Contas à Vista

Honorários para advogados públicos geram dúvidas

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

25 de fevereiro de 2014, 8h01

Spacca
Li nesta ConJur a notícia de que a Câmara dos Deputados havia aprovado no projeto do novo CPC o pagamento de honorários para advogados públicos e estampava o presidente da OAB afirmando que isto é “uma vitória dos advogados públicos e da OAB, que é a Ordem dos advogados públicos e privados”. De imediato algumas dúvidas me acorreram: Será isonômica (isto é, republicana) a atribuição de honorários advocatícios de sucumbência aos advogados públicos? Qual o impacto dessa norma nos cofres públicos? A OAB deve mesmo ser a “Ordem dos advogados públicos e privados”?

Decidi escrever esta coluna para compartilhar com vocês, leitores, algumas das dúvidas que tenho acerca desse projeto. Peço que me ajudem a esclarecer melhor as ideias que apresentarei abaixo e a concluir o raciocínio.

Uma dúvida é se a atribuição de honorários de sucumbência aos advogados públicos é isonômica. A primeira vista a resposta é: certamente que sim. Se os advogados privados recebem este tipo de honorários, por qual motivo os advogados públicos não os receberiam? Porém, pensando um pouco mais, constata-se a existência de algumas abissais diferenças entre a remuneração e os vínculos de atuação entre os advogados privados e os públicos.

Os advogados privados têm múltiplos clientes que podem contratá-los e, caso estejam insatisfeitos com seu desempenho por qualquer motivo, podem rescindir esse contrato. Os advogados públicos só tem um cliente, o Poder Público que os remunera, e que só pode rescindir este contrato em situações de falta grave pessoal e mediante processo administrativo que observe o contraditório e a ampla defesa. Não basta qualquer insatisfação com sua atuação, como no caso dos advogados privados.

Os advogados privados podem negociar livremente o valor de sua remuneração, através de honorários, que, como o nome indica, não é salário. Esta remuneração privada através de honorários pode ser contratada de várias formas: através do sistema de horas trabalhadas, por honorários de êxito, por honorários iniciais, através de um sistema de honorários de partido onde a remuneração é mensal, por meio de honorários por fase processual, ou ainda através de honorários mensais por processo — dentre outras fórmulas negociais. Os advogados públicos recebem remuneração dos cofres públicos, estabelecida por ato do Poder Público a partir de lei, com reajustes periódicos. E, em muitos casos, esta remuneração é pautada pelo valor do que recebe um Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Os advogados privados correm riscos econômicos em sua atividade, pois tem custos na organização e custeio de sua banca. Contratam pessoas (secretárias, boys, assistentes, estagiários etc.), têm que pagar custos fixos como aluguel, luz, água, condomínio, tributos (IPTU e ISS dentre outros), e custos variáveis, como papel, livros, impressoras, computadores, assinatura de periódicos etc. Enfim, os advogados privados correm riscos e seus escritórios podem ter ou não lucro ao final de um mês de duro labor. Os advogados públicos não têm custos para exercer sua atividade. Sua remuneração, percebida pelos cofres públicos, é apenas sua. Trata-se de salário. Não há risco de não receber sua paga em dia e no valor estipulado em lei. E ainda, periodicamente, recebem algumas diferenças oriundas de incorreções no cálculo de sua remuneração.

Ademais, entre os advogados públicos e privados existe uma enorme diferença ao final da longa carreira: os advogados privados receberão a aposentadoria no valor do pisão do INSS; os advogados públicos são aposentados com o mesmo valor da remuneração que recebiam quando estavam na ativa. Sei que esta norma foi recentemente alterada para os novos concursos, mas esta diferença permanece em retrospectiva.

Este quadro se reflete em sala de aula, pois, quando se pergunta em uma turma regular de 50 alunos quem quer ser advogado privado, só uns poucos gatos pingados levantam a mão. As carreiras da hora são as vinculadas aos concursos públicos, dentre elas as da advocacia pública — em especial as que permitem também advogar privadamente. Há mesmo quem pense que só remanesce como advogado privado quem não é capaz de passar em concurso público… Pensando bem, para um recém-formado em Direito, ser aprovado em um concurso público é uma garantia de estabilidade financeira para o resto da vida, o que ele jamais terá na advocacia privada, mesmo com muito anos de trabalho. A ideia de empreendedorismo anda meio em baixa dentre os alunos de Direito.

Portanto, analisando sob a perspectiva acima singelamente exposta, constato que a advocacia pública e a privada são duas atividades bastante diferentes em termos de remuneração e no vínculo com o contratante, o que é demonstrado pelos aspectos apontados e em outros que deixei passar. Registro a extrema importância das duas vertentes da advocacia, pública e privada, para a concretização da Justiça. Creio ser verdadeiro o repetido bordão: sem advogado não há Justiça. Isso envolve tanto a Advocacia da União e Procuradorias dos diversos entes federados, quanto os advogados militantes privados.

Daí me ocorre outra dúvida: qual o impacto dessa norma nos cofres públicos?

Atualmente um valor equivalente ao de honorários de sucumbência é cobrado nas ações de execução fiscal federal e recolhido aos cofres públicos, servindo para o reaparelhamento dos serviços advocatícios. Ou seja, o que o contribuinte paga entra nos cofres públicos no caso dos executivos fiscais da União. Trata-se do vetusto Decreto-lei 1.025/1969, que acresce ao valor do crédito fiscal em execução o percentual fixo de 20%[1], e que, sob a ótica do contribuinte, é muito mais considerada uma sanção do que honorários, em face do montante. Este valor é usado pelo Poder Público federal para o reaparelhamento e a modernização dos serviços advocatícios públicos ofertados à população.

Todavia, é necessário fazer uma digressão federativa, pois, em vários Estados e municípios, o valor dos honorários já compõem um Fundo que é rateado entre todos os procuradores, o que gera um valor muitas vezes bastante superior à sua remuneração mensal. Os problemas que surgem em caso de transação judicial são enormes, pois muitas vezes o Poder Público tem interesse em compor aquela lide (cível, ambiental ou mesmo fiscal — caso dos parcelamentos) e nessas unidades federativas sempre surge uma disputa com os advogados públicos pelos honorários de sucumbência — parcela autônoma do valor em debate. Já vi caso em que o valor pago aos advogados públicos foi superior do que aquele desembolsado ao Poder Público. É de se notar, portanto, que por vezes o interesse pecuniário do advogado público não é apenas diverso, mas conflitante com o interesse público.

Enfim, não há uniformidade federativa nessa área, pois cada ente federado adota um procedimento próprio, fruto da legítima pressão que os servidores públicos fazem sobre o ente público que os remunera.

Além disso, com este valor de honorários sendo transformado em parcela privada, outras dúvidas assomam: quem pagará os honorários de sucumbência quando o Poder Público perder a demanda? Hoje, suponho, este valor sai do fundo público criado para o custeio dessa parcela; sem estes recursos, do bolso de quem sairá esse montante? Ademais, será aplicado o teto de remuneração do funcionalismo público a esta parcela paga em conjunto com o salário recebido pelos advogados públicos? E ainda, o Poder Judiciário arbitrará estes honorários públicos, transformados em privados, da mesma forma franciscana com que faz para a advocacia privada? Ou permanecerá o percentual fixo de 20% tal como aplicado hoje nos executivos fiscais federais, por exemplo?

Portanto, os valores que vão para os cofres públicos, e são utilizados para custear os serviços advocatícios, passarão a acrescer a remuneração dos advogados públicos — o que implica em dizer que maiores custos públicos advirão, pois o custeio dessa atividade será bancada pelo Orçamento.

Outra dúvida que me ocorreu analisando a notícia que li na ConJur foi: a OAB deve mesmo ser a “Ordem dos advogados públicos e privados”? Penso que sim. Não me parece que deva existir uma OAB da advocacia privada e outra OAB da advocacia pública. Contudo, deve-se observar quais são os interesses que vem sendo defendidos nestas situações.

A OAB tem constitucionalmente a competência para defender a Constituição e os valores democráticos, tanto assim que seu Conselho Federal pode propor ações diretas de inconstitucionalidade. Além disso, seus membros compõem as altas cortes do Poder Judiciário sem concurso público, através de um complexo processo de escolha que envolve os demais Poderes da República. Logo, nesse aspecto, a OAB defende valores democráticos e republicanos e tem uma atuação institucional. Dessa sua atuação decorreu a campanha pelas Diretas-Já, o impeachment do Collor, e tantas outras de relevo na história de nosso país.

Por outro lado, a OAB também tem uma atuação corporativa, na preservação dos interesses dos advogados em geral, sendo o principal ponto a defesa das prerrogativas profissionais, que independem dos vínculos com o Poder Público ou a forma de remuneração.

Outra coisa, completamente diversa, são os interesses de segmentos da advocacia, o que acaba por transformar a OAB de todos na OAB dos Procuradores de Estado, dos Defensores Públicos, dos Advogados da União, dos Advogados Privados e por aí assim, considerado cada segmento profissional da advocacia. Aqui se insere o problema da confusão entre o interesse privado dos advogados públicos em honorários e o interesse público, considerado como o interesse do Poder Público em ter seus direitos defendidos por uma categoria de advogados assalariados, que ingressem por concurso público em suas hostes, com estabilidade funcional, e que devem receber remuneração compatível para isso — como já ocorre na maior parte dos casos.

Enfim, caro leitor que me acompanhou até aqui, registro minhas dúvidas com esta norma aprovada pela Câmara dos Deputados na votação do novo CPC. Será que a aprovação de honorários de sucumbência para os advogados públicos atende ao interesse público ou aos interesses privados desse segmento da advocacia? Será que os cofres públicos sairão prejudicados ou valorizados? Como veem, tenho sinceras dúvidas a respeito. E você?


[1] Art 1º É declarada extinta a participação de servidores públicos na cobrança da Dívida da União, a que se referem os artigos 21 da Lei nº 4.439, de 27 de outubro de 1964, e 1º, inciso II, da Lei nº 5.421, de 25 de abril de 1968, passando a taxa, no total de 20% (vinte por cento), paga pelo executado, a ser recolhida aos cofres públicos, como renda da União.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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