Justiça gratuita

Recurso bom é recurso morto: é assim que pensam os tribunais?

Autor

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

29 de dezembro de 2014, 7h19

De uns tempos para cá, o Superior Tribunal de Justiça vem fincando pé em entendimento cujo desígnio é, uma vez mais, obstar o exame de mérito dos recursos especiais, a ponto de robustecer seu extenso rol de jurisprudências defensivas que, no conjunto, fragilizam sobremodo o acesso à justiça em terrae brasilis. A lei, em grande parte das vezes, é jogada a um exílio epistêmico. A motivação? Utilitarista, é claro. E tudo em nome de efetividades quantitativas, com o sacrifício das efetividades qualitativas.

Pois bem. O mais novo integrante dessa relação é a exigência imposta aos beneficiários da justiça gratuita de renovarem o pedido que lhes ensejou a benesse legal quando do manejo do recurso especial, uma vez que, segundo o STJ, o deferimento anterior não alcançaria automaticamente as interposições posteriores. Não elaborando o recorrente, no momento da interposição, pedido de extensão da benesse para a instância recursal, a consequência tem sido a negativa de seguimento do recurso pelo não atendimento da exigência contida no art. 511, caput, do CPC (nesse sentido: EDcl no AgRg nos EAREsp 221.303/RS, Corte Especial, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe de 27/3/2014; AgRg nos EDcl no AREsp 497.645/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 15/08/2014; e EDcl no AREsp 399.852/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 7/2/2014; AgRg nos EAREsp 321.732/RS, Corte Especial, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 23/10/2013).[1] Surge, pois, requisito de admissibilidade recursal que tem surpreendido muitos advogados Brasil afora.

Como já se referiu linhas atrás, esse posicionamento realmente fere de morte o sistema normativo. Afinal, a Constituição reza que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (CF/88, artigo 5º, LXXIV). Em reforço, a Lei 1.060/50, em seu artigo 9º, prevê que “os benefícios da assistência judiciária compreendem todos os atos do processo até decisão final do litígio, em todas as instâncias.” E como se não bastasse, é nada menos que ululante a ofensa que enseja ao próprio Regimento Interno do STJ, no qual se lê que “prevalecerá no Tribunal a assistência judiciária já concedida em outra instância” (RISTJ, artigo 115, parágrafo 2º). Como é de conhecimento geral, a assistência judiciaria compreende, entre outros, isenções relativas às taxas judiciarias, aos emolumentos e às custas (Lei 1.060/50, artigo 3º). Não encontramos, depois de muita procura, em nenhum dos textos legais, limitação temporal à gratuidade da justiça ou exigência de renovação do pedido que suscitou seu deferimento. Nadinha de nada.

A inconstitucionalidade da posição do STJ é evidente, já que o posicionamento adotado sobrepuja o direito fundamental à assistência judiciária plena, oponível aos integrantes do Judiciário e que os sujeitam a conhecer, processar e julgar causas e recursos que se encontram no âmbito da sua competência. Segundo a Constituição, basta para que o Estado preste assistência jurídica (integral e gratuita) a comprovação, por parte do interessado, da condição de miserabilidade na qual se encontra. É esse o único requisito determinado pelo constituinte por intermédio de uma cláusula pétrea, não cabendo a ninguém, muito menos aos julgadores, incrementar o texto normativo para nele inserir outras exigências.

E a legislação infraconstitucional, nesse mesmo rumo, é respeitosa à vontade da Constituição porque deixa claro que a assistência judiciária vale para todos os atos processuais, até a decisão final do litígio e envolve todas as instâncias. Desponta daí o equívoco hermenêutico, pois a vindicação de reiteração da justiça gratuita para que recursos especiais sejam conhecidos desdenha que também o legislador (e não poderia ser diferente) largueou os benefícios da assistência judiciária não a um ou a outro ato processual, mas a todos eles, até a decisão final do litígio, englobadas todas as instâncias.

Parece indubitável que, aqui, o Tribunal da Cidadania resolveu legislar. Decidiu criar direito novo, ausente motivação que autorize a não aplicação das leis que regem a matéria. É o que chamamos de ativismo judicial, praticado justamente pela Corte cuja missão é zelar pela uniformidade de interpretações da legislação federal. Textos jurídicos devem nos importar. Textos jurídicos possuem limites semânticos. E o nosso valoroso e estimado STJ extrapolou-os. Não é porque nós estamos dizendo. É porque é e tem sido assim. É como se Kelsen tivesse razão ao dizer que a interpretação feita pelo judiciário é um ato de vontade.

De todo modo, se há alguma coisa de boa nisso tudo é que, ao menos, a circunstância serve para ilustrar e enaltecer pontos importantes e necessários previstos no novo CPC. É que a futura legislação processual traz consigo, numa série de artigos, compromisso de combate à jurisprudência defensiva. Seria suficiente afirmar que essa equivocada prática adotada pelos tribunais brasileiros (é isso mesmo: o efeito cascata já está ocorrendo e o exemplo vem sendo seguido pelos tribunais regionais) para desafogar as pautas de julgamentos não encontra respaldo num sistema processual em que as partes têm a seu favor um contraditório como direito de influência e não surpresa (CPC Projetado, art. 10). Mas a novel lei vai além e autoriza, dentre outras barreiras, tanto o STF como o STJ a desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave (artigo 1.026, parágrafo 3º). O dispositivo, é bem verdade, poderia ter adotado posição mais dura, sem timidez, até para evitar as os dribles hermenêuticos com as quais frequentemente se depara. De qualquer modo, ponto para a doutrina!

É evidente que ninguém é inocente para crer que bastam legislações e boas intenções para salvar o mundo — entre nós há uma espécie de fetichismo da e com a lei. Daí a importância de que a doutrina volte a doutrinar,[2] para denunciar o desrespeito à lei.

De outro lado, acertou o novo CPC ao impor que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Já se tratou disso em outros textos (ler aqui),[3] mas nunca é demais insistir. Decerto que em um sistema processual, que preza pela integridade e coerência da jurisprudência, protagonismos judiciais como o indicado não encontrarão solo fértil.

Para resumir: hoje há um padrão decisório a justificar decisões negando seguimento a recursos especiais pela ausência de reiteração do pedido de justiça gratuita. Mas o importante é notar que essa “coerência no erro” não se sustenta em face da integridade. Não se pode confiar sentidos às coisas segundo entendimentos pessoais do intérprete porque o mundo a ninguém pertence: nele nos situamos a partir de uma intersubjetividade. Não há um grau zero de sentido! No direito inexiste linguagem privada e, por isso, é insuficiente adotar padrão coerente de decisões se o que se faz está pautado no equívoco. Quer-se com isso, enfim, deixar claro que, se necessário, a coerência resigna-se em favor da integridade, e no que tange ao problema aqui abordado não há dúvida de que os textos legais apontados ao longo desse ensaio, com seus evidentes limites semânticos, desautorizam o modo de decidir do Egrégio STJ ao criar esse requisito contra legem de admissibilidade recursal.

Havendo, pois, um direito fundamental à resposta adequada à Constituição, é o que basta para que a cadeia equivocada seja rompida e prevaleça a tese oposta de que, uma vez deferida e demonstrada a concessão do benefício nas instâncias ordinárias, e não havendo comprovação de que tenha decaído do direito à gratuidade, desnecessária a renovação do pedido, porquanto a concessão da justiça gratuita abrange todos os atos do processo, inclusive nas instâncias superiores.

E não se diga que a integridade é exigência apenas a partir de agora, porque prevista formalmente apenas no novo CPC. Desde há muito autores como Dworkin e McCormick e no Brasil, por todos, o co-autor destas reflexões Lenio Streck (Verdade e Consenso e Comentários a Constituição do Brasil, parte introdutória denominada Princípios da Interpretação Constitucional) sustentam que a integridade é um princípio vinculante de aplicação do direito.

Não fosse pela integridade, seria pela obediência dos limites semântico-hermenêuticos da lei. E da Constituição.


[1] Por todos, cite-se o seguinte julgado: “Agravo regimental nos embargos de divergência. Ausência de comprovação do recolhimento das custas no ato de interposição do recurso. Beneficiário da justiça gratuita. Ausência de pedido na petição de recurso. Deserção. Incidência do art. 511 do Código de Processo Civil. Recurso a que se nega provimento. 1. O preparo deve ser feito no momento da interposição do recurso, sob pena de deserção, sendo certo, outrossim, que na hipótese de o recorrente ser beneficiário da justiça gratuita, deve haver a renovação do pedido quando do manejo do recurso, uma vez que o deferimento anterior da benesse não alcança automaticamente as interposições posteriores. Precedente desta Corte. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STJ, AgRg nos EAREsp 321.732/RS, Corte Especial, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 23/10/2013).

[2] Frase cunhada de há muito por um dos signatários deste artigo, Lenio Streck.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades>.

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