Garantias individuais

Criminalização da desordem pode levar a arbitrariedades

Autores

  • Allan Titonelli Nunes

    é procurador da Fazenda Nacional e desembargador Eleitoral Substituto do TRE-RJ mestre em Administração Pública pela FGV especialista em Direito Tributário ex-presidente do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).

  • Vladimir Belmino de Almeida

    é advogado assessor legislativo no Senado Federal membro da Comissão Especial de Estudo da Reforma Política do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e membro fundador da Abradep.

26 de fevereiro de 2014, 7h46

As manifestações de fevereiro de 2014 na cidade do Rio de Janeiro, que, repetindo as mobilizações nacionais de meados de 2013 contra o aumento das passagens de ônibus, tiveram a participação dos grupos nominados “Black Blocs”, acabou resultando em uma tragédia para a sociedade, uma vez que o rojão solto no protesto provocou a morte de um cinegrafista, ocasionando grande comoção social e exigindo uma resposta por parte do Estado.

Desde novembro de 2013, o Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, havia apresentado uma proposta ao Ministério da Justiça para tipificar como conduta criminosa a desordem. Agora, em fevereiro de 2014, após o evento trágico, renovou-a perante a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, requerendo que a proposta fosse incluída nos debates sobre o projeto de novo Código de Processo Penal.

Como já ressaltado, o projeto objetiva tipificar como crime a prática de “desordem”, imputando a conduta de ilícito penal àquele(s) que: “praticar ato que possa causar desordem em lugar público ou acessível ao público, agredindo ou cometendo qualquer ato de violência física ou grave ameaça à pessoa, destruindo, danificando deteriorando ou inutilizando bem público ou particular; obstruindo vias pública de forma a causar perigo aos usuários e transeuntes; a qualquer título ou pretexto ou com o intuito de protestar ou manifestar desaprovação ou descontentamento com relação a fatos, atos ou situações com os quais não concorde”.

O presente artigo se destinará a analisar perfunctoriamente e criticamente o contexto e objetivos da norma, bem como verificará a compatibilidade e necessidade diante do ordenamento jurídico brasileiro.

A morte do cinegrafista na última mobilização realizada no Rio de Janeiro abriu um debate mais intenso de como coibir os excessos nesses atos. Todavia, a pretexto de tentar separar o joio do trigo, o Estado está buscando soluções arbitrárias, restringindo ou atemorizando o legítimo direito de manifestação, o que analisaremos com mais detalhes.

A garantia de liberdade de expressão e reunião somente foram alçadas a direitos fundamentais após intensas mobilizações no decorrer da história. Nesse pormenor, as manifestações populares sempre decorreram de insatisfações reprimidas da sociedade, entre elas a exigência dos direitos e garantias mínimas ao cidadão, o combate ao arbítrio por parte do Estado, a defesa da liberdade, entre outros, cujas bandeiras fazem parte da história da humanidade, vide o exemplo da Revolução Inglesa, Francesa e Russa.

Essa participação popular direta remonta às ágoras gregas, em que os cidadãos decidiam as principais questões políticas através da soma das manifestações individuais reunidas, de onde se desenvolveu o conceito de cidadania e democracia.

A primeira vista, o último protesto buscou externar sua insatisfação com os (des)serviços estatais, cuja “justificativa” seria, precipuamente, a arbitrariedade da política pública de transporte, a qual estaria atrelada a determinados grupos econômicos que seriam os financiadores de campanhas, resultando numa política de tarifas exorbitantes ao usuário.

É relevante registrar que as mobilizações ocorridas a partir do ano passado sempre defenderam a livre manifestação, repudiando os atos violentos. Os vandalismos que muitas vezes ocorriam foram objeto de insatisfação e reprovação pela imensa maioria dos manifestantes, o que ficou comprovado por diversas pesquisas realizadas. Por essas razões, inclusive, houve um distanciamento entre os reais manifestantes e aqueles grupos que compareciam para depredação e disseminação da violência, com muitas de suas ações ligadas aos “Black Blocs”.

Apesar da insatisfação com relação à violência não se viu qualquer tentativa da sociedade de imputar a responsabilidade do vandalismo à falta de legislação, mas sim ao despreparo do aparato estatal para coibir os excessos, representado através de uma polícia que não soube lidar com a situação. Esses fatos demonstram que a proposta de criminalização da desordem não responde aos anseios dos movimentos populares e pode conter em si, filosoficamente, algo de agravamento por vários ângulos. A uma, porque o dever do Estado é satisfazer aos legítimos interesses dos cidadãos, na forma como preconizada pela Constituição. A duas, porque a lei imperial, se dissonante da vontade popular, além de se transformar em mais uma que “não pega” poderá acirrar os movimentos, transmutando as manifestações em verdadeiras batalhas, ante a pressão contra o tolhimento das liberdades.

Sob a égide de normas resguardando a cidadania, a democracia e a República o Constituinte incluiu entre as cláusulas pétreas, aquelas que sequer podem ser objeto de propostas de emenda para alteração, os direitos e garantias individuais, art. 60, §4°, IV, e entre eles deu relevo especial à liberdade de expressão, associação e de reunião, cujos dispositivos passa-se a elencar:

Art. 5°. (…)

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

Percebe-se que os direitos de liberdade e de reunião não são absolutos, comportando restrições, cujas limitações o próprio texto Constitucional traça. Veja-se, por exemplo, o caso da liberdade de reunião/manifestação, que admite somente as seguintes restrições: reuniões destinadas a propagar a violência, utilização de armas, não comprometer reunião anteriormente agendadas e aviso prévio à autoridade competente. Logo, salvo as restrições Constitucionalmente descritas não caberá à lei ampliá-las, como é o caso da proposta em exame, sob pena de inconstitucionalidade da norma.

Esse foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal consagrado na ADI 1.969/DF, a qual questionou constitucionalidade do Decreto Distrital nº 20.098/99, que vedou a realização de manifestação pública, com a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios e na Praça do Buriti e vias adjacentes, assim:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AO ART. 5º, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas. II. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung). III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99.

(ADI 1969, Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 28.6.2007, DJe nº 092, divulgado em 30.8.2007, publicado em 31.8.2007, pág. 29)

O ministro Luiz Fux respaldou liminarmente o precedente quando no auge das manifestações na Copa das Confederações o Governo do Estado de Minas Gerais buscou limitar o direito de manifestação, tendo a decisão do ministro cassado o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais na Reclamação 15.887[1], determinando que “manifestações têm sido realizadas diariamente em diversas cidades do país, de modo que a manutenção da eficácia da decisão impugnada tolhe injustificadamente o exercício do direito de reunião e de manifestação do pensamento por aqueles afetados pela ordem judicial”.

Evidentemente a solução apresentada para conter a violência nos protestos exorbitou o dever estatal preambularmente insculpido na Carta Magna, que é o de manter “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

Sob o pretexto de reprimir os excessos ocorridos nas manifestações, garantir a ordem pública e em face da falta de perícia policial no trato com essas mobilizações, assim como diante do resultado morte, a solução proposta pelo Estado, em princípio, é a tipificação penal da desordem. Contudo, esquecem que há diversos outros dispositivos penais que já tutelam os excessos ocorridos nestes atos, protegendo a vida ou incolumidade física, assim como a paz pública, seja através do homicídio, da lesão corporal, do dano, da incitação ao crime, da quadrilha ou bando, entre outros.

É bom lembrar que “desordem” é um conceito extremamente abstrato e de difícil definição, o qual, inclusive, foi muito utilizado pelo Governo Militar para prender aqueles que se manifestavam contra o regime da época, sob o pretexto de “preservar a ordem pública”, demonstrando concretamente que a subjetividade do conceito era utilizado ao bel prazer dos interesses políticos, o que não tem respaldo em um regime democrático.

Ademais, o Direito Penal tem como primado básico o princípio da legalidade e tipicidade, cujo objetivo é evitar subjetivismos que possam respaldar acusações com alto grau de discricionariedade sazonal, a depender do momento e das condições políticas, evitando, no mesmo sentido, julgamentos ou Tribunais de Exceção (Art. 5°, XXXVII, da CFRB).

Das ações tipificadas na proposta de crime de desordem percebe-se que várias delas já são tuteladas em outros dispositivos, onde “violência física ou grave ameaça à pessoa” estão presentes nos tipos penais de lesão corporal, homicídio e ameaça. Assim também ocorre com as ações “destruindo, danificando deteriorando ou inutilizando bem público ou particular”, as quais são protegidas pelo crime de dano.

Soma-se ainda ao exposto a desproporcionalidade da pena, a qual pode chegar a 12 anos se presentes as causas qualificadoras, o que enseja sanções maiores que tipos penais que tutelam a vida, como o homicídio culposo.

Salta aos olhos que hipoteticamente uma briga de bar ou um tumulto em uma festa de São João do condomínio podem se enquadrar no tipo descrito de “praticar ato que possa causar desordem em lugar público ou acessível ao público, agredindo ou cometendo qualquer ato de violência física ou grave ameaça à pessoa, destruindo, danificando deteriorando ou inutilizando bem público ou particular”. Ou seja, parece andar mal a propositura legal sob o aspecto formal e material, tanto quanto a imprecisão em relação ao alcance.

É natural que psicologicamente e antropologicamente após tanto tempo de democracia tenhamos esquecido de como algumas práticas ditadorias eram nefastas. Assim, temos que garantir que direitos fundamentamentais, como a liberdade de manifestação e reunião, nunca sejam limitados ante a falta de expertise por parte do Estado para restringir práticas criminosas no meio dos protestos de rua.

Dessa forma, as manifestações legítimas devem sempre ser resguardadas, o que a Constituição determina de forma preambular e em cláusulas pétreas, cujas restrições também estão nela descritas, de modo que as leis nacionais devem se subordinar, salvo, evidentemente, a punição dos excessos.

Logo, não se pode inverter a ordem e querer criar tipos penais casuísticos, objetivando transferir a responsabilidade inerente ao aparato estatal e de todo sistema de execução de ordem pública, policial e construção legal.

Importa cogitar se o Estado pode fazer isso de outras formas que não tipificando de maneira errática. O Estado deve lidar com o problema procurando satisfazer o anseio popular — que certamente não alberga a baderna nas ruas. O povo demonstra que deseja mudanças, que estas sejam identificadas e efetivadas, sob pena de se criar uma situação insustentável aos governantes. 

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 15887, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 19/06/2013, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-120 DIVULG 21/06/2013 PUBLIC 24/06/2013.

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    é Procurador da Fazenda Nacional, ex-Presidente do Sinprofaz e do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal.

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    é advogado, conselheiro federal suplente pela OAB-AP, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-AP, secretário adjunto do Colégio de Presidentes de Comissões Eleitoral do CFOAB e ex-diretor presidente da Companhia de Trânsito e Transporte de Macapá.

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