Direito Comparado

Suprema Corte do Canadá muda entendimento sobre boa-fé (Parte 1)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

31 de dezembro de 2014, 14h58

Spacca
Em uma de suas últimas decisões de 2014, a Suprema Corte do Canadá procedeu a um violento revirement de jurisprudence no exame da boa-fé nos contratos. Trata-se de uma mudança jurisprudencial que altera orientação centenária no Direito canadense de matriz inglesa, posto que o Direito da Província do Quebec já havia incluído formalmente essa cláusula geral no Código Civil de 1994. O acórdão de 13 de novembro de 2014, que é referido como caso Bhasin v. Hrynew [2014 SCC 71], é também sensível por afastar o Direito Civil canadense anglófono das tradições inglesa e norte-americana nesse campo.

O julgamento contou com a participação dos justices Lachlin, LeBel, Abella, Rothstein, Cromwell (relator), Karakatsanis e Wagner. A indexação da bibliografia utilizada no julgamento permite identificar quais autores foram mais influentes na formação das convicções da Suprema Corte. Basicamente utilizaram-se obras do Canada, do Quebec, do Reino Unido e dos Estados Unidos. Os mais relevantes foram Jean-Louis Baudouin e Pierre‑Gabriel Jobin (Les obligations. 7e éd. par Pierre‑Gabriel Jobin et Nathalie Vézina. Cowansville, Quebec: Yvon Blais, 2013), Hugh Beale e Tony Dugdale (Contracts Between Businessmen: Planning and the use of contractual remedies. (1975), 2 Brit. J. Law & Soc. 45), E. Allan Farnsworth (Good faith performance and commercial reasonableness under the Uniform Commercial Code” (1963), 30 U. Chicago L. Rev. 666), Elisabeth Peden (When Common Law trumps equity: the rise of good faith and reasonableness and the demise of unconscionability” (2005), 21 J.C.L. 226), além do clássico Chitty on Contracts (31st ed., vol. I, General Principles, by H. G. Beale et al., eds. London: Sweet & Maxwell, 2012).

A apresentação do caso seguirá a estrutura do acórdão, com os elementos descritivos e, em seguida, um resumo dos fundamentos do relator Cromwell. Como se trata de um julgado com mais de 100 páginas, a coluna será dividida em duas partes.

Elementos descritivos do caso
Harish Bhasin, em 1989, por meio da pessoa jurídica Bhasin e Associados, foi contratado pela Canadian American Financial Corp (Can-Am) com o objetivo de negociar, no varejo, planos de poupança educacional (education savings plans — ESP’s) a potenciais investidores. Esses varejistas ganhavam o pomposo título de enrollment directors, algo como “diretores para inscrições”, e sua remuneração consistia no reembolso de despesas e um bônus por cada “inscrição” realizada nos ESP’s. Bhasin, na prática, era um pequeno empresário que arregimentava uma rede de revendedores, os quais saíam a campo para negociar esses fundos. Bhasin foi inicialmente muito bem sucedido, tendo ocupado posições elevadas nos rankings nacionais da Can-Am.

Em 1998, a Can-Am e Bhasin celebraram um novo contrato, em substituição ao negócio de 1989, que era por prazo indeterminado. O negócio de 1998 era um commercial dealership contract, que se apresenta como uma espécie mista de concessão e representação comercial. O acórdão salienta que esse contrato não era uma franquia, não se sujeitando ao dever de lealdade previsto no art. 7º do Franchises Act do Canadá. No entanto, havia no contrato de 1998 uma série de cláusulas típicas de uma franquia, como as seguintes: a) Bhasin submeteu-se a uma cláusula de exclusividade que o obrigava a vender apenas os produtos da Can-Am; b) a Can-Am controlaria as listas de clientes e assumiria a responsabilidade por uniformizar as políticas comerciais de todos os “diretores para inscrições”; c) Bhasin não poderia vender, transferir ou fundir sua operação sem a prévia autorização da Can-Am; d) o contrato passou a ter vigência de 3 anos, admitida a resolução antecipada por justa causa e a renovação automática por igual período, salvo o direito de resilição a ser exercido com aviso prévio de seis meses.

Na instrução do processo, comprovou-se que havia grande animosidade entre Bhasin e um certo Hrynew, outro enrollment director da Can-Am. Desse modo, Hrynew pressionou a Can-Am para que não renovasse o contrato com Bhasin. A empresa passou a se “comportar desonestamente” com Bhasin. Foi também descoberto que as relações entre a Can-Am e Hrynew eram antigas e que este pretendia ocupar o lucrativo nicho de mercado de Bhasin. O próprio Hrynew procurou Bhasin, em diversas ocasiões, para convencê-lo a fundir suas empresas, no que também contou com o apoio da Can-Am para levar a efeito tais pressões, inclusive com ameaças. O juízo de primeiro grau considerou que essa atitude configurou uma “tentativa hostil” de provocar uma fusão indesejada por uma das partes.

Nesse ínterim, a Comissão de Valores Mobiliários de Alberta, agência com quem Hrynew possuía boas relações, pressionou a Can-Am para que indicasse um único representante provincial. A Can-Am, então, nomeou Hrynew para essa função, que lhe permitia também auditar outros enrollment directors localizados na província canadense. Bhasin prostestou contra essa designação, especialmente porque daria a Hrynew o direito de acessar sua contabilidade e dados secretos de interesse comercial.

As provas dos autos não deixaram dúvidas de que a Can-Am mentiu para Bhasin e que houve diversas tentativas de obrigá-lo a se subordinar ou a fundir sua empresa com a de seu concorrente Hrynew.

Com o passar do tempo, os ataques à posição de Bhasin também ocorreram sob a forma de sedução de membros de sua rede de vendas por parte de Hrynew, que passou a aliciar e contratar os melhores agentes de Bhasin. A remuneração decorrente das comissões de Bhasin caiu sensivelmente. Por fim, o contrato não foi renovado.

Bhasin resolveu processar a Can-Am e Hrynew. O juiz do caso no Alberta Court of Queen’s Bench considerou que o exercício do direito potestativo de renovar ou não o contrato seria mitigado pela boa-fé e que Hrynew induziu, de modo doloso, a quebra do contrato, tendo-se formado entre ele e a Can-Am um conluio. A Corte de Alberta também reconheceu o comportamento desonesto da Can-Am, ao longo dos eventos que conduziram à não renovação do contrato.

Houve recurso ao Tribunal de Apelações de Alberta, que deu provimento às pretensões da Can-Am e de Hrynew. O centro do acórdão do juízo de primeiro grau está em que a decisão recorrida aplicou indevidamente ao caso o princípio da boa-fé. Na espécie, ter-se-ia um contrato com cláusulas destituídas de qualquer ambiguidade e com a explicitação objetiva dos deveres das partes.

Bhasin recorreu à Suprema Corte do Canadá contra o acórdão do Tribunal de Apelações de Alberta.

Ao iniciar o julgamento, o relator Cromwell assim resumiu o que haveria de ser decidido na Suprema Corte: a) Direito comum do Canadá por impor às partes um dever de executar “honestamente” as obrigações contratuais?; b) em caso afirmativo, quais as consequências para a violação desse dever?

Ao final do relatório, o justice Cromwell também formulou quatro perguntas: 1) Bhasin poderia invocar a violação do dever de boa-fé?; 2) Can-Am deveria observar um dever de boa-fé em relação Bhasin? Se a resposta for positiva, violou-se esse dever?; 3) Os recorridos – Can-Am e Hrynew – são responsáveis pelos danos decorrentes da indução à quebra contratual ou por conluio?; 4) Se houve violação, qual seria uma quantificação adequada dos danos reparáveis?

Os fundamentos jurídicos do acórdão
Nesta parte da coluna, far-se-á um resumo dos fundamentos do acórdão da Suprema Corta, o que importará uma maior fidelidade ao texto original:

1. A “noção de boa-fé” deita raízes profundas no Direito Contratual e “permeia muitas de suas regras”. No entanto, o Direito comum anglo-canadense tem “resistido a reconhecer qualquer doutrina independente e generalizada da boa-fé na execução dos contratos”. Em razão disso, conforme já anotado pela Comissão de Reforma do Direito de Ontário, é a existência de um ordenamento “instável e incoerente”, desenvolvido de “modo fragmentado” e com enorme “dificuldade de se analisar”. Essa realidade contrasta com a realidade do Direito Civil do Quebec e de muitos Direitos locais nos Estados Unidos.

2. O relator entende que é chegada a hora de dar “dois passos” fundamentais a fim de tornar o Direito anglo-canadense “menos instável e fragmentado” e “mais coerente e justo”. O primeiro deles está em se reconhecer a boa-fé como um “princípio geral de organização do Direito Contratual” e o segundo é o reconhecimento de que esse dever é aplicável a todos os contratos.

Em seguida, o relator passa a desenvolver esses “dois passos”, iniciando-se com uma narrativa da evolução histórica da boa-fé:

3. A boa-fé é uma herança do Direito Romano e sua aceitação remonta ao primitivo Direito Contratual inglês. Há menções à bona fide em acórdãos ingleses de Lord Northington [Aleyn v. Belchier (1758)], Lord Kenyon [Mellish v. Motteux ( 1792)] e de Lord Mansfield, datado de 1910. No entanto, essas referências têm sua aplicação restrita a tipos negociais específicos, como é o caso do contrato de seguro, o que limitou a inserção da boa-fé no moderno Direito anglo-canadense.

4. A existência de um dever geral de boa-fé no Direito comum canadense é matéria polêmica nos tribunais canadenses, com posições favoráveis ao seu reconhecimento [v.g. Gateway Realty Ltd. v. Arton Holdings Ltd. (1991), 106 N.S.R. (2d) 180 (S.C. (T.D)] como uma cláusula implícita que impõe padrões mínimos de comportamento comerciais aceitáveis. Ao passo em que há posições que negam a existência de um “dever geral de boa-fé” em todos os contratos [Transamerica Life Canada Inc. v. ING Canada Inc. (2003), 68 O.R. (3d) 457 (C.A.)]. Para estes últimos, a boa-fé tem aplicação limitada a certas situações, mas admiti-la de modo universal seria uma forma de “minar a liberdade contratual” e de “criar incerteza” nas relações comerciais, além de permitir que os tribunais interfiram no conteúdo dos contratos.

5. O relator justice Cromwell entende que é necessário enfrentar o problema da boa-fé e tentar oferecer alguma uniformidade a essa doutrina, pois o atual Direito anglo-canadense é incerto e incoerente no trato da boa-fé. Além do que o tratamento atual dado ao princípio é antagônico às visões sobre a boa-fé de seus dois principais parceiros comerciais, a saber, Quebec e os Estados Unidos.

O acórdão, neste ponto, inicia uma nova seção, na qual se examina o estado-da-arte da matéria no Direito comum anglo-canadense.

6. O desenvolvimento do tema da boa-fé no Canadá deu-se sob o objetivo de resolver problemas concretos e específicos, em geral envolvendo relações entre os particulares. Identifica-se também a boa-fé na interpretação dos contratos, no equilíbrio das relações contratuais, no controle do exercício de posições abusivas e no reconhecimento de implied terms em certas espécies contratuais, como nas relações locatícias e nos contratos de seguro.

7. No Canadá, a boa-fé também é referida em centenas de normas legais, inclusive em leis específicas sobre contrato de franquia e nas relações de trabalho.

8. Deve-se destacar também, segundo o relator, a tentativa da doutrina em sistematizar a boa-fé no Canadá. Cromwell citou um trabalho de McCamus, no qual se identificaram 3 situações-tipo de utilização da boa-fé: a) quando as partes devem cooperar para a realização do objeto do contrato; b) quando uma das partes exerça um direito potestativo sob a proteção do contrato; c) quando uma das partes tenta se evadir de suas obrigações contratuais.

9. A despeito de algumas interpenetrações entre essas situações-tipo, o modelo de McCamus é útil para se iniciar o estudo sistemático da boa-fé.

10. Considerando-se a situação-tipo “a”, o acórdão cita um precedente da Suprema Corte canadiana (Dynamic Transport Ltd. v. O.K. Detailing Ltd., [1978] 2 S.C.R. 1072), no qual as partes envolvidas celebraram um contrato imobiliário, mas não deixaram explícito no negócio qual delas seria a responsável por conseguir a autorização para fracionar a área. O Tribunal considerou que ao vendedor competiria agir com os melhores esforços para obter essa autorização, embora tal conclusão não deixe evidente se essa obrigação decorre do Direito ou de uma interpretação da vontade das partes.

11. A situação-tipo “b” é exemplificável com outro precedente – Mitsui & Co. (Canada) Ltd. v. Royal Bank of Canada, [1995] 2 S.C.R. 187 – da Suprema Corte canadense, no qual as partes firmaram um contrato de arrendamento mercantil de helicóptero, com cláusula de opção de compra no “valor de mercado do helicóptero, razoável e justo, conforme estabelecido pelo arrendador”. O tribunal entendeu que o arrendador não pode exercer um direito potestativo de fixar unilateralmente o valor do bem e, com isso, desconsiderar os elementos da justiça e da razoabilidade do preço.

12. O exemplo da situação-tipo “c” encontra-se no prejulgado Mason v. Freedman, [1958] S.C.R. 483, da Suprema Corte do Canadá. O vendedor arrependeu-se de um negócio imobiliário e utilizou-se da impossibilidade de conseguir a anuência da esposa como fundamento para a resolução do contrato. O tribunal considerou a pretensão do vendedor como “caprichosa ou arbitrária” e não admitiu a resolução.

Na próxima coluna, a análise desse histórico acórdão prosseguirá.

P.S. Feliz 2015 aos queridos leitores. A escrita dessas colunas, um exercício permanente de cuidadosa pesquisa, é uma doce escravidão para seu autor. Vossa companhia é um enorme estímulo para o cumprimento desse dever.    

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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