Dialética da sentença

Decisão de juiz não decorre diretamente das premissas

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

1 de fevereiro de 2014, 5h04

A apresentação da sentença como uma estrutura composta de uma premissa maior, de uma premissa menor e de uma conclusão decorrente das premissas revela-se como uma forma bastante pobre e incompleta de compreensão do raciocínio judicial. A noção de silogismo jurídico comumente apresentada não reflete minimamente a complexidade do ato de decidir e nem revela como se dá no plano da prática o debate que precede a decisão judicial.

Utilizando a taxonomia aristotélica[1] observamos que o silogismo jurídico é do tipo dialético — e não apodíctico — na medida em que trabalha com interpretações correntes, opiniões dominantes, pontos de vista minoritários e até mesmo inéditos a serem contrastados com o atual estado do conhecimento da questão, em um campo onde impera o provável, reino este diverso daquele âmbito do verdadeiro/falso.

Sob a lente da “teoria dos quatro discursos” de Olavo de Carvalho[2] pode ser dito que a cognição judicial começa no plano do possível, quando da análise da petição inicial[3], em alguns casos passa pelo verossímil (inversão do ônus da prova no Direito do Consumidor) ou, ainda, satisfazendo-se com a verossimilhança para conceder-se uma medida cautelar, findando com um juízo de probabilidade após a instrução probatória — dependendo a procedência de um grau maior ou menor a depender do tipo de demanda, tal como bem pontificado por Danilo Knijnik[4]. E aqui convém lembrar a excelente observação feita por Ovídio Araújo Baptista da Silva[5] ao longo de sua profícua carreira quando tantas vezes advertiu que foi por não se aceitar lidar com juízos de verossimilhança e de probabilidade que demorou-se tanto a aceitar a utilização da antecipação de tutela e, ainda, por adotar-se uma concepção de tempo como algo neutro, tendo a demora um efeito devastador sobre aquele que tem direito e fica na espera da solução do caso, tal como posteriormente foi sumamente bem explicado por Luiz Guilherme Marinoni[6].

A formação da premissa maior (a norma) resulta de um debate sobre a compreensão do sistema jurídico e não é atividade livre de polêmica. A norma não é dada e nem é extraída, mas decorre da atividade hermenêutica de alguém que compreende um determinado texto, um determinado sistema jurídico posto e a partir dele atribui um sentido normativo, algo construído e que decorre da força das fontes jurídicas e da inteligência do intérprete.

A construção da premissa menor (o fato) costuma ser objeto de acesa controvérsia e como não se pode ter acesso ao passado, dependente da reconstrução por meio da atividade probatória, inviável a absoluta certeza de como ocorreu o acontecimento posto sub judice. Não apenas a distância temporal impede uma visão unívoca da realidade, mas também a diversidade de pontos de vista sobre os fatos interfere na formação do caso a ser decidido. Longe de querer-se aqui defender um relativismo irracionalista que recusa a existência da realidade objetiva, mas é de rigor que se saiba que nem mesmo a melhor dilação probatória permite que se revele o fato como efetivamente aconteceu, pois nem mesmo a versão mais próxima de um ideal cognitivo jurídico, a saber, o flagrante de um crime, permite que se saiba com certeza absoluta como realmente deu-se a dinâmica da cena sob exame. É claro que se busca a maior certeza possível, mas o erro é sempre uma possibilidade aberta e a cognição nunca atinge um estado de perfeição.

Do mesmo modo, a conclusão não decorre diretamente e automaticamente das premissas, bastando pensar nas hipóteses de modulação dos efeitos previstas no artigo 27 da Lei Federal 9.868/99. Pensar que a conclusão decorre de forma imediata e necessária das premissas implicaria em assumir uma postura do tipo “faça-se justiça ainda que o mundo pereça” (fiat iustitia, pereat mundus), algo que vai contra o estado de pacificação social e de segurança jurídica protegidos pela Constituição Federal e que, como bem apontou Karl Larenz[7], revela a face política de uma determinada dimensão do exercício da jurisdição.

Isso tudo porque a formação do juízo é um processo predominantemente dialético que trabalha predominantemente com o plausível, o verossímil e o provável, às vezes, ainda, com o meramente possível e muito raramente com o que é certo, firme, indubitável. O julgador utiliza um raciocínio dialético que somente em sua formalização derradeira apresenta-se como formalmente lógico. Enquanto as partes buscam legitimamente persuadir — lídimo exercício da prática retórica — ao magistrado cabe a análise dos discursos apresentados para apresentar um outro discurso, de síntese do quanto dito à luz do filtro da razão e da atenção ao caso concreto.

A estrutura dialética do discurso judicial não o torna arbitrário, mas, pelo contrário, é o que permite o controle do rumo da decisão, vez que impõe que se contraponham as versões das partes e se explicite as razões da adoção de um ponto de vista e não de outro. Com a formalização do pensamento dialético em uma estruturação lógica surge uma segunda instância de controle onde torna-se ainda mais visível eventual deficiência do raciocínio levado a efeito pelo julgador.

A existência de interpretações jurídicas opostas, bem como a variação de afirmações sobre como os fatos ocorreram, não torna a decisão judicial um ato irracional, aleatório, pois mesmo que o Direito não opere no esquema verdadeiro/falso é impositiva a persuasão racional, seja de quem profere a decisão, seja perante os que sentirão seus efeitos e os que dela tomarão conhecimento. Note-se que a boa prova arrasta o julgador e que a interpretação jurídica quanto mais consistente for mais difícil torna-se a aceitação da compreensão hermenêutica ofertada pelo adversário. É a instrução probatória contundente e a advocacia da tese mais convincente que determinam o curso do resultado do pleito — e não o que o magistrado comeu no café da manhã, tal como bem leciona Humberto Ávila[8]:

“A concepção realista, de que a decisão judicial depende de aspectos frívolos, como se o juiz teve uma boa noite de sono e tomou um bom café da manhã, é, ela, sim, totalmente irreal, pois a decisão nunca opera em um vácuo, tendo em vista, entre outros fatores, os significados intersubjetivamente assimilados à linguagem e os séculos de interpretação e de significações compartilhadas pelos operadores do Direito.”

O processo dialético está presente sempre e em todos os níveis e lugares do Direito e da Política.

Antes da feitura de uma Constituição há intenso debate sobre os prós e contras de determinada opção legislativa. Após o advento da ordem constitucional, sobre ainda muito espaço para deliberar-se qual o caminho a ser tomado pela legislação infraconstitucional, exceto naquele espaço já ocupado pela manifestação constitucional. Da Constituição não se deduzem todos os comandos reguladores da vida social, como se houvesse um sistema axiomático-dedutivo no qual haveria um desdobramento linear do abstrato ao concreto. Pelo contrário, subsiste bastante espaço para a manifestação político-legislativa, sempre que não vedada a opção legislativa pela ordem constitucional vigente, cuja deliberação assume, com razão Canaris[9] neste ponto, caráter verdadeiramente dialético (tópico), opondo-se os fundamentos a favor e contra. Quando adotada posição pelo legislativo que não seja vedada pela Constituição, descabe ao Judiciário dizer se outra opção era melhor, pois a intervenção da jurisdição constitucional é indevida quando a questão foi solvida pelo Legislativo dentro do quadro autorizador da constitucionalidade, daí advindo um pernicioso ativismo judicial que não se confunde com a legítima e devida atuação judiciária no caso de omissão inconstitucional, seja total, seja parcial, inclusive quando houver proteção deficiente.

Por outro lado, cumpre dizer que a presença da disposição legal pertinente ao caso concreto não torna o debate despiciendo, desnecessário. Perante o texto constitucional/legal há aceso debate que impõe a consideração sobre os pontos de vista lançados sobre o mesmo. Os pontos de vista que ingressam no campo do debate dialético são aqueles pertinentes ao caso e dizem respeito às normas, aos fatos e a todos outros aspectos pertinentes na discussão do pleito, não se tratando de opiniões lançadas no vácuo e em paralelo com o sistema jurídico como quis fazer crer Claus-Wilhelm Canaris ao tentar refutar Theodor Viehweg. A partir da caricatura de Viehweg pintada por Canaris emerge, realmente, aquilo que Canaris deseja, a saber, o caráter meramente residual a que estaria relegado o debate de opiniões. Como bem aponta Olavo de Carvalho[10], uma das fontes das opiniões que são trazidas ao debate é o meio científico — e é por isso que o discurso jurídico invoca a doutrina, a jurisprudência, os costumes para iluminar a compreensão do problema e do sistema jurídico, em uma dialética que vai do concreto (caso) ao abstrato (legislação), da universalidade da justiça (igualdade, isonomia) aos contornos daquela situação existencial (equidade, epiekeia).

O erro de Viehweg, na verdade, não foi apontar a importância das opiniões contrapostas para fazer emergir a solução do problema, mas sim em chamar este procedimento de tópica quando se trata na verdade da dialética aristotélica, dando-se a impressão de que se invocariam os tópicos aristotélicos quando, na verdade, o que se advoga é a persuasão por meio dos topoi retóricos, estes sim dotados de conteúdo material, vez que os tópicos (topoi dialéticos) são, na verdade, esquemas formais sem significado próprio[11]. Aqui, mais uma vez, a “teoria dos quatro discursos” de Olavo de Carvalho revela-se absolutamente correta e evita mal-entendidos.

A pluralidade de interpretações acentua o caráter dialético do debate jurídico e revela como o debate contrapondo as opiniões não tem caráter residual como advoga Claus-Wilhelm Canaris[12] em crítica ao que escreveu Theodor Viehweg[13]. Aliás, Canaris[14] chegou a admitir que no Direito Constitucional — devido à maciça presença de cláusulas gerais — a tópica desempenharia uma função bem mais relevante. Ora, com a crescente constitucionalização do Direito, já adotando-se a visão de Canaris impor-se-ia um apreço pela doutrina de Viehweg bem maior do que o quanto exposto por Canaris.

Claus-Wilhelm Canaris[15] acerta em cheio quando atribui ao sistema uma tendência generalizadora e à tópica (dialética) uma força individualizadora do ideal de justiça, mas erra ao negar a natureza dialética do pensamento jurídico mesmo em áreas nas quais há normatização precisa (por exemplo direito civil). No fundo, a negação da dialética ante uma normatização mais específica é o reflexo do caráter profundamente analítico do pensamento de Canaris[16] que inclusive chega a apostar no Direito como uma ciência do entendimento correto — e não da atuação certa — como se a atividade judicial não contemplasse ambas, tal como já apontado quando do apontamento sobre a dimensão política do exercício da jurisdição.

Na linha aristotélica, temos que a decisão é sempre uma mediação consciente entre o concreto e o abstrato, o individual e o geral, em uma dialética abastecida pelos dados fornecidos pela situação posta diante da vista de quem decide. Logo, a decisão sempre emerge da tensão entre a sistematização do Direito — que promove a isonomia e a previsibilidade — e as nuances do caso concreto — que por sua vez atraem a tendência individualizadora da justiça. No Brasil, Juarez Freitas[17] fez com maestria a conjugação do pensamento tópico e do sistemático, alcançando uma compreensão bastante superior às de Viehweg e Canaris.


[1] ARISTÓTELES. Órganon. 2 ed. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2010, p. 347 e 348 [Tópicos, Livro I, 100a18-100b25].

[2] CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas: Vide Editorial, 2013.

[3] Como bem aponta Olavo de Carvalho (SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão, Introdução, Notas e Comentários de Olavo de Carvalho. Tradução de Daniela Caldas e Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 217) o exame da exordial representa um ex concessis, pois enfrenta a peça inaugural em seus próprios termos, sem a contraposição usual da versão do oponente, fazendo-se uma concessão de que é viável, salvo contradição em seus próprios termos ou vedação legal visível primo ictu oculi. E é por isso que entendemos que a cognição sumária está mais próxima da poética e da retórica do que da dialética.

[4] KNIJNIK, Danilo. A Prova nos Juízos Cível, Penal e Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

[5] Dentre outras obras: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e Execução na Tradição Romano-canônica. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 109.

[6] MARINONI, Luiz Gulherme. Tutela Antecipatória e Julgamento Antecipado: parte incontroversa da demanda. 5ª ed. São Paulo: RT, 2002, pp. 21 e 22.

[7] LARENZ, Karl. Metodologia de la Ciencia de Derecho. Barcelona: Ariel, 2001, p. 504 e 505.

[8] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 177.

[9] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (Systemdenken um Systembegriff in der Jurisprudenz) 5ª ed. Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 263 e 264.

[10] CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas: Vide Editorial, 2013, p. 81.

[11] O valiosíssimo esclarecimento é de Olavo de Carvalho na obra Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão de Arthur Schopenhauer (SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão, Introdução, Notas e Comentários de Olavo de Carvalho. Tradução de Daniela Caldas e Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 206 e 207).

[12] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (Systemdenken um Systembegriff in der Jurisprudenz) 5ª ed. Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 243 ss.

[13] VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência: Uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos (Topik und Jurisprudenz: Ein Beitrag zur rechtswissenschaftlichen Grundlagenforschung). Tradução da 5ª edição alemã por Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2008.

[14] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (Systemdenken um Systembegriff in der Jurisprudenz) 5ª ed. Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 277.

[15] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (Systemdenken um Systembegriff in der Jurisprudenz) 5ª ed. Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 272.

[16] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (Systemdenken um Systembegriff in der Jurisprudenz) 5ª ed. Tradução de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 266.

[17] Veja-se a seminal obra: A Interpretação Sistemática do Direito, já em sua quinta edição.

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    Tiago Bitencourt De David é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUC-RS), especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

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