Acompanhamento adequado

Publicidade em julgamentos da Receita prestigia Constituição

Autor

  • Eduardo Martins Neiva Monteiro

    é conselheiro representante da Fazenda Nacional na Primeira Seção de Julgamento do Carf ex-Julgador na DRJ — Recife (PE) mestre em Direito e Especialista em Direito Constitucional e em Comércio Exterior.

6 de fevereiro de 2014, 14h32

A noticiada decisão liminar proferida em 27 de janeiro de 2014 pela Justiça Federal do Rio de Janeiro[1], a favor da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção Rio de Janeiro (RJ), no sentido de obrigar a publicação prévia das pautas de julgamento e permitir o comparecimento das partes e seus advogados para assistir às sessões de julgamento das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ), podendo, inclusive, “ofertar questões de ordem sobre aspectos de fato da causa”, inegavelmente consiste em prestígio à Constituição Federal.

Apesar de não se ter permitido aos patronos sustentarem oralmente suas razões de defesa, não deixa de ser um importante marco rumo ao aperfeiçoamento, pelo Fisco, do processo administrativo tributário federal.

Não obstante ter sido fundamentada nos direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, põe holofotes sobre o princípio/garantia da publicidade, também de índole constitucional.

O Mandado de Segurança Coletivo impetrado pela OAB – Rio de Janeiro (RJ) não pode ser entendido como uma tentativa de se reduzir a quantidade de decisões favoráveis ao Fisco em primeira instância, ou mesmo de se evitar a parcialidade dos julgadores fazendários.

Longe disso, buscou-se, na realidade, garantir o adequado acompanhamento dos julgamentos pelos contribuintes e seus advogados. Nada mais natural!

Tal providência, acompanhada do provimento judicial, ainda que liminar, pode iniciar uma mudança de mentalidade com vistas a se proporcionar efetivamente o princípio da publicidade à plenitude, que tem assento em mais de um dispositivo da Constituição Federal, como podemos perceber:

Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

…..

LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

…..

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

…..

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

…..

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

X – as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros;

Observe-se que no âmbito judicial, por força constitucional, nem mesmo a lei pode excluir a presença dos advogados das partes. Qual a lógica, então, de se adotar postura diferente nos julgamentos administrativos realizados por órgãos colegiados?

Se a Administração Pública deve obediência à publicidade, torna-se inegociável tal garantia, no mínimo quanto às partes interessadas na solução da controvérsia instaurada perante as DRJ, que não podem ser privadas de conhecer o teor dos debates.

Com razão, presidente e vice-presidente da Comissão de Estudos Tributários da OAB-RJ, Maurício Pereira Faro e Gilberto Fraga, quando ressaltam que “para estarrecimento de todos, as sessões de julgamento sempre foram fechadas e revestidas de um sigilo absolutamente injustificado e divorciado de qualquer respaldo lógico ou jurídico”[2].

A publicidade ainda pode ser enaltecida sob o viés do controle social, dogma tão caro ao Estado democrático de Direito, o que, por óbvio, não se exerce à saciedade, como se deseja, quando se restringe o acesso aos julgamentos, ainda que realizados no âmbito administrativo.

Funcionamento das Delegacias
As DRJ desempenham um relevante papel no contencioso administrativo tributário federal, quando apreciam, em primeira instância, por exemplo, processos de autos de infração ou notificação de lançamento; de suspensão de imunidade ou isenção; e, ainda, de pedidos de compensação, restituição ou ressarcimento.

Não se conformando com decisões proferidas por unidades locais (preparadoras) da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), os contribuinte podem, no prazo legal, apresentar defesa com vistas a reverter o entendimento inicial do Fisco federal, denominadas impugnação e manifestação de inconformidade.

O Decreto 7.574, de 29 de setembro de 2011, que regulamenta o processo de determinação e exigência de créditos tributários da União, o processo de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal e outros processos que especifica, sobre matérias administradas pela RFB, assim dispõe:

Art. 61.  O julgamento de processos sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, e os relativos à exigência de direitos antidumping e direitos compensatórios, compete em primeira instância, às Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento, órgãos de deliberação interna e natureza colegiada da Secretaria da Receita Federal do Brasil (Decreto nº 70.235, de 1972, art. 25, inciso I; Lei nº 9.019, de 30 de março de 1995, art. 7º, §5º).

Parágrafo único.  A competência de que trata o caput inclui, dentre outros, o julgamento de:

I — impugnação a auto de infração e notificação de lançamento (Decreto nº 70.235, de 1972, art.14);

II — manifestação de inconformidade do sujeito passivo em processos administrativos relativos a compensação, restituição e ressarcimento de tributos, inclusive créditos de Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI (Lei nº 8.748, de 1993, art.3º, inciso II; Lei nº 9.019, de 1995, art. 7º, §1º e §5º); e

III — impugnação ao ato declaratório de suspensão de imunidade e isenção (Lei no 9.430, de 1996, art. 32, §10).

As DRJ são unidades de deliberação interna da RFB, de natureza colegiada, conforme prevê o Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, que regula o processo administrativo tributário no âmbito federal:

Art. 25.  O julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete:

…..

I — em primeira instância, às Delegacias da Receita Federal de Julgamento, órgãos de deliberação interna e natureza colegiada da Secretaria da Receita Federal;

A criação destas Delegacias especializadas, dentre outras importantes razões, teve como principal motivação a necessidade e conveniência de separar a competência das autoridades responsáveis pela fiscalização daquelas responsáveis pela atividade de julgamento. Esta dissociação de poder/dever, com efeito, buscou potencializar o cumprimento do princípio da imparcialidade que melhor atende aos interesses das partes no processo[3].

Publicidade mitigada
Relativamente às sessões de julgamento, o acesso não é franqueado ao público, transcorrendo, não obstante o evidente compromisso do legislador constituinte com a publicidade, sem qualquer participação das partes interessadas no litígio (Procuradoria da Fazenda Nacional e contribuintes), sendo condenável tal modelo e insuficiente a publicação apenas das ementas no sítio da RFB na internet.

Atualmente, sequer se toma conhecimento de quando determinado processo irá a julgamento, pois as pautas não são publicadas previamente no Diário Oficial da União ou divulgadas.

Depõe contra o princípio/garantia constitucional da publicidade permitir que os interessados apenas conheçam o resultado das deliberações internas por meio do acórdão final, sonegando-lhes a RFB o direito de presença que lhes proporcionaria conhecer o teor dos debates que o precederam.

Seria ingênuo afirmar que acórdãos, em especial os decorrentes de casos mais complexos, sejam capazes de fielmente retratar as discussões travadas durante o julgamento. Ora, a abertura dos debates ao público, ou no mínimo às partes, auxilia na melhor compreensão de todos os argumentos levados em consideração pela Turma Julgadora, não apenas dos que restaram afinal formalizados no acórdão.

Que não se compare tal situação com as decisões monocráticas, ainda que proferidas pelo Poder Judiciário.

Nas DRJ, não custa repetir, as decisões são colegiadas, muitas vezes precedidas de calorosos debates, a exemplo do que ocorre em segunda instância no Carf, diferentemente do exercício solitários dos juízes ou demais autoridades com poder decisório monocrático.

Por mais que haja argumentos contrários por parte da Secretaria da Receita Federal do Brasil, para não permitir o acesso às sessões de julgamento, como a falta de estrutura e de pessoal, ou a necessidade de se impor celeridade aos julgamentos; a publicidade, como principio que é, não pode ceder frente a obstáculos de outra ordem, dissociadas de conteúdo normativo. A compreensão do ordenamento jurídico ocorre em uma dinâmica a partir da Constituição, à qual devem se conformar os atos normativos de hierarquia inferior; não o contrário.

Recentemente, o ex-subsecretário de Tributação da RFB, Sandro de Vargas Serpa, justificou o modelo de funcionamento das DRJ na proteção ao sigilo fiscal, tendo concluído que a sua flexibilização, por exemplo pelo Carf, justificar-se-ia em razão de tal órgão estar fora da RFB, sendo composto por conselheiros representantes dos contribuintes que não são auditores-fiscais[4].

É verdade que o sistema de julgamento nas DRJ, tendo como uma de suas características a confidencialidade dos debates, não se reproduz em segunda instância, quando são realizados com amplo acesso ao público[5].

Ora, a Secretaria da Receita Federal do Brasil também compõe a estrutura do Ministério da Fazenda, cujo titular da pasta tem propiciado ao longo dos anos, ao elaborar o Regimento Interno do Carf, ampla publicidade às deliberações, antes (com a publicação prévia da pauta de julgamento no Diário Oficial da União), durante (com abertura das sessões ao público, com possibilidade de distribuição de memoriais e sustentação oral pelas partes interessadas) e após os julgamentos (sendo disponibilizada a íntegra dos acórdãos no sito do Carf na internet).

Assim, em certa medida, a decisão quanto à flexibilização do sigilo já foi tomada pelo sr. ministro de Estado da Fazenda, a quem o secretário da Receita Federal do Brasil subordina-se.

Acerca da participação de conselheiros representantes dos contribuintes, a exemplo dos representantes da Fazenda Nacional, igualmente exercem uma função pública e, como tal, comprometem-se também com o sigilo de dados, podendo ser responsabilizados, civil, administrativa e penalmente, em caso de indevida violação.

Com a devida regulamentação, afasta-se o risco, por exemplo, de os julgadores incorrerem em qualquer violação de sigilo.

Não obstante as considerações do ex-subsecretário de Tributação da RFB, importantes não apenas pelas ponderações em si, mas também para se desvendar os reais motivos de se permanecer com o combatido modelo de funcionamento das DRJ, não há razão, em um Estado Democrático de Direito, para se desviar da Constituição Federal, que estabelece a primazia da publicidade dos julgamentos.

Como visto, dispõe que nos tribunais, mesmo as decisões administrativas devem ser tomadas em sessão pública, ou ao menos com a participação dos interessados ou seus advogados.

Além de representar transparência, franquear ao público o acompanhamento das sessões de julgamento possibilitaria o controle popular, ou por outros órgãos, o que só reforçaria a legitimidade dos acórdãos proferidos pelas DRJ.

Uma decisão só pode ser questionada caso seja conhecida sua fundamentação em todas as suas nuances, com publicidade, sem a qual se caracteriza o cerceamento do direito de defesa[6]:

Aspecto relevante da fundamentação dos votos que integram uma decisão de órgão colegiado reside na publicidade das sessões nas quais esses votos são proferidos. É inadmissível uma sessão secreta, onde um dos membros do órgão colegiado pode fundamentar seu voto em razões inteiramente que jamais publicaria […]. Os votos, para serem válidos, devem ser fundamentados e proferidos publicamente.

A Constituição admite expressamente, é certo, que a lei pode “limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”. Tem-se nessa ressalva a restrição máxima admitida.

Repudia-se qualquer hipótese de julgamento secreto, sem a necessária publicidade, salvo nas hipóteses constitucionais excepcionais[7], sendo fundamental à garantia de demais direitos[8]:

A publicidade é princípio constitucional da Administração, previsto no artigo 37 da Constituição da República, em face de, numa sociedade democrática, não haver participação do povo no exercício do poder, se não se contar com conhecimento público dos atos por ele praticados. Este princípio se apresenta com um daqueles que se põem como fundamentais para que o processo possa cumprir o seu objetivo garantidor de direitos, especialmente aqueles que concernem à liberdade.

Depõe contra o princípio constitucional da publicidade o fato de os interessados não poderem conhecer o teor dos debates, nem sempre retratados nos acórdãos. Não é exagero concluir que, principalmente nos casos de maior complexidade, pode restar prejudicado até mesmo o direito de defesa em segunda instância, pois os contribuintes são privados de conhecer todos os argumentos levados em consideração.

Considerações finais
Além de representar transparência, franquear o acompanhamento das sessões de julgamento fortalece a fiscalização popular, não se podendo retirar do controle social a atividade judicante.

Quem gerencia interesse público deve ser controlado.

O funcionamento da Administração deve voltar-se para o público e de forma pública, transparente, sem flertes para o mistério. A res publica exige trato adequado, mormente quando em disputa interesses tributários tão relevantes, dos contribuintes e da Fazenda Nacional.

Nos tempos atuais não se pode temer o escrutínio público, lastreando-se o Estado democrático também na transparência, tratando-se o princípio da publicidade de uma verdadeira obsessão do legislador constituinte.

Na análise do funcionamento das DRJ, o importante é não perdê-lo de vista, até porque, como visto, de acordo com a Carta Magna, a lei só pode restringir a publicidade dos atos processuais para proteger a intimidade ou o interesse social (artigo 5º, LX); devendo a Administração Pública federal, que engloba a Secretaria da Receita Federal do Brasil, obedecer ao princípio da publicidade (artigo 37). Se, em regra, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário são públicos (artigo 93, IX), devendo, inclusive, as decisões administrativas serem motivadas em sessão pública (artigo 93, X), resta desprovido de fundamento a manutenção de julgamento “às portas fechadas” no âmbito das DRJ, mormente quando consideradas as partes interessadas no litígio (a União, por meio da Procuradoria da Fazenda Nacional, e os contribuintes).

A decisão judicial referida no início deste artigo é dotada de um enorme significado, especialmente para que se chegue a um modelo que esteja em consonância com o imperativo constitucional da publicidade.

Com a devida abertura dos julgamentos no âmbito das DRJ, ganham todos, contribuinte, Fazenda Nacional e a própria Secretaria da Receita Federal do Brasil, com o reconhecimento da adequada legitimidade das decisões proferidas por suas unidades de julgamento, que, reconhecidamente, prestam relevantes serviços ao Estado brasileiro.


[1] Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-jan-30/liminar-rj-transparencia-julgamentos-receita-inspira-oab. Consulta em 1/2/14.

[2] Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-jul-17/oab-rj-oficia-receita-federal-advogados-participem-julgamentos. Consulta em 1/2/14.

[3] PAIVA, Ormezindo Ribeiro de. Delegacias da Receita Federal de Julgamento e evolução das normas do processo administrativo fiscal. In Processo administrativo fiscal. 4º Vol. ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). São Paulo: Dialética, 1999, p.135.

[4] Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-jul-17/oab-rj-oficia-receita-federal-advogados-participem-julgamentos. Consulta em 1/2/2014.

[5] No CARF, os debates realizam-se com acesso ao público. Conforme previsão regimental, há ainda a possibilidade de se ampliar a divulgação, com a implementação de realização de sessões virtuais de julgamento em alguns Estados da Federação, o que permitirá o acesso a advogados, contribuintes e demais interessados que não podem se deslocar à Brasília constantemente para acompanhá-las.

[6] MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos do direito de defesa no processo administrativo tributário. In Revista Dialética de Direito Tributário. N. 175. São Paulo: Oliveira Rocha, abril/2010, p.13.

[7] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.279.

[8] RIBEIRO, Wilton Luiz Cabral. A decisão administrativa no processo administrativo tributário: consequências e limitações de sua aplicação. In Temas atuais de direito tributário., V. II. FEITOSA, Raymundo Juliano Rego e QUEIROZ, Mary Elbe (orgs.). Recife: ESAF, 2003, p.398.

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    é conselheiro representante da Fazenda Nacional na Primeira Seção de Julgamento do Carf, ex-Julgador na DRJ — Recife (PE), mestre em Direito e Especialista em Direito Constitucional e em Comércio Exterior.

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