Demanda excessiva

O que esconde a crise do HC substitutivo no Supremo Tribunal Federal?

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  • Felipe de Melo Fonte

    é professor da FGV Direito Rio mestre e doutorando em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws (LL.M.) pela Harvard Law School. Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado.

25 de dezembro de 2014, 5h58

Em entrevista recente à revista eletrônica Consultor Jurídico, o ministro Marco Aurélio declarou-se profundamente arrependido por haver capitaneado a mudança de jurisprudência sobre o cabimento de Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário. A alteração de entendimento ocorreu no julgamento do Habeas Corpus 109.956, julgado em 7 de agosto de 2012 pela 1ª Turma do Supremo, restando vencido apenas o ministro Dias Toffoli, que optou por se manter fiel à tese anterior. No julgamento, o ministro Marco Aurélio criticou o número excessivo de habeas recebido pelo tribunal, em comparação com o uso marginal do recurso ordinário previsto no artigo 105, inciso II, alínea “a”, da Constituição Federal, defendendo, então, o descabimento do habeas substitutivo.

A decisão da 1ª Turma do Supremo rendeu críticas estridentes dos criminalistas e do ministro Gilmar Mendes, que a rotulou de “míope, irresponsável e vergonhosa”. Foram lembrados as restrições ao cabimento da ação constitucional durante o período ditatorial brasileiro e o artigo 102, inciso I, alínea “i”, do texto constitucional, também com o intuito de criticar a decisão da 1ª Turma do Supremo. Em outra linha de argumentação, afirmou-se ainda que a restrição apenas posterga a vinda do caso ao Supremo, o que ocorrerá com a interposição do recurso ordinário, em prejuízo ao preso e sem resolver o problema da sobrecarga de processos.

É inequívoco que o estreitamento das portas do Supremo Tribunal Federal para a impetração de habeas corpus ocorreu em um contexto em que, cada vez mais, a corte vem se tornando consciente a respeito dos seus próprios limites institucionais. Os tribunais superiores brasileiros são os que mais julgam processos no mundo, sem que isso signifique que o sistema jurídico brasileiro proporcione justiça e segurança com maior qualidade quando comparado a outros países. Pelo contrário, a percepção geral é que o sistema é lento, excessivamente burocrático e caro. Por isso, a racionalização do uso do tempo do tribunal não é apenas necessária, mas também urgente. A decisão da 1ª Turma merece mais do que rótulos emocionais, ela precisa ser entendida como uma reação a um grave problema.

O site do Supremo Tribunal Federal aponta para o julgamento de 5.799 habeas corpus em 2011, sendo 464 concedidos total ou parcialmente. Em 2012, 5.828 julgamentos, 472 concessões. Em 2013, 5.085 julgamentos, 391 concessões. Em 2014, 5.399 julgamentos, 406 concedidos. Nos últimos quatro anos, o percentual de concessão manteve-se em torno de 8% das impetrações (o ministro Gilmar Mendes fala em 30%, mas não é isso que consta na página do Supremo), o que se traduz, grosso modo, em oito prisões ilegais para cada 100 efetuadas no Brasil. Esse número não é pequeno e tende a ser maior porque um grande contingente de presos não tem acesso à assistência jurídica de qualidade e sequer chega a fazer qualquer postulação ao Supremo Tribunal Federal.

É sabido que cada sessão de turma no STF ocorre uma vez por semana. São cerca de 40 sessões por ano. Por meio de uma simples divisão, verifica-se que cada turma julgou entre 65 e 75 habeas corpus por sessão nos últimos quatro anos, cerca de 16 habeas por hora, aproximadamente três minutos e meio para cada julgamento colegiado, se a Turma só julgasse isso. Mas sabemos que elas têm outras atribuições, como ações penais originárias, mandados de segurança, recursos ordinários em habeas corpus, etc. Sem computar, ainda, o tempo necessário para a análise de documentos e preparação de relatórios e votos em habeas corpus, é fácil chegar a conclusão que o tempo devotado a cada processo é diminuto. Mas a pior constatação é que o Supremo dificilmente poderá expandir sua capacidade jurisdicional para muito além do número citado. É dizer: o Brasil tem hoje 563.526 pessoas encarceradas segundo o último relatório do CNJ e uma taxa de crescimento de 25 mil novos presos por ano, enquanto o Supremo tem capacidade para analisar 1% dessas prisões por ano judiciário. O cobertor, nesse caso, está mais para toalha de rosto.

A situação é dramática, propiciando uma escolha trágica. Nenhuma pessoa sã defende a perpetuação de prisões ilegais, o que é possivelmente a mais grave das injustiças que o sistema jurídico pode cometer. O estado atual do sistema penitenciário brasileiro, notoriamente precário, reforça essa conclusão. Por outro lado, ninguém razoável pode acreditar que um tribunal composto por onze ministros, dotado de outras atribuições, será capaz de revisar, de forma célere e adequada, toda e qualquer prisão ocorrida no país. Ora, se o grande argumento em favor da impetração substitutiva é o número excessivo de prisões ilegais, surge a questão que está por trás da “crise dos habeas” suscitada pelo Ministro Marco Aurélio: por que os tribunais erram tanto no Brasil em matéria criminal?

Esse é um problema grave e que justifica uma pesquisa mais ampla, mas é possível cogitar de algumas respostas preliminares. A primeira razão pode estar no problema da oscilação jurisprudencial dos próprios tribunais superiores. Os Ministros do Supremo, por exemplo, ainda divergem sobre a aplicação do princípio da insignificância, cuja falta de critérios objetivos cria um forte incentivo para que os advogados levem suas causas até o próprio Supremo. Em 2014, 7% das concessões de habeas no tribunal tiveram precisamente este fundamento. Um tribunal desvinculado de sua própria história jurisprudencial provavelmente não será seguido pelos tribunais e juízes inferiores. Por outro lado, a insubordinação à jurisprudência do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça é uma patologia aguda no sistema jurídico brasileiro. A repercussão geral, inaugurada com a Emenda Constitucional 45/2004, poderia ajudar a resolver. Porém, para que o plenário tenha tempo de resolver os problemas nacionais, não há como julgar quase uma centena de habeas corpus semanalmente. E, antes que se diga, os órgãos jurisdicionais são diferentes, mas os juízes são os mesmos.

A segunda explicação pode estar simplesmente na estrutura do Poder Judiciário. Em 42,76% das ordens concedidas em 2014, o Supremo reconheceu algum tipo de deficiência de fundamentação na decisão impugnada. Em 7,39%, detectou problemas na individualização da pena. É dizer: em mais de 50% das revisões empreendidas pelo STF, a ilegalidade consistiu na ausência de correlação entre a aplicação da pena corpórea e o ordenamento jurídico, por exemplo, simples desconsideração do caso particular. Aqui não há solução fácil: é preciso olhar cada caso e verificar o que está acontecendo em cada tribunal. É possível que o subproduto da “justiça de massas”, a proliferação das decisões padronizadas, tenha algum papel a desempenhar na explicação. Há excesso de trabalho? Há falta de servidores? Falta estrutura? Urge que seja produzido um diagnóstico. Em um segundo momento, não deveríamos ter vergonha em pensar em incentivos financeiros e funcionais objetivando “aumentar o índice de acertos”, o que reduz a necessidade de revisão pelas cortes superiores.

É pena que toda a discussão envolvendo a jurisdição criminal do Supremo não tenha jogado luzes sobre esse problema grave, que é a estrutura de aplicação da justiça penal pelos juízes e tribunais locais e regionais. A combinação de erros judiciários e limitação institucional das Cortes superiores representa um risco real para o Estado de Direito. Certos ou errados quanto à tese jurídica de fundo, os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes estão corretos quanto às premissas fundamentais de suas opiniões: o STF não é capaz de suportar a demanda por sua jurisdição em matéria criminal, mas tampouco pode conviver com o número de erros judiciários existente hoje. A divergência está em como solucionar os problemas. Vamos pensar em 1% ou em todos?

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    é mestre e doutorando em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando (LL.M.) pela Harvard Law School. Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado.

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