Senso Incomum

O realismo ou “quando tudo pode ser inconstitucional”

Autor

2 de janeiro de 2014, 7h00

Spacca
Nos Estados Unidos… e não aqui, é claro
Esse primeiro subtítulo da coluna é para completar o título acima e tranquilizar os leitores, no sentido de que o que tratarei é de outro sistema jurídico e de outra realidade. Nada a ver com o Brasil, portanto.

Aprenda se divertindo
Meu amigo Dierle Nunes, professor da UFMG, mandou um vídeo que os alunos legendaram. Todos conhecem o desenho animado Pinky e Cérebro. O vídeo escolhido pelos alunos é um episódio em alemão. Claro que a legenda não corresponde à fala. Mas ficou muito engraçado e mostra a corrente jusfilosófica chamada “realismo jurídico”. Portanto, aprenda se divertindo. Não leia o resto da coluna sem ver o vídeo. 

Então, o que é esse “realismo jurídico”?
Visto o vídeo, vamos à lição. Primeiro, o realismo jurídico não tem nada a ver com o realismo filosófico, que é a concepção objetivista do mundo (sobre isso, por falta de espaço na coluna, ver meu Hermenêutica Jurídica em Crise).

Conforme explico em meu Verdade e Consenso, realismo e pragmati(ci)smo são irmãos siameses.  As primeiras manifestações pragmaticistas no Direito podem ser encontradas no realismo escandinavo (Alf Ross, Olivecrona) e norte‑americano (Wendell, Pound e Cardozo), daí a “semelhança” entre as duas posturas sobre o direito (realismo jurídico e pragmatismo). Para os adeptos do pragmatismo, não se deve conferir “autoridade última a uma teoria, já que o objetivo crítico de raciocinar teoricamente não é chegar a abstrações praticáveis, mas, sim, explicitar pressuposições tácitas quando elas estão causando problemas práticos. Para o pragmatismo jurídico, teorias éticas ou morais operam sobre a formulação do Direito, mas, na maior parte das vezes (ou, ao menos, frequentemente), a porção mais importante de uma legislação é a previsão ‘exceto em caso em que fatores preponderantes prescrevam o contrário’”[1]. Contemporaneamente, o pragmatismo pode ser identificado sob vários matizes, como a análise econômica do direito, de Richard Posner, nos Critical legal studies e nas diversas posturas que colocam na subjetividade do juiz o locus de tensão da legitimidade do direito (protagonismo judicial). O pragmatismo pode ser considerado uma teoria ou postura que aposta em um constante “estado de exceção hermenêutico” para o direito; o juiz é o protagonista, que “resolverá” os casos a partir de raciocínios e argumentos finalísticos. Trata‑se, pois, de uma tese anti‑hermenêutica e que coloca em segundo plano a produção democrática do direito. No Brasil, o direito alternativo tinha raízes realistas. Nas práticas judiciárias, não é difícil encontrar uma série de manifestações realistas.

O jusfilósofo espanhol Garcia Figueroa é contundente, ao dizer que “na atualidade, parece haver uma espécie de realismo jurídico inconsciente na “motivação” dos juízes nos processos judiciais. Afinal, o realismo jurídico baseia-se na concepção de que o raciocínio judicial decorre de um processo psicológico. E isso acontece porque os juristas — em especial os juízes — descreem da capacidade justificadora do sistema jurídico. O realismo é cético diante das normas, pois a considera “puro papel até que se demonstre o contrário”. Assim, a vida do direito é “experiência”. Por isso, direito passa ser aquilo que os juízes dizem que é”.[2]

Desse modo, quando você ouve alguém dizer que “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais- dizem-que-é”, bingo! Está diante de uma postura realista (ou de uma Pantoffel theses do realismo). Compreendeu? Por isso, a estorinha do Pinky e do Cérebro retrata um pouco dessa velha corrente que — mesmo em tempos de intersubjetividade — ainda aposta no ceticismo em relação às normas e em raciocínios decorrentes de processos psicológicos.

No fundo, as posturas realistas e suas congêneres — lembremos que Posner é uma pragmati(ci)sta, que mata a sede no realismo — desconfiam da malta que vota. Desconfia das Instituições, a não ser a mais imaculada: o Judiciário. Por isso, o realismo (e seus genéricos) é também chamado de positivismo fático. Para quem gosta de estudar os mistérios do positivismo, saiba logo — e tenho insistido muito nisso — que positivista não é apenas o do velho formalismo (exegético-legalista). É muito mais do que isso. Enfim…

Direito é aquilo que os tribunais dizem que é?
Claro que, quando penso nos Estados Unidos — e é só lá que isso pode(ria) acontecer, pois não?  —  lembro logo do caso Dred Scott v. Stanford e nas decisões da US Supreme Court dos anos 20 (claro que há outros julgamentos “do bem”… por assim dizer).

Paro por aqui. De fato, realismo jurídico e essas coisas do tipo “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais-dizem-que-é” são coisas dos outros. Como dizia Sartre, o inferno são os outros. Dos americanos. E quiçá das Antilhas Holandesas ou Guiné Bissau… Por aqui, nos trópicos, não se fazem dessas coisas… Longe disso. Se bem que, há poucos dias, o ministro Roberto Barroso, do Supremo Federal em entrevista à Folha de S.Paulo, a propósito do julgamento da ADI 4.650-DF, que trata das doações em campanhas eleitorais, que “(…) a gente, para fazer andar a história, não precisa estar com o povo gritando atrás. É preciso interpretar e fazê-la andar. (…) Está ruim, não está funcionando, nós temos que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar”.

Se não estou enganado, a expressão “a gente” significa “o Poder Judiciário”, estou certo? Estaríamos, então, dando razão à dupla Pinky e Cérebro, do desenho animado? Pode o Judiciário empurrar a história? O dr. Cérebro, do desenho, acha que sim. Mas, permito-me insistir na pergunta: Pode empurrar a história mesmo quando a Constituição-não-diz-o-que-o-Judiciário-diz-o-que-ela-diz?

Como sou desconfiado — afinal, penso que essas coisas só acontecem nos outros países — vou atrás das notícias. Encontrei o Informativo 732 do STF, no qual o relator (ministro Luiz Fux) da citada ADI 4.650-DF “julgou inconstitucional o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais baseado na renda, porque dificilmente haveria concorrência equilibrada entre os participantes nesse processo político”.

Vejam: o relator disse ser inconstitucional o modelo de campanhas eleitorais. Na sequencia, acrescentou que “a participação de pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem oferecer, como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate e que a excessiva participação do poder econômico no processo político desequilibraria a competição eleitoral, a igualdade política entre candidatos, de modo a repercutir na formação do quadro representativo”.

Ainda, por fim,  “recomendou ao Congresso Nacional a edição de um novo marco normativo de financiamento de campanhas, dentro do prazo razoável de 24 meses, observados os seguintes parâmetros: a) o limite a ser fixado para doações a campanha eleitoral ou a partidos políticos por pessoa natural, deverá ser uniforme e em patamares que não comprometam a igualdade de oportunidades entre os candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá nortear a atividade legiferante na regulamentação para o uso de recursos próprios pelos candidatos; e c) em caso de não elaboração da norma pelo Congresso Nacional, no prazo de 18 meses, será outorgado ao TSE a competência para regular, em bases excepcionais, a matéria”.

Pronto. Faltou apenas acrescentar: tudo sob pena de chicoteamento… Fico pensando com meus botões já desgastados de tanto com eles pensar: Será que entendi bem? Ora, não preciso ser a favor ou contra o financiamento feito por empresas para entender o que está acontecendo. Por via das dúvidas, deixo claro que sou contra a doação por parte das empresas.

Mas, por favor, como lido com a Constituição e sou obrigado a defendê-la, tenho de me perguntar: a Constituição estabelece um (outro) modelo de financiamento de campanhas eleitorais? É assim tão fácil apontar onde está a parametricidade constitucional que sustenta as afirmações dos votos dos quatro ministros (relator e mais três) que votaram por essa inconstitucionalidade?[3] Há um porção de coisas das quais não gosto, mas daí a serem inconstitucionais no sentido daquilo que se entende por parametricidade, vai um zilhão de quilômetros de distância.  

E desde quando o STF declara inconstitucionais “modelos” de alguma coisa? De forma moralista, ele faz a escolha pelo povo e em lugar do povo? O Parlamento serve para o quê? Alguém dirá: mas neste caso o STF está acertando… então por que você está criticando? Respondo: as questões (in)constitucionais não estão a disposição do STF. E um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia, pois não?

E desde quando o STF manda o Congresso fazer uma lei estipulando as condições e requisitos, se a própria Constituição, parâmetro maior para qualquer julgamento, nada fala a respeito? Além do problema da difusa e discutível parametricidade, o estabelecimento de prazo somente teria sentido se o STF dissesse — de forma fundamentada — estar em face de uma Appellentscheidung. Vou tentar explicar isso melhor: uma coisa é fazer uma Appellentscheidung (apelo ao legislador), que ocorre quando a Constituição determina algo, o Congresso não faz e a Corte Constitucional exorta a que o Parlamento faça a regulamentação em um prazo razoável para que aquela situação não se converta em uma inconstitucionalidade. Para ser mais claro: o apelo ao legislador (Appellentscheidung) só ocorre quando a Corte reconhece que a lei ou a situação jurídica não se tornou ainda inconstitucional. Então, faz a exortação. Em outras situações, o Tribunal restringe-se a constatar a inconstitucionalidade, sem, no entanto, declará-la. No caso da ADI essa, nem de longe se está em face da possibilidade de uma Appellentscheidung. Em verdade, parece-me que o STF simplesmente está não só legislando como também dizendo como o Congresso deverá fazer no futuro. Mas, ínsito: onde está a concreta situação que propicia(ria) o/um apelo ao legislador?

Não preciso pesquisar muito sobre a tal falta de parametricidade. Para tanto, valho-me dos exatos termos da declaração de um dos quatro ministros do STF que já votaram na ADI 4.650, o ministro Roberto Barroso: "Em tese, não considero inconstitucional em toda e qualquer hipótese a doação [a campanhas eleitorais] por empresa".

Não, os leitores não leram errado. Ele disse isso mesmo. Mas, então, perguntaria o Pinky da estorinha, ele votou contra a ADI 4.650-DF? Não, meu caro Pinky. Não, meus caros leitores. Ele votou a favor. Então, digo eu, com o meu bilhete aéreo de ida na mão para ir aos Isteites conhecer o tal “realismo jurídico”: se ela — a inconstitucionalidade — não existe… então… ela não existe. Questão de sintaxe e de semântica. Podem as doações ser ruins, inadequadas, aéticas, imorais, etc, etc (e mais um etc!). E o são. Mas, a pergunta que a Suprema Corte de terrae brasilis (e não a dos Isteites) deve responder é tão-somente essa: são elas, as doações, inconstitucionais? Podem ser ruins, mas…inconstitucionais? Aliás, as palavras não são minhas, são do próprio ministro Barroso, que-não-considera-inconstitucional-em-toda-e-qualquer-hipótese a doação a campanhas eleitorais por empresa. Vejam: em-toda-e-qualquer-hipótese.

Observação: por certo, alguém dirá que o Supremo invocou princípios e que, afinal, o direito é um sistema de regras e princípios. Correto. Mas, é possível extrair do princípio republicano um modelo de financiamento de campanha? E essa “extração de sentido” se faz agora, depois de tantas eleições? Nas anteriores o modelo valeu? Eu poderia discutir a questão se o princípio invocado fosse o da igualdade. Afinal, a igualdade de participação no processo eleitoral não está a disposição das maiorias políticas, porque essa questão está no núcleo do regime democrático. Mas não foi nessa linha que os quatro votos trilharam. Mas esse seria apenas o começo da discussão… Dizendo de outro modo: uma coisa é declarar inconstitucional determino dispositivo por ferir, na especificidade, a igualdade (ou outro princípio); outra coisa é dizer que todo o modelo conformado por tais dispositivos é inconstitucional; e outra coisa ainda é o STF se transformar em legislador positivo.

Mas, enfim, peço desculpas, porque desviei da rota. Estava falando das mazelas do realismo jurídico dos Estados Unidos e do ativismo de lá.[4] Mania que eu tenho de misturar os assuntos. Deve ser o final do ano. Cansado, dá tilt no meu sistema…

Ainda bem que o Brasil…
…está imune ao realismo jurídico, aos ativismos, decisionismos e coisas desse gênero. Todos sabemos disso. Por aqui tudo vai bem. Todos os julgamentos são feitos com base em critérios. Não há risco de uso abusivo de princípios (pamprincipiologismo). Em terrae brasilis não há panconstitucionalismo, variante perigosa do pamprincipilogismo.[5] Por aqui não se faz uso de argumentos metajurídicos. Vou me mudar para os Isteites. Só para ver como funciona esse tal de realismo, já que, como no livro de Alan Riding (Paris, a Festa Continuou), por aqui Tout va très bien dans le monde juridique (“tudo vai bem no mundo jurídico”, que adaptei da frase original “Tudo vai bem, Madame La Marquise”). Como vou para os Isteites ver o realismo — que aqui não tem —  desejo a todos um  Happy New Year (já estou treinando)!

PS 1: na bagagem, dois barões: O de Itararé e o de Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu. Foi ele que teve a infeliz ideia de fazer divisão de funções nos e dos Poderes.

PS 2: diz-se por aí, à meia-boca, que a OAB, animada com o resultado parcial da ADI 4.650, vai ingressar com nova ação,[6] desta vez contra o sistema de partidos e o modelo de presidencialismo de coalizão. Afinal, por ele — o presidencialismo — ser de “coalizão”, pode estar violando vários princípios da Constituição. Logo, é inconstitucional (afinal, está abolida a exigência de parametricidade, porque, por certo, a Constituição é uma ordem concreta de valores[7] — veja-se, aí, o parentesco do realismo com a Wertungsjurisprudenz — a tal jurisprudência dos valores). Consequentemente, o próprio mandato da presidenta pode ser nulo. E também todos os seus atos. De todo modo, caberá modulação de efeitos…[8]

PS 3: para quem não entendeu o que escrevi, vai um resumo para Twitter em 123 caracteres: Na democracia, o Judiciário, inclusive o STF, não pode tudo. Tem limites. Caso contrário, esta(re)mos em uma juristocracia.

Ainda numa palavra,
… e falando muito sério, penso que é dever do STF, no exercício da jurisdição constitucional, garantir a igualdade de chances no processo eleitoral. E que, para isso, deve levar em consideração a desigualdade em termos de poder econômico (e também político-administrativo!). Entretanto, não concordo que o STF deva fazer isso em termos paternalísticos. Para mim, o STF deve dizer que condições de financiamento na atual legislação não garantem a igualdade de participação, ao invés de querer impor um sistema específico de financiamento ao legislativo, apenas para que esse o regulamente, sob pena de que, se não o fizer em 24 meses, a Justiça Eleitoral deverá fazê-lo. Esse é o ponto que fragiliza a decisão do STF até aqui. O STF não pode estabelecer "o" sistema de financiamento de campanha, optando por um modelo específico de financiamento, em substituição ao Congresso. Mas penso que o STF pode e deve declarar inconstitucionais pontos específicos da legislação vigente em matéria de financiamento de campanha, caso esses pontos não sejam compatíveis com a igualdade de participação política. Mas, haja, aqui, fundamentação. E fundamentação da fundamentação.

Todavia, em que perspectiva? Isto para mim é chave: o STF não pode dizer qual é "único" sistema que garanta a igualdade (se público, privado ou misto), mas quais pontos do sistema já vigente, seja ele público, privado ou misto, não garante a igualdade política. O problema é como o STF se vê, por um lado, como "legislador positivo" (concorrente ou subsidiário), já definindo qual sistema de financiamento garante a igualdade (o público, por exemplo) ou, mais especificamente para o caso da ADI 4.650, como o STF compreende o tal instituto do "apelo ao legislador" (predefinindo não apenas os prazos — 24 meses — para o legislativo legislar, mas predefinindo parâmetros dentro dos quais o legislador deve legislar), enfim, o modo com que o STF aplica a discutível Lei 9.868/1999. O interessante é que o tal “apelo” nem foi discutido até o momento.

Numa palavra: em uma democracia constitucional, são os próprios cidadãos, mediante seus representantes políticos ou diretamente, quem tem o direito de definir o que consideram relevante do ponto de vista da igualdade e da desigualdade, sobre o pano de fundo de uma história política de aprendizado constitucional vivido com a experiência da violação da igualdade, que não deve admitir retrocessos, embora eles possam acontecer.

Se o sistema deve ser só público ou não, e mesmo assim qual deve ser esse sistema público, penso que isso deve ser decidido "politicamente", obviamente dentro de parâmetros constitucionais que levem coerentemente os direitos políticos a sério, pelo Poder Legislativo, mediante debate público mais amplo. 

Se permitirmos que o STF “regulamente” isso, estaremos dando uma carta branca a um Poder que não foi eleito para isso. Não confundamos demo-cracia com juristo-cracia. 


[1] Cf. Eisenberg, José. Pragmatismo jurídico. In: Barretto, Vicente de Paulo (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, pp. 656‑657.
[2][2] Cf. García Figueroa, Alfonso. A motivação. Conceitos fundamentais. In: Moreira, Eduardo Ribeiro (Org). Argumentação e Estado Constitucional. São Paulo: Ícone, 2012, pp.  433 e segs.
[3] Essa crítica é muito bem feita por José Levi do Amaral, aqui na Conjur (leia aqui) e por Rafael Tomaz de Oliveira (leia aqui).
[4] Advertência: há sempre um estagiário comigo, com uma placa que é erguida quando falo determinada coisa. Neste caso, a placa levantada é “sarcasmo”.
[5] Como já havia inventado a expressão “pamprincipiologismo”, estou cunhando, agora, a expressão “pamconstitucionalismo”, que significa… “pamconstitucionalismo”.
[6] Nunca se esqueça, em nenhum minuto, do estagiário que me acompanha… Qual a placa os leitores acham que ele levantou, neste momento?
[7] Outra placa dizendo “ironia”.
[8] Outra placa!

 

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!