Retrospectiva 2013

O Marco Civil que não anda e o fim da privacidade

Autor

  • Omar Kaminski

    é advogado e consultor gestor do Observatório do Marco Civil da Internet membro especialista da Câmara de Segurança e Direitos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de Internet da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB-PR.

7 de janeiro de 2014, 5h35

"(…) eu não queria mudar a sociedade. Queria dar à sociedade a oportunidade de determinar se deveria mudar-se a si mesma." (Edward Snowden)

Spacca
O grande e notório acontecimento do ano, com reflexos jurídicos os mais variados, foi o vazamento de informações confidenciais do órgão norte-americano de segurança nacional (NSA) pelo seu ex-analista Edward Snowden, que acabou acusado de traidor e terrorista, mas em contrapartida, também está sendo considerado um herói comparável a Julian Assange, do Wikileaks. Por hora, reside e trabalha na Rússia, mas segundo consta almeja asilo aqui no Brasil.

A NSA supostamente espiona(va) até as conversas telefônicas da presidente Dilma Rousseff com ministros e assessores, bem como empresas como a Petrobras, além de outros vários chefes de governo. Em represália, Dilma desistiu de uma visita diplomática formal ao Obama, agendada previamente. Tal ocorrência certamente influenciou na escolha, enfim, dos caças Griphen da sueca Saab para nossas Forças Armadas, incluindo a respectiva transferência de tecnologia.

Como antídoto, o governo impôs a utilização de e-mail seguro em toda a Administração Pública federal, foi anunciado o desenvolvimento de um antivírus nacional, e passou a haver uma maior preocupação por parte das Forças Armadas quanto à possibilidade de uma guerra cibernética. Lembrando que, geralmente, a prevenção não é nosso forte…

Em sinal de protesto, crackers brasileiros invadiram diversos sites, privados e governamentais, inclusive da NASA, que teriam confundido com a NSA. Facebook, Google e Microsoft foram convidados a prestar informações a respeito no Congresso, e negaram serem co-responsáveis pela massiva quebra de sigilo.

Casos em destaque
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, foi aplicado o chamado “direito ao esquecimento” pela primeira vez, em um recurso envolvendo a TV Globo. A Súmula 502 consolidou entendimento sobre a criminalização da pirataria, mas segundo decisão da 3ª Turma não pode violar o direito a informação.

Aliás, a 3ª Turma se mostra cada vez mais onipresente em decisões envolvendo a internet, e em especial, o Google, obviamente o mais litigado. Dentre elas, o provedor de conteúdo deve guardar os dados de identificação dos usuários por três anos; não remover material plagiado gerou responsabilidade solidária do provedor de conteúdo; e mantendo o entendimento, uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor deve retirar o material do ar no prazo de 24 horas ou poderá responder por omissão.

O Tribunal Superior Eleitoral decidiu que manifestação política pelo Twitter não configura propaganda eleitoral. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que compartilhamento de sinal de internet não é crime. Para o Tribunal Superior do Trabalho, fotos no Facebook não comprovaram gozo de intervalo intrajornada.

Poucas e boas decisões enaltecendo a liberdade de expressão. No Espírito Santo, juiz decidiu que rede social pode ser usada para expor falha de montadora de automóveis. E a Justiça Federal de Goiás negou o bloqueio de contas que divulgavam blitzes no Twitter.

E ao contrário, a polêmica decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que entendeu que curtir e compartilhar mensagens públicas ofensivas no Facebook pode resultar em condenações solidárias.

Leis e regulamentações
Uma das primeiras leis penais gerais sobre a internet entrou em vigor no começo de abril, logo apelidada de Lei Carolina Dieckmann (Lei 12.737/12) em virtude das fotos da artista terem impulsionado sua aprovação, bem como a chamada Lei Azeredo (Lei 12.735/12), agora retalhada em apenas quatro artigos. Infelizmente, ambas trouxeram poucos efeitos práticos até o momento diante de sua relativa complexidade, e diante de penas aquém do esperado para desestimular as práticas e afastar a sensação de impunidade.

O comércio eletrônico no Código de Defesa do Consumidor foi regulamentado pelo Decreto 7.962/13, tornando a interpretação de alguns artigos mais clara e específica. A Lei de Acesso a Informação Lei 12.527/11) completou seu primeiro ano em vigor, precisando avançar mais em termos de transparência.

Vários projetos de lei apresentados, entre os quais o que torna obrigatórias informações sobre os responsáveis por sites comerciais; que obriga hospitais a monitorar recém-nascidos com câmeras; que proíbe aplicativos na internet que alertem sobre blitz no trânsito; que regulamenta o serviço de computação em nuvem; entre vários outros.

Marco Civil da Internet
Marco Civil da Internet, ou “Ciberconstituição”: nossa primeira grande incursão pela engenharia legislativa colaborativa. Até agora, provou-se infrutífera. Mesmo após dezenas de audiências públicas e debates, o princípio da neutralidade e a delimitação da responsabilidade dos provedores, tanto de acesso como de conexão a aplicativos, continua incerta. O interesse das grandes empresas de telecomunicações aparentemente falou mais alto em defesa do modelo de negócios atualmente praticado.

A cada nova versão do parecer surgem novas dúvidas, como por exemplo, sobre as vantagens e desvantagens da obrigatoriedade do armazenamento de dados em território nacional. Na última versão, a despeito de projetos de lei (“Maria da Penha virtual”) já existentes sobre o tema, incluiu de última hora dispositivos coibindo a “vingança pornográfica”, em resposta ao suicídio de duas adolescentes (no Piauí e no Rio Grande do Sul) que tiveram os respectivos conteúdos íntimos divulgados na internet.

Decepcionando muitos ciberativistas, a única certeza a estas alturas é que a discussão prosseguirá em 2014, e até onde se sabe permanece o pedido de urgência.

Governança da internet
A presidente Dilma reconheceu a importância e deu apoio ao modelo multissetorial adotado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil. Além disso, o decálogo de princípios do CGI.br e o Marco Civil foram abertamente defendidos por ela.

Foi um grande ano para a “diplomacia virtual”. Brasil e Alemanha apresentaram texto à ONU sobre privacidade na Internet, que foi aprovado por unanimidade. Dilma agradeceu à França por apoio a proposta de defesa cibernética.

Serviços públicos
Quase no final do ano, o Ministério da Justiça lançou o Atlas, o maior banco de dados sobre a justiça no Brasil; o Senado Federal lançou o BuscaLeg, já apelidado de "Google do Legislativo"; e o TJ-SP lançou sua rede colaborativa, a WikiTJ.

Mais lufadas de modernidade tirando o mofo das estantes dos fóruns e tribunais. O TJ do Rio de Janeiro iniciou a substituição de códigos de papel por conteúdos eletrônicos, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) requereu a liberação do código-fonte do Processo Judicial eletrônico (PJe) para a Justiça do Trabalho, a Justiça Federal do Rio Grande do Norte utilizou o Skype para viabilizar audiência com uma recém recém parturiente; e o TJ-SP iniciou um projeto de implantação do teletrabalho.

Os apps e a “objetificação”
O aplicativo que é um álbum geralmente público de fotos, o Instagram, é cada vez mais utilizado. Celulares foram perdidos, fotos e vídeos comprometedores foram “vazados” inclusive via What’s App, pedidos de indenizações pipocaram na justiça. Os suspeitos de crimes acabam também se expondo por exibicionismo ou ostentação, e a polícia está cada vez mais conectada.

Surgiu o app “revanchista” Lulu, que tornou todo cidadão do sexo masculino um potencial litigante, já que expôs todos os homens participantes do Facebook ao crivo de avaliações femininas nem sempre muito elogiosas. Em resposta, um aplicativo chamado Tubby que prometia o mesmo aos homens, mas felizmente se revelou apenas uma campanha contra a “objetificação” — enganando, ou mesmo frustrando muita gente. O fato é que ambos (Lulu e Tubby) sofreram demandas judiciais.

Neologismos e traquitanas
A palavra do ano, segundo o dicionário Oxford: “selfie”, o ato de se auto-retratar, geralmente via celular, e posterior disponibilização nas redes sociais. Alguns dos termos mais empregados neste ano: sexting; hashtag; cloud computing; BYOD; big data; dark web; bitcoin; cyberbullying; black blocks; beagles. Hoaxes, vírus e phishings continuam na moda. Para ficar só na língua pátria: manifestações, mídia ninja, internet das coisas e rei do camarote.

O lançamento das novas versões do iPhone e do videogame Playstation (re)demostrou que ainda somos o país das traquitanas eletrônicas mais caras do mundo. Tivemos também os ainda pouco vistos Google Glass, as impressoras 3d e os “smart watches”, relógios que conversam com os celulares. Robôs inteligentes? Ainda uma promessa, como asseverou o célebre autor de sci-fi Isaac Asimov em 1964, quando tentou prever como seria o mundo daqui a 50 anos.

Conclusão
A privacidade teve seu fim reiteradamente decretado neste ano. Ficamos cientes que o alcance da ciber-espionagem é maior ou mais preocupante do que aparenta ser. Ficou a ressaca moral persistente, que já dura pelo menos desde 2001 com a queda das torres gêmeas, ficou a aura vigilantista sobre nossas cabeças.

Em contrapartida, este foi o ano em que pudemos tomar melhor consciência da necessidade de protegermos e defendermos nossa privacidade. Agora, é possível entender melhor a importância dos nossos dados pessoais, aliados à faculdade de proibir a publicação, transmissão ou divulgação de escritos ou da imagem, seja em fotos, vídeos ou autobiografias não autorizadas.

Pudemos nos dar conta que estamos cedendo nossos dados e preferências pessoais a aplicativos “a preço de banana”, leia-se nada, ou no máximo pelo direito de utilizar tal serviço, muitas vezes tolo ou inútil. Continuamos clicando no “eu aceito” indiscriminadamente, sem que sequer tenhamos tido contato visual com os termos do contrato de adesão. E essa prática está sendo terceirizada, e na melhor das hipóteses é a consciência coletiva tomando (mais) forma, o próprio “big data”.

Resta o ônus de decidir se iremos aceitar, ou concordar, que nossa privacidade continue sendo vilipendiada de diversas formas, por auto-indulgência ou em nome de uma pretensa segurança que tem como efeito colateral, ou principal, o exercício da limitação e do controle sobre diversas liberdades constitucionalmente asseguradas.

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    é advogado especializado em tecnologia da informação, consultor jurídico da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), membro suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e responsável pelo site internetlegal.com.br.

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