Análise Constitucional

Qual é a utilidade da sustentação oral nos tribunais?

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

9 de fevereiro de 2014, 7h01

Spacca
Em setembro de 2011, enquanto esperava o início de sessão do Supremo Tribunal Federal em que faria uma sustentação oral, fui apresentado a um juiz da Corte de Apelação do 9º Circuito dos Estados Unidos, que visitava o tribunal na companhia da ministra Ellen Gracie. Iniciados os julgamentos da tarde e tendo o juiz Clifford Wallace ao meu lado, passei a explicar ao visitante os procedimentos do STF e o teor das discussões travadas em idioma que lhe era incompreensível.

Surpreendeu especialmente ao magistrado americano o modo como decidia o Supremo, com a apresentação do sumário da causa e do voto pelo relator, seguida da imediata e pública discussão, com a consequente formação de uma decisão por parte dos ministros.

Em seguida, tendo vestido a beca, perguntou-me se eu iria “discutir um caso” — argue a case — no tribunal, ao que respondi que no sistema brasileiro não se trata verdadeiramente de uma oral argument nos moldes americanos, pois não se tem um diálogo com a corte, mas uma simples exposição dos argumentos do cliente por parte do advogado, sem que os ministros formulem perguntas ao expositor.

Nesse momento, juntando a informação que há pouco tivera de que os relatores trazem seus votos prontos para o Plenário com a minha explicação sobre as sustentações orais, o juiz Wallace fez uma pergunta que, ao mesmo tempo, mostrou sua surpresa e trouxe uma crítica ao modelo que naquele momento conhecia: “Qual a utilidade disso?”

Esse tema da utilidade da sustentação oral num sistema de julgamento como o desenvolvido nos tribunais brasileiros e, em especial, no Supremo Tribunal Federal, quando do exercício da jurisdição constitucional, tem, desde então, suscitado minha reflexão. É impossível não subir a uma tribuna sem que venham à mente as palavras do juiz Wallace: “Qual a utilidade disso?”

Do ponto de vista do advogado, as utilidades práticas são reconhecidamente muitas. Como os relatórios são cada vez mais sucintos, a sustentação é o meio pelo qual se dá a conhecer ao colegiado os aspectos mais importantes da causa. Também por meio da sustentação se pode, ainda que o voto do relator venha pronto para a sessão de julgamento, levantar dúvidas que levam a um pedido de vista ou mesmo à abertura de uma divergência.

Entretanto, do ponto de vista da efetiva contribuição da sustentação para a deliberação que se desenvolve no tribunal, essa resposta não é tão simples. E é este o ponto a ser explorado na coluna de hoje, na qual se retoma o tema da deliberação, analisado na coluna de 17 de novembro de 2013. Naquela ocasião, foram examinados aspectos internos do STF, que contribuiriam para o incremento da deliberação no exercício da jurisdição constitucional brasileira, auxiliando seus ministros na formação de consensos.

Agora, por sua vez, será analisada a contribuição de elementos externos à deliberação do tribunal, em especial aquela trazida pelos personagens externos mais relevantes: os advogados que atuam perante a Suprema Corte. Nesse contexto, a pergunta que se pode adaptar a partir do questionamento do juiz Wallace é a seguinte: no que um monólogo de 15 minutos — ou de poucos minutos, como nos casos em que diversos amici curiae se manifestam no mesmo feito — contribui para a formação da decisão da corte? No que as sustentações orais, tal como definidas na legislação brasileira, afetam a deliberação na jurisdição constitucional?

Esse exame pode ser ilustrado pela referência que ensejou a pergunta que se busca responder, qual seja, a do modelo norte-americano. No sistema judicial americano, seja na Suprema Corte ou em tribunais de apelação, a discussão dos casos sub judice se dá em sessões fechadas das quais participam somente os juízes, as chamadas conferências. Nelas não são admitidos nem mesmo assessores ou garçons, sendo que, na Suprema Corte, cabe ao associate justice mais moderno a pitoresca tarefa de servir água para os colegas, abrir a porta da sala de conferências e atender ao telefone.[1]

Antes das conferências, porém, e após a distribuição de memoriais — briefs —ocorre a única parte pública do processo decisório da Suprema Corte americana, consistente nos oral arguments, em que os advogados das partes são chamados a apresentar suas razões perante o tribunal. Nessa ocasião, são questionados pelos juízes acerca dos pontos controversos da demanda, estabelecendo-se, assim, um debate efetivo sobre o tema em análise.

O falecido chief justice Rehnquist assim descrevia os oral arguments levados a cabo na Suprema Corte americana:

“A única parte publicamente visível do processo de decisão da Suprema Corte é a discussão oral. Trata-se do tempo destinado aos advogados de ambos os lados para apresentar suas posições aos juízes que decidirão seus casos. Em nossa corte, ocorrem na sala de sessões do prédio da Suprema Corte, ao longo de quatorze semanas a cada ano, duas semanas em cada um dos meses de outubro a abril. Durante as semanas de discussão oral, a corte tem sessões de 10h às 12h nas segundas, terças e quartas-feiras. Em cada um desses dias, são apresentados quatro casos, sendo destinados 30 minutos para os advogados de cada um dos lados. As discussões orais são abertas ao público e se pode geralmente encontrar nos jornais quais os casos que serão debatidos em determinado dia.

(…)

Advogados muitas vezes me perguntam se as discussões orais ‘realmente fazem alguma diferença’. Geralmente a pergunta é feito com um tom de ceticismo, ou mesmo cinismo, indicando que os juízes já se convenceram antes de iniciar a sessão e que as discussões orais são mera formalidade.

(…)

Há mais numa discussão oral do que se pode ver — ou ouvir. Nominalmente, é a hora que os advogados oponentes têm para apresentar seus respectivos argumentos para os juízes que decidirão o caso. Mesmo que fosse, de fato, em muito uma formalidade, considero que ainda assim teria a utilidade que muitas cerimônias públicas têm: forçar os juízes que decidirão o caso e os advogados que representam os clientes cujos destinos serão afetados pelo resultado do julgamento a ser olhar por uma hora e discutir como o caso será decidido.

Mas se um advogado é efetivo, o modo como ele apresenta sua posição durante a discussão oral terá relação com o modo como o caso é decidido. A maioria dos juízes tem concepções preliminares acerca dos casos quando vem para a sessão, e seria estranho se não as tivessem. Um juiz terá lido os memoriais apresentados pelas partes, e provavelmente terá conversado com algum de seus assessores sobre o caso, ou mesmo recebido um memorando escrito elaborado por um assessor. Um juiz que não se preparou de modo algum para uma discussão oral pode estar de mente mais aberta, mas essa abertura será decorrência da ignorância, não da imparcialidade”.[2]

No modelo norte-americano, pois, a participação dos advogados tende a ser mais profícua, uma vez que falam para juízes que são homogeneamente conhecedores da demanda e que podem, com base nesse conhecimento, com eles interagir para tirar dúvidas ou reforçar pontos de vista.

É verdade, também, que esse sistema tem suas falhas e nem sempre se pode afirmar, com absoluta certeza, que os juízes são, de algum modo, influenciados pelas discussões. O célebre chief justice Marshall, por exemplo, comentando tais sessões, afirmou que “a culminância da excelência judicial se tem na habilidade de olhar um advogado nos olhos por duas horas e não ouvir nem mesmo uma maldita palavra do que ele fala”.[3]

 Há casos de juízes que não se interessam por essas discussões, deixando de fazer perguntas aos advogados — como é o caso de Clarence Thomas, na Suprema Corte, que ficou quase sete anos sem pronunciar uma única palavra, sendo ainda incerto o teor de seu breve comentário em janeiro de 2013[4] —, assim como há situações em que os juízes pouco espaço deixam para os advogados, transformando perguntas e comentários em debates indiretos entre eles.

Essa última realidade é igualmente descrita por William Rehnquist, nos seguintes termos:

“Mas uma segunda função importante das discussões orais pode ser percebida a partir do fato de que esse é o único momento anterior aos debates nas conferências em que os juízes são obrigados a se reunir e a concentrar a atenção em um caso particular. As perguntas dos juízes, ainda que dirigidas nominalmente ao advogado sustentando o caso, podem ser de fato dirigidas a seus colegas. Um bom advogado reconhecerá esse fato e fará uso dele em sua apresentação. Perguntas podem revelar que um específico juiz tenha uma compreensão equivocada de um fato importante, ou talvez leia um determinado precedente de modo diverso daquele que o advogado pensa ser o correto. Se o juiz somente ficasse silente durante a discussão, não haveria oportunidade para que o advogado corrigisse a incompreensão fática ou para asseverar suas razões para interpretar o caso de modo como o compreende.”

Entretanto, apesar de ser possível a total falta de interação com o advogado ou mesmo a utilização da discussão como meio de debate interno, é inegável que esse modelo permite, em tese, efetiva interlocução entre as partes — representadas pelos advogados — e os juízes, tendo maior potencialidade de auxiliar na deliberação dos tribunais.

Realidade distinta é a que se tem no Brasil. Ainda que seja possível aos membros do colegiado ter conhecimento dos processos em pauta, a compreensão dos detalhes da causa é rara para além do relator, o que é até mesmo justificável ante o volume de demandas nos tribunais, do que não é exceção o Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, o relator já chega ao julgamento com seu voto escrito, baseado na visão singular que teve das manifestações juntadas aos autos pelas partes, sem que tenha tido, contudo, oportunidade de esclarecer qualquer aspecto com o advogado.

Nesse quadro, o monólogo de poucos minutos da sustentação oral em pouca coisa contribui para o processo de deliberação, ainda que — formalmente — anteceda o momento da decisão. Não há tempo para que se tenha uma maturação dos argumentos levantados da tribuna, que não chegam, assim, a ser adequadamente considerados. Não se estabelece a possibilidade de diálogo com os juízes para superação de dúvidas, a não ser por meio de esclarecimentos de fato ou questões de ordem, cada vez recebidas com menos paciência e atenção.

Em suma, voltando à questão do juiz Wallace, a utilidade da sustentação oral, nessa perspectiva, é praticamente nula. E sua falta de importância acaba tendo reflexo em outros aspectos do funcionamento dos tribunais, em especial do Supremo Tribunal Federal. Isso porque, sem um momento apropriado de interação com os juízes no processo deliberativo, buscam os advogados meios alternativos de apresentar seus argumentos oportunamente, ou seja, antes da formação da convicção definitiva pelo julgador.

Exemplo de consequência impensada da inutilidade das sustentações orais é a prática das audiências privadas, que os advogados buscam junto aos magistrados. Nada mais são do que uma tentativa de discutir os casos, tirar dúvidas, antes da cristalização do juízo de mérito do julgador. Tais audiências, deploradas por alguns magistrados e desconhecidas em muitas realidades estrangeiras, são legítimo sucedâneo de uma adequada sustentação oral. Se houvesse um momento em que magistrados e advogados pudessem, em público, discutir os casos, para que estes auxiliassem na deliberação daqueles, não haveria necessidade de audiências individuais.

Outra conseqüência do esvaziamento das sustentações que se verifica hoje, no Supremo Tribunal Federal, é certa deturpação do instituto das audiências públicas, de que trata o parágrafo 1º do artigo 9º da Lei 9.868/99. Segundo esse dispositivo, pode o relator, “em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos”, determinar a realização de audiência pública para “ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria”.

Muitas dessas audiências têm se realizado no STF desde que o ministro Carlos Ayres Britto utilizou o instituto pela primeira vez, no caso das células-tronco embrionárias.[5] Entretanto, cada vez mais as manifestações se assemelham a sustentações orais, não só em sua duração, mas especialmente em seu teor. Cada vez mais são advogados os participantes das audiências públicas, o que coloca em xeque a sua função de esclarecer aspectos específicos das controvérsias, por meio de depoimentos de especialistas. Chegou-se já à situação de manifestações na audiência pública serem praticamente repetidas da tribuna do STF, na forma de sustentação oral, quando do julgamento da causa, como se deu na ADI 4.650, relativa ao financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas.

Não se pretende, aqui, examinar a fundo essa questão, até mesmo por que as audiências públicas e os amici curiae são aspectos da jurisdição constitucional que estão a demandar análise mais detida e profunda. O que se pretende, sim, é indicar que as audiências públicas fazem, muitas vezes, a função da sustentação oral, permitindo a apresentação de argumentos antes da formação mais sedimentada de um juízo por parte do magistrado.

Essas duas realidades — a necessidade de audiências privadas e o desvirtuamento das audiências públicas — apontam para a disfunção da sustentação oral, que merece passar por reformas, as quais somente poderão advir de um amplo debate, entre juízes e advogados, acerca da natureza da jurisdição constitucional e do modo como podem esses atores contribuir para o incremento de sua densidade deliberativa.


[1] John Paul Stevens. Five chiefs. A Supreme Court memoir. New York: Back Bay Books, 2011.

[2] William H. Rehnquist. The Supreme Court, New York: Vintage Books, 2001, Capítulo 13.

[3] Albert J. Beveridge. The life of John Marshall. Building of the nation 1815-1835, vol. IV, Washington: Beard Books, 2000, p. 82-83: “Marshall said and did things that interested other people and caused them to talk about him. He was noted for his quick wit, and the bar was fond of repeat anecdotes about him. ‘Did you hear what the Chief Justice said another day?’ – and then the story would be told of a bright saying, a quick repartee, a picturesque incident. Chief Justice Gibson of Pennsylvania, when a young man, went to Marshall for advice as to whether he should accept a position offered him on the State bench. The young attorney, thinking to flatter him, remarked that the Chief Justice had ‘reached the acme of judicial distinction’. ‘Let me tell you what that means, young man’, broke in Marshall. ‘The acme of judicial distinction means the ability to look a lawyer straight in the eyes for two hours and not hear a word he says’”.

[4] Robert Barnes. “Clarence Thomas breaks long silence during Supreme Court oral arguments”. The Washington Post, edição de 14.01.2013: http://www.washingtonpost.com/politics/clarence-thomas-breaks-long-silence-during-supreme-court-oral-arguments/2013/01/14/a7c6023c-5e7a-11e2-9940-6fc488f3fecd_story.html

[5] Sobre essa primeira audiência pública realizada no STF, interessante a análise de Fabrício Juliano Mendes Medeiros, que – na qualidade de Assessor de Ministro – foi responsável por sua organização: “O Supremo Tribunal Federal e a primeira audiência pública de sua história”. Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, v. 9, n. 84, abr./maio 2007, p. 41-48, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_84/Artigos/PDF/FabricioJuliano_rev84.pdf 

 

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