Observatório Constitucional

Financiamento de campanha: Confusão entre direito de voto e influência

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27 de dezembro de 2014, 7h06

Em setembro de 2011, a Ordem dos Advogados do Brasil propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a autorização legal para que pessoas jurídicas doem recursos a partidos políticos e a campanhas eleitorais, prevista nos artigos 24 e 81, da Lei 9.504/1997, e 31, 38 e 39, da Lei 9.096/1995. Autuada sob o número ADI 4.650, a ação foi levada a julgamento no dia 11 de dezembro de 2013. No momento, já se contam seis votos dando procedência parcial ou total aos pedidos (ministros Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Dias Toffoli, Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio) e um voto pela improcedência (ministro Teori Zavascki).

Este texto pretende apontar uma falha na argumentação da referida ação: a confusão entre voto e influência no processo eleitoral e nos processos de tomada de decisões políticas. Na conclusão, sugere uma possibilidade de se obter a regulação da influência do poder econômico nas eleições a partir da atenção para os gastos, submetendo-os aos direitos do eleitor de se informar para decidir.

Os dois argumentos mais fortes da ação direta da OAB referem-se aos possíveis impactos que as doações de recursos de campanha eleitoral por empresas teriam sobre as eleições e sobre forma como o governo representativo responderia às demandas da opinião pública por medidas legislativas e administrativas.

Segundo a petição da Ordem, as doações de recursos das empresas para as campanhas eleitorais teriam, antes de mais nada, o potencial de influir decisivamente nas eleições:

O princípio democrático não se compatibiliza com a disciplina legal da atividade política que tenha o efeito de atribuir um poder muito maior a alguns cidadãos em detrimento de outros, e é exatamente este o resultado da aplicação das normas jurídicas ora questionadas, que, como acima salientado, ampliam a força política dos detentores do poder econômico e dos seus aliados, em detrimento dos demais eleitores. Como ressaltou David Samuels, após ampla pesquisa empírica sobre o financiamento eleitoral brasileiro, tem-se hoje um sistema em que o dinheiro é excessivamente importante nas eleições, o que ‘faz com que a balança pese a favor do candidato que tiver a seu lado contribuintes endinheirados. O dinheiro acentua a viabilidade das candidaturas e sua falta limita enormemente a competitividade dos candidatos[1]. (negritamos; itálicos no original)

Em consequência, como afirma o trecho acima citado, haveria uma desigualdade entre candidatos e entre eleitores. Doadores com mais dinheiro (notadamente empresas) teriam mais poder de influência nas eleições. Candidatos com mais doações privadas teriam mais chances de ganhar as eleições. Nisso consistiria o impacto negativo das doações de recursos por empresas sobre o princípio democrático, e a consequente inconstitucionalidade dessas doações.

A ação da OAB também afirma uma violação ao princípio republicano. Aqui, trata-se da influência que os doadores teriam sobre as decisões político-administrativas dos representantes. Segundo a ação direta, a influência das empresas nas eleições resultaria em uma influência indevida sobre as decisões político-administrativas dos representantes:

A ampla possibilidade de realização de doações eleitorais, diretas ou indiretas, por pessoas jurídicas ou naturais, confere aos detentores do poder econômico a capacidade de converter este poder, de forma praticamente automática, em poder político, o que tende a perpetuar o quadro de desigualdade sócio-econômica, favorecendo as mesmas elites de sempre[2] (destacamos).

Cria-se, então, uma relação promíscua entre o capital e o meio político, a partir do financiamento de campanha. A doação de hoje torna-se o “crédito” de amanhã, no caso do candidato financiado lograr sucesso na eleição. Vem daí a defesa, pelos políticos “devedores”, dos interesses econômicos dos seus doadores na elaboração legislativa, na confecção ou execução do orçamento, na regulação administrativa, nas licitações e contratos públicos, entre outros.[3] (destacamos)

Logo, as empresas, acabariam comprando, por meio das doações inconstitucionais, uma influência sobre as decisões políticas dos representantes, pelo menos tão nefasta quanto aquela.

Em resumo, portanto, a tese defendida pela ação direta é a de que doações de recursos a campanhas caracterizam influência no processo político-eleitoral. No caso das empresas, com suas doações milionárias, essa influência no processo político-eleitoral se traduziria em influência indevida no processo de tomada decisões após as eleições. Essa influência seria inconstitucional porquanto pessoas jurídicas não são cidadãs, não desfrutam dos direitos políticos e não têm direito a voto. Daí decorreria a inconstitucionalidade da sua influência no processo político-eleitoral. A petição da OAB classifica esse quadro de “inconstitucionalidade permanente”[4].

Com base nessa mecânica que conecta influência em eleições, influência no processo de tomada de decisões legislativas e administrativas, e direitos políticos, principalmente direito a voto, a ação direta afirma a necessidade de se extinguir a influência das pessoas jurídicas nas eleições, com o fim de conferir proteção suficiente ao princípio democrático, impedindo, por consequência, a influência das pessoas jurídicas nos processos de tomada de decisões legislativas e administrativas durante os mandatos dos candidatos eleitos, o que protegeria, por sua vez, o princípio republicano.

Esse encadeamento de causalidades, que seria responsável pelo quadro de “inconstitucionalidade permanente” em que vivem nossas instituições representativas, se baseia, no entanto, numa confusão entre voto e influência. Para a ação direta, a ilegitimidade da influência das empresas na campanha eleitoral decorre de elas não serem titulares de direitos políticos, notadamente, direito de voto:

O que se defende na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade é, em primeiro lugar, que não se afigura constitucionalmente admissível a permissão de doações a campanhas eleitorais feitas, direta ou indiretamente, por pessoas jurídicas. As pessoas jurídicas são entidades artificiais criadas pelo Direito para facilitar o tráfego jurídico e social, e não cidadãos, com a legítima pretensão de participarem do processo político-eleitoral[5].(…)

As pessoas físicas e jurídicas não são iguais perante a política. Estas não são cidadãos, que podem ter a pretensão legítima de exercer influência no processo político-eleitoral[6](…)

E, a contrario sensu, o financiamento de campanhas políticas por milionárias doações de pessoas jurídicas, que não são cidadãos, que não votam, que e tem apenas interesse econômico na disputa eleitoral se configura como ofensiva aos princípios democráticos e republicanos da nossa Constituição[7].

Por não terem direito a voto, as empresas também não teriam direito a influenciar as decisões eleitorais e as decisões políticas tomadas pelos representantes do povo após a obtenção dos mandatos. O direito à influência, porém, não é protegido da mesma forma que o direito de voto.

O problema é que, se a igualdade na contagem dos votos é uma condição essencial da democracia representativa, a igualdade de influência não é. Enquanto o direito de voto refere-se à constituição dos representantes do povo, a influência refere-se ao debate público, relacionado ao conceito de democracia discursiva[8]. Por isso, o fato de a influência distribuir-se de maneira diferente na sociedade, não desvirtua per se o caráter democrático da representação. Robert Post, professor de Direito Constitucional da Universidade de Yale, descreve com precisão a mecânica da diferença de influências na construção da opinião pública:

O direito de participar é distribuído igualitariamente, mas a influência gerada pela participação, não. Essa distinção reflete uma diferença fundamental entre a lógica da representação e a lógica da democracia discursiva.

Partindo da terminologia da Corte, usarei o termo discurso público para descrever os processos de comunicação por meio dos quais as pessoas participam na formação da opinião pública. A Primeira Emenda assegura que a oportunidade de participar no discurso público é distribuída para todos igualmente, uma vez que todos são afetados potencialmente por medidas governamentais tomadas como resposta à opinião pública. Em uma democracia na qual todos os cidadãos são iguais perante a lei, cada cidadão tem o mesmo direito à oportunidade de participar no discurso público.

Mas os direitos contidos na Primeira Emenda não garante a cada cidadão o direito de exercer a mesma influência sobre as ações do governo. (…)

Se as pessoas acreditam apaixonadamente em uma ideia específica, elas podem expressar essa paixão com a intensidade, substância e duração do seu discurso. Elas podem expor suas próprias visões da forma que entenderem melhor. Como diferentes pessoas são mais ou menos apaixonadas nas suas crenças, e como as pessoas são mais ou menos persuasivas, elas exercem influências diversas no desenvolvimento da opinião pública[9].

Disciplinar, portanto, a influência nos debates públicos com base no parâmetro da igualdade do voto pode ser um equívoco, como afirmou o próprio Post, comentando o precedente Buckley v. Valeo:

A Corte estava, portanto, correta ao decidir, em Buckley, que o princípio da igualdade não pode ser mecanicamente transposto da lógica da representação para a lógica da democracia discursiva[10].

A diferença na capacidade de influência das pessoas é um dado daquilo que, contemporaneamente, chamamos democracia discursiva. Em outras palavras, se o Estado deve garantir meios de acesso ao debate público, ele não tem como garantir que o resultado da participação nesse debate vai ser igual[11].

Por outro lado, a influência não é, sempre, ilegítima e inconstitucional. Embora haja casos em que ela é, sim, fator de corrupção, na maioria dos casos isso não acontece. Quando ela ocorre segundo as regras do jogo, elas são uma forma ampla e legítima de participação de diversos setores da sociedade nos vários processos de decisão política.

É preciso lembrar que não são apenas as empresas que têm essa influência. Bruce Ackerman, ao propor uma descrição do modelo de cidadania na sociedade americana contemporânea, lista diversos atores sociais, além dos eleitores, que ocupam legitimamente a cena dos debates públicos e agem sobre as possibilidades de decisões que compõem o leque de opções dos políticos. São eles: os grupos de interesses privados (entre os quais, as empresas) os grupos de servidores do Estado (burocratas ou tecnocratas) os grupos de militantes de causas sociais, ambientais etc. (que tendem a se apresentar como moralmente superiores aos demais grupos, conforme o próprio Ackerman) a imprensa e os partidos políticos[12].

Isso também é válido no Brasil. O tempo todo, há diversos tipos de atores sociais pressionando políticos com as armas de que dispõem para tentar influenciar nas suas decisões. A própria Constituição previu a legitimidade dessa forma de participação em âmbito tão sensível quanto o controle de constitucionalidade abstrato, quando instituiu o sistema de ampla participação de diversos segmentos sociais e institucionais nessa forma de controle de constitucionalidade[13] do qual, diga-se, as empresas não foram excluídas de forma absoluta, uma vez que podem provocá-lo através de suas entidades de classe de âmbito nacional (artigo 103, IX).

Também é importante considerar que não é apenas o dinheiro que impõe a diferenciação da influência dos cidadãos. Pessoas diferentes, com carreiras diferentes, interesses diferentes, talentos diferentes, atingirão níveis variados de potencial impacto nas decisões políticas. Assim, um cantor popular de fama nacional terá, obviamente, mais influência em um processo eleitoral ou de tomada de decisões políticas do que alguém que optou por se tornar um micro empresário em uma pequena cidade do interior do Brasil. Além disso, um indivíduo pode ser desinteressado ou desiludido com a política, optando voluntariamente por não participar no debate público. Essas diferenças de influência não podem ser proibidas pelo Estado, sob pena de instalarmos uma “democracia coercitiva”, para usar algo livremente a expressão de Bruce Ackerman[14]

Assim, a tentativa de nivelar à força a influência no debate público e nas eleições com base no princípio da igualdade do voto não é apenas de difícil êxito, mas contrária aos princípios de uma sociedade livre e plural e da autonomia da esfera da opinião pública em uma democracia discursiva.

A tentativa tem, porém, o mérito de chamar a atenção para a necessidade de regular o impacto do poder econômico nas campanhas eleitorais. Porém, partindo de inspiração livre no texto de Robert Post[15], acredito que o debate poderia caminhar em outra direção, mais frutífera, talvez: a regulação das doações, e dos gastos, das campanhas eleitorais tendo como parâmetro, não o impossível direito de participação das empresas, mas o direito do cidadão de se informar para decidir e o direito dos partidos políticos de dar “caráter nacional” às suas mensagens (artigo 5º, IV e XIV, e artigo 17, I, da Constituição). Na medida em que os gastos das campanhas, ainda que financiados por empresas, fossem regulados pela finalidade de informar o cidadão, e não para enganá-lo, entretê-lo ou distraí-lo, poderíamos caminhar para um maior equilíbrio na influência do poder econômico sobre o debate público, nas eleições ou fora delas.

Seja qual for o parâmetro utilizado, porém, o principal seria encontrar formas de regular o uso das doações de recursos a partidos e campanhas (todas as doações, e não apenas aquelas vindas das empresas) para impedir que os recursos sejam usados para a fabricação de superproduções publicitárias ou de formas de marketing eletrônico desleais que, além de encarecer as campanhas, têm por única finalidade enganar o eleitor sobre a sua realidade e distorcer sua percepção sobre os candidatos.

 


[1] Petição inicial na ADI 4.650, p. 17.

[2] Petição inicial na ADI 4.650, p. 12.

[3] Petição inicial na ADI 4.650, p. 20.

[4] Petição inicial na ADI 4.650, p. 22.

[5] Petição inicial na ADI 4.650, p. 8-9.

[6] Petição inicial na ADI 4.650, p. 14.

[7] Petição inicial na ADI 4.650, p. 18-19.

[8] Um conceito associado ao trabalho de Habermas, cf. Nadia Urbinati, “Free speech as the citizen’s right” in Citizens Divided. Campaign Finance Reform and The Constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014, p. 131.

[9] POST, Robert C. “Campaign Finance Reform and the First Amendment” in Citizens Divided. Campaign Finance Reform and The Constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014, p. 49-50. Tradução livre.

[10] POST, Robert C. “Campaign Finance Reform and the First Amendment” in Citizens Divided. Campaign Finance Reform and The Constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014, p. 51. Tradução livre.

[11] cf. Nadia Urbinati, “Free speech as the citizen’s right” in Citizens Divided. Campaign Finance Reform and The Constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014, p. 139.

[12] ACKERMAN, Bruce. We the people I. Foundations. Cambridge Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1991, p. 245-250.

[13] Ver, por exemplo, a ADI 3.153 Ag-R, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, que admitiu a legitimidade de “associação de associações”, assim permitindo que representantes de pessoas jurídicas provocassem o controle abstrato.

[14] ACKERMAN, Bruce. We the people I. Foundations. Cambridge Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1991, p. 235.

[15] “Como as empresas comerciais comuns não são pessoas naturais, que podem vivenciar o valor subjetivo da legitimação democrática, elas não detêm um direito originário, com base na Primeira Emenda, de participar do debate público como debatedores. A Corte, porém, no Caso Bellotti [First National Bank of Boston v. Bellotti] julgou que essas empresas comerciais comuns detêm o direito derivado, baseado na Primeira Emenda, de participar do debate em maneiras que informem os debatedores que não façam parte das empresas”, tradução livre. POST, Robert C. “Campaign Finance Reform and the First Amendment” in Citizens Divided. Campaign Finance Reform and The Constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014, p. 71-72.

Autores

  • Brave

    é advogado, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e doutorando em Direito pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris.

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