, essas ‘fugas’ que, na verdade, são atraso, podem até prejudicar o preso em regime semiaberto no momento de requerer uma nova progressão. É inacreditável, o preso quer entrar na cadeia e não deixam. São coisas que a gente só aprende convivendo nesse mundo, são as regras não escritas.”

Discurso bipolar
O advogado qualifica o discurso no âmbito criminal de “bipolar”: de um lado, há quem defenda que não é necessário construir mais nenhum presídio, pois prevalece o entendimento de que deve haver menos normas penais, penas menores, e menos presos provisórios; e do outro lado, há quem entenda que deve haver mais unidades prisionais e que elas devem ser privatizadas. Para o conselheiro, que se situa "no meio do caminho” entre as duas visões, não há investimento em infraestrutura compatível com o que se vê “em outros setores do país”.

Segundo ele, é preciso investir em infraestrutura para que o país possa honrar com os princípios da Constituição e com os tratados internacionais que assinou, e pelos quais se compromete a evitar “penas cruéis e degradantes”. “Enquanto isso, vemos o ministro da Justiça dizer que temos masmorras e não prisões. Só que, infelizmente, a lógica dos políticos se repete, aquela de não se investir em saneamento básico porque ninguém vê. E ainda se vê muito, entre os próprios advogados, aquele preconceito de que o preso tem uma vida boa, que é sustentado pelo Estado”, lamenta.

O conselheiro acredita que advogados e defensores públicos do país que queiram denunciar o atual modelo prisional deveriam se socorrer não apenas em mecanismos internos, como o Conselho Nacional de Justiça, mas buscar também órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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