Análise Constitucional

Ronald Dworkin e a sua contradição majoritária

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

23 de fevereiro de 2014, 9h58

Spacca
José Levi [Spacca]Há um modo de proceder, um modo de expor recorrente na obra de Dworkin: costuma expor duas — eventualmente mais de duas — vertentes de entendimento sobre o tema cuja discussão propõe. As diferentes vertentes expostas são tomadas como modelos para discussão. Trata-se de um modo didático de exposição e discussão. Claro, uma das vertentes expostas reflete a compreensão do próprio Dworkin. Por outro lado, os demais entendimentos — aqueles que não têm a simpatia de Dworkin — muitas vezes são expostos de um modo caricato.

É o que se dá no trabalho aqui comentado.

Em seu artigo Equality, Democracy, and Constitution, publicado na Alberta Law Review, n. XXVIII, 1989-1990, p. 324-346, Ronald Dworkin fala sobre “a cobra no jardim”, “o problema desagradável” no centro do Direito Constitucional: o controle de constitucionalidade é antidemocrático? Isso porque, explica Dworkin “em graus crescentes no mundo democrático, juízes declaram inconstitucionais leis que foram aprovadas por legisladores eleitos por uma maioria ou pluralidade de eleitores”. Reconhece que isso acontece “mesmo quando as disposições constitucionais apontadas como violadas não são específicas e detalhadas ou autoaplicáveis, mas escritas em linguagem abstrata, cujo sentido razoável leva pessoas razoavelmente treinadas a discordarem violentamente.”[1]

Dworkin argumenta que um sistema que dá grande poder político aos juízes parece ofensivo ao princípio de que em uma democracia os agentes são escolhidos pelo povo e respondem ao povo. No entanto, acrescenta que “essa não é toda a história”: sustenta que agentes não eleitos — como os secretários de Estado, da Defesa ou do Tesouro — podem causar mais dano em uma semana que um único juiz durante toda a sua vida judicante[2].

Parte da compreensão de que a Constituição possui duas ordens de disposições: (i) as estruturais, que constroem e definem poderes, instrumentos e órgãos do governo; e (ii) as limitativas, que estabelecem limites ao poder que a maioria tem sobre o arranjo estrutural explicitado (proibindo que os governos cerceiem a liberdade de expressão, ou tomem a vida, a liberdade ou a propriedade sem o devido processo; ou negando a quem quer que seja igual proteção do Direito; e assim por diante)[3].

Escreve Dworkin: “Dizem que a democracia não é tudo, e que a proteção dos direitos individuais quando ameaçados é mais importante que dar efeito à vontade da maioria. Querem as disposições limitativas da Constituição interpretadas com espírito generoso; convidam a Suprema Corte a dar plena e desembaraçada força aos princípios morais que eles acreditam devam proteger a democracia. Tenho alguma simpatia por essa reação ao problema.”[4]

Em verdade, é essa a posição de Dworkin.

Logo a seguir, Dworkin faz uma caricatura da resposta que denomina “historicismo”. Explica que historicistas estudam os registros da convenção constitucional para descobrir evidências do que os estadistas de há muito julgavam refletir a visão do povo que representavam. Comenta que, “nos Estados Unidos, ao menos, o historicismo está em curso de colisão consigo mesmo, porque a prova histórica é impressionante no sentido de que os estadistas fundadores não pretendiam que suas próprias visões em matéria de moralidade política fossem decisivas no interpretar a Constituição.”[5]

Ora, é preciso muita ingenuidade para acreditar que os founding fathers americanos não tinham a pretensão de fazer valer as próprias visões. Talvez a prova mais cabal disso seja a adoção do próprio colégio eleitoral, como bem explica Robert Dahl: “Os constituintes desejavam subtrair a escolha do presidente da maioria popular e colocar esta responsabilidade nas mãos de um corpo selecionado de cidadãos sábios, eminentes e virtuosos — assim como eles, poder-se-ia acrescentar com cinismo. No entanto, a pretensão ficou muito longe da realidade concreta.”[6]

Não há dúvida: os fundadores eram tão engajados politicamente quanto o próprio Dworkin (e é óbvio que a circunstância não lhe era desconhecida). A propósito, confira-se o claro juízo de valor, aqui citado como um único exemplo meramente ilustrativo, com que Dworkin abre o primeiro capítulo de um de seus últimos livros: “A política americana encontra-se em um estado pavoroso.”[7]

Dworkin argumenta que democracia envolve ação coletiva. Sustenta que há dois tipos de ação coletiva: o estatístico e o comunal. A ação coletiva é do tipo estatístico quando o que o grupo faz é “uma função, um esboço ou um detalhe do que membros individuais do grupo fazem eles próprios, ou seja, não tem o sentido de fazer alguma coisa como grupo”. O “grupo” aparece como “mera figura de linguagem”. A ação coletiva é do tipo comunal “quando não pode ser reduzida apenas a alguma estatística de ação individual, porque é coletiva no sentido mais profundo de requerer que os indivíduos assumam a existência do grupo como entidade ou fenômeno separado”[8]. Citando Rousseau, Dworkin manifesta a sua inclinação de entender a vontade geral como apontando mais para uma concepção comunal e menos para uma concepção estatística de democracia. Distingue o que chama ação coletiva comunal integrada, que insiste na importância do indivíduo, da ação coletiva comunal monolítica, que a nega. Defende que ação coletiva comunal integrada expressa melhor a democracia americana, porque é mais atrativa em matéria de moralidade política e porque oferece uma melhor interpretação da comunidade política americana, que inclui restrições democráticas e constitucionais à vontade da maioria[9].

A seguir, Dworkin identifica a democracia como ação coletiva do tipo estatístico com o princípio majoritário (que critica)[10].

Afirma que o poder político pode ser mensurado em duas dimensões: horizontalmente (pela comparação de poderes entre cidadãos e grupos) e verticalmente (pela comparação de poderes entre cidadãos e agentes políticos). Mais: também deve ser mensurada a igualdade de impacto e de influência de cada sujeito: igualdade de impacto tem-se, por exemplo, na igualdade no voto; igualdade de influência tem-se, por exemplo, na capacidade de influenciar a crença, o voto e a escolha de um terceiro[11].

Então, Dworkin passa a demonstrar os desafios e as dificuldades para realizar a igualdade nessas diferentes dimensões e perspectivas[12]. Conclui que “a ideia que parece tão natural a muitos filósofos, a ideia da igualdade de poder político, é implausível e artificial”. A alternativa que propõe é uma ação coletiva comunal que requer: (i) uma particular unidade de responsabilidade da pessoa ou grupo pelo crédito ou descrédito, sucesso ou fracasso da ação; (ii) uma particular unidade de julgamento da pessoa ou grupo cujas convicções sobre o que é certo ou errado são apropriadas para fazer a avaliação. Ambos os requisitos devem ser compreendidos na perspectiva que segue[13]. Busca “construir uma democracia como governo pelo povo, entendido em um sentido integrado, comunal, entre iguais”, com um “par de atitudes democráticas”: (i) responsabilidade coletiva; e (ii) julgamento individual[14].

Explica que o indivíduo é parte do coletivo, mas uma parte independente e importante do coletivo[15]. A adesão a uma unidade de responsabilidade coletiva envolve reciprocidade: “um sujeito não é membro da unidade coletiva, compartilhando sucesso e fracasso, a menos que seja tratado como membro pelos demais, e ser tratado como membro significa aceitar que o impacto da ação coletiva em sua vida e interesses é importante para o pleno sucesso da ação no seu impacto na vida e nos interesses de qualquer outro membro.”[16] Ademais, “cidadãos de uma comunidade integrada devem ser encorajados a ver os julgamentos morais e éticos como de suas próprias responsabilidades ao invés de responsabilidade da unidade coletiva; do contrário, eles não formariam uma democracia, mas uma tirania monolítica”.[17]

A argumentação é sofisticada, engenhosa e, certamente, cativante para muitos espíritos, como se vê em certa literatura brasileira. Porém, a consequência a que chega Dworkin implica severa contradição argumentativa.

Toda a construção relativa à democracia como “ação coletiva comunal integrada” somada à afirmação de que os americanos têm “rejeitado um majoritarismo irrestrito”[18] (“democracia não é tudo”…[19]) são manejadas por Dworkin para justificar precedentes da Suprema Corte americana relativamente a cláusulas constitucionais limitativas, sobretudo aquelas que ele mesmo reconhece como abstratas: a do devido processo (“due process”) e a da igual proteção (“equal protection”)[20].

Aqui está a maior contradição de Dworkin, apontada por críticos como Jeremy Waldrom[21], mas em boa medida antecipada pelo Artigo Federalista n. LXXVIII:

“Não se pode dar nenhum peso à afirmação de que os tribunais podem, a pretexto de uma incompatibilidade, substituir as intenções constitucionais do legislativo por seus próprios desejos. (…) Caso se dispusessem a exercer a vontade em vez do julgamento, isso levaria igualmente à substituição do desejo do corpo legislativo pelo seu próprio. Se essa observação provasse alguma coisa, seria que não deve haver nenhum juiz além do próprio legislativo.”[22]

A maior contradição de Dworkin está no relativizar a importância da decisão majoritária própria ao parlamento na elaboração legislativa e, a seguir, pretender confiar a decisão, sobretudo em questões de moralidade política, para uma Suprema Corte, um órgão judicial coletivo, cujas decisões também são tomadas segundo o mesmo princípio majoritário, mas cujos membros não são democraticamente eleitos, nem sequer são, a rigor, responsáveis perante o parlamento ou a sociedade (e, vale anotar, essa observação crítica final já era dirigida por Brutus contra Publius no célebre debate entre os Artigos Federalistas e os Antifederalistas[23]).

Pior: se essa compreensão das coisas, com boa vontade, talvez possa ter alguma serventia em contexto de common law, traz complicações inexoráveis e aberrantes quando transplantada para um contexto de civil law, a começar pela vulneração da autoridade da lei como fonte preponderante do Direito.

Mais: citar Rousseau, como faz Dworkin, também é contraditório, pois o pensamento de Rousseau implica uma democracia absolutamente direta, jamais uma democracia representativa (o que não compromete a argumentação de Dworkin), mas muito menos resulta uma forma de decidir confiada a alguns poucos juízes não eleitos, o que, sim, compromete o paralelo pretendido por Dworkin com a vontade geral. Ou a vontade geral a que se refere Rousseau pode ser deduzida ou decidida por uma Suprema Corte?

A vontade geral, na teoria de Rousseau, requer manifestação popular direta. Na vida real, sua melhor aproximação é encontrada no debate político próprio às instituições que abrigam membros políticos eleitos. A solução de Dworkin, antes de ser respeitosa à democracia possível, remete a uma técnica aristocrática de decidir porque admite que as questões de moralidade política sejam deslocadas da esfera parlamentar para a judicial.


[1] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 325.

[2] O argumento é uma evidente falácia, pois os sujeitos citados respondem ao Presidente Americano, que é um agente político eleito. O próprio Dworkin reconhece a circunstância, mas insiste que os poderes presidenciais são “quase incontroláveis por ao menos quatro anos, período em que podem facilmente destruir o mundo” (Equality, Democracy, and Constitution…, p. 325). Outra falácia: o Presidente Americano, ao menos, está sujeito ao escrutínio popular – ele próprio ou o candidato que apoia – após quatro anos. Os membros da Suprema Corte, não.

[3] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 326.

[4] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 326.

[5] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 327.

[6] DAHL, Robert. How democratic is the American Constitution? Second Edition, New Haven & London: Yale University Press, 2003, p. 76.

[7] DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? New Jersey: Princeton University Press, 2006, p. 1.

[8] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 329. É recorrente no artigo o exemplo de uma orquestra: “não é um caso de ação coletiva do tipo estatístico porque é essencial para uma performance da orquestra não apenas que uma específica função de cada músico seja apropriadamente desempenhada, mas que os músicos toquem como uma orquestra, cada um buscando dar a sua contribuição à performance do grupo, e não apenas como recitações individuais isoladas.” (Equality, Democracy, and Constitution…, p. 329).

[9] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 330.

[10] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 331 e ss.

[11] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 332.

[12] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 333 e ss.

[13] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 335.

[14] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 337. Argumentação em sentido análogo surge em outras obras de Dworkin, por exemplo: DWORKIN, Is democracy possible here?…, p. 9-21.

[15] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 337.

[16] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 339.

[17] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 340.

[18] “Desde que nossa nação tem constituição com disposições limitativas, qualquer interpretação de nossa democracia deve ser consistente com o fato de que nós temos rejeitado um majoritarismo irrestrito.”

[19] Afirmação que tem a simpatia de Dworkin, segundo ele próprio escreve (Equality, Democracy, and Constitution…, p. 326).

[20] Equality, Democracy, and Constitution…, p. 344. Aqui Dworkin lança uma obviedade: “Devemos preferir uma interpretação da cláusula do devido processo ou da igual proteção que seja consistente com princípios democráticos, como insistem advogados que estimulam decisões constitucionais conservadoras.”

[21] WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review in The Yale Law Journal, n. 115, p. 1346-1406.

[22] MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 482.

[23] BRUTUS, The anti-federalist papers and the constitutional convention debates, New York: Signet Classic, 2003, p. 304.

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