Serviço público

Princípio da atualidade caminha para o do sucateamento

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17 de fevereiro de 2014, 7h06

Em tempos de quebra de recordes por conta das altas temperaturas no verão brasileiro, o governo de Porto Alegre tomou nos últimos dias uma decisão, no mínimo, curiosa: promoverá a licitação para o serviço de transporte público municipal com a compra de frota de ônibus sem ar condicionado. A justificativa é que a economia de R$ 0,10 na tarifa é o objetivo principal almejado pela população, a qual “prefere pagar tarifas mais baixas” – o que implicaria, automaticamente, uma redução no kit de itens a serem ofertados aos usuários. Diante disso, a decisão tomada somente seria mudada se houver orientação contrária nas reuniões do orçamento participativo do município (que devem ocorrer até o fim do mês de fevereiro), nas quais a sociedade fizesse valer a sua opinião em contrário.

Preliminarmente, pode-se debater até mesmo a conveniência na realização de uma licitação neste momento, tendo em consideração as notícias já veiculadas de que está sendo preparada uma licitação para o sistema BRT (bus rapid transit) na capital gaúcha e a perspectiva mais remota de construção de uma linha de metrô. A realização açodada de um certame sem a plena operacionalização e consolidação do sistema BRT pode vir a, no futuro, representar quebras no contrato devido à necessidade de remodelagem do modelo de transporte público em Porto Alegre.

Porém, trata-se de mais uma ingerência institucional excessiva de Poder Judiciário, Ministério Público e Tribunal de Contas do Estado nas políticas públicas municipais, dado que a “pressa” decorre diante da atuação ostensiva desses órgãos no controle do serviço público prestado (inclusive com liminares, o que prejudica até mesmo a definição da conveniência e oportunidade na realização de uma licitação por parte do gestor público).
Também, de início, deve-se abstrair qualquer discussão ambiental quanto ao uso do ar condicionado, a fim de estabelecer uma premissa que trará o pragmatismo necessário para o desenvolvimento deste texto: o ar condicionado é um item essencial para que haja a prestação do serviço público adequado de transporte nos municípios, nos termos da Lei de Concessões.

A pressa, portanto, não justifica a decisão tomada de tentar baratear a prestação do serviço a qualquer custo. Além disso, é um item que visa a atrair o maior número de passageiros possível ao proporcionar maior conforto no uso do transporte público, com vistas a se tornar competitivo face ao constante incremento da preferência ao automóvel nas grandes cidades. Por consequência, serve também para aliviar os índices de trânsito dos municípios brasileiros.

Qualquer medida na contramão dessa tendência parece ser uma sentença de morte do transporte público em detrimento aos automóveis privados, pois sempre ficará confinado a ser utilizado por aqueles que não têm alternativa mais confortável, eliminando qualquer voluntarismo que poderia emergir dos motoristas em preferência ao transporte público. Se na Europa, com padrões de excelência em transporte público, a sua participação chega a um terço do total no transporte urbano, ao tomarmos como base na capital gaúcha um período de médio e longo prazo, tal fato pode ter um impacto negativo com a redução da utilização do modal. O que é mais impressionante é que uma parte da frota porto-alegrense já conta com ar condicionado nos veículos, restando bem ilustrado o retrocesso na prestação do serviço público.

Assim, não me parece um absurdo tomarmos o ar condicionado como juridicamente fundamental ao atingimento da prestação de serviço adequado, conforme determina a legislação brasileira. A Lei de Concessões, aliás, determina que o serviço público obedecerá ao princípio da atualidade, que é justamente o responsável por apropriar todos os ganhos tecnológicos e de inovação, relacionados com a prestação dos serviços públicos, em prol do usuário. E ele igualmente serve para evitar o sucateamento na prestação do serviço público, exatamente a desculpa preferida das administrações públicas ao preferirem o “ruim e barato” ao invés do “bom e barato”.

Somente a título de exemplo, na ilha de Malta, os ônibus estão obrigados a trafegar com uma temperatura interna entre 20 a 24° C, sob pena de aplicação de multa pela autoridade de transporte. Nos Estados Unidos, há diversos protestos de associações de pais que visam a obrigar ao uso de ar condicionado nos ônibus escolares, a fim de que não haja violações das leis de segurança ocupacional no trabalho — e evitem com que os Blue Birds virem verdadeiras estufas ambulantes.

O fato é, para que não redundemos em uma discussão simplista somente sobre a existência do ar condicionado, não se deve aceitar tranquilamente essa “barganha” entre serviço público adequado e baixo preço na tarifa. Afinal, o primeiro sempre deve prevalecer em consonância com o segundo – não são critérios excludentes. Fosse assim, o município poderia também ter cogitado o transporte de pessoas em carroças puxadas por cavalos por um preço de R$ 0,50, muito mais barato do que ônibus…

Essa lógica distorcida, sem relação de causa-consequência, na qual “a população prefere algo barato e sem qualidade”, causa estupefação, ainda mais depois dos movimentos de junho de 2013 para melhores condições na prestação dos serviços públicos brasileiros. Alguns críticos, não obstante, irão dizer em alto e bom tom: “essa conta deve ser paga por alguém, afinal, tudo tem um custo, e se não for assim a conta não fecha”. Concordo plenamente com o posicionamento: não existe almoço grátis – ou melhor, ar condicionado grátis. Ocorre que o Brasil explora muito pouco o potencial de suas receitas acessórias em transporte público – e aqui a crítica não se cinge somente ao transporte de ônibus.

Na China, por exemplo, há projeções de publicidade com os trens em movimento, refletida nas paredes dos túneis, para que os usuários possam vê-las enquanto fazem uso do transporte público. Algumas estações de metrô têm lojas do KFC ou McDonald’s em seu interior, mesmo após o usuário passar pela catraca, no caminho para a plataforma de embarque. Imagine-se o quanto poderia ser cobrado pela cessão de uso de espaço público de um restaurante desse tipo dentro da Estação da Sé em São Paulo, entre as baldeações das Linhas Azul e Vermelha?

Os ônibus trafegam permeados de publicidade de produtos como pintura – e você não escapa de investidas publicitárias dentro do veículo, como anúncios de som ou imagens nas televisões referentes a algum produto. Como consequência, o sistema de transporte público no país é eficiente, moderno e barato (em torno de R$ 0,80 a R$ 1,60 nas grandes cidades). Ah, e também possui ar condicionado e aquecedor para que o usuário possa “sobreviver” frente às temperaturas extremas de verão ou inverno.

No Brasil, o princípio da atualidade parece estar caminhando para o princípio do sucateamento. Afinal, é muito mais fácil justificar o alto custo de um novo item no serviço público do que explorar, de uma forma mais racional, as receitas acessórias nos ônibus, pontos de ônibus e terminais de passageiros. Em alguns países, ônibus já trafegam com WiFi, que pode ser acessado gratuitamente ou mediante o pagamento de um valor adicional pelo usuário. Quem sabe em 2050 já teremos o ar condicionado como um item de série para o transporte público, e a discussão seja sobre o direito fundamental a redes wireless nos ônibus brasileiros? 

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