Retrospectiva 2014

Desordem mundial e lento progresso na cooperação internacional marcaram o ano

Autor

  • Eduardo Felipe Matias

    é sócio de Nogueira Elias Laskowski e Matias Advogados Doutor em Direito Internacional pela USP e mestre pela Universidade de Paris com pós doutorado na Espanha pela IESE Business School.. Alguns dos temas aqui abordados foram explorados com maior profundidade em artigos do autor reunidos no blog: http:// eduardofelipematias.blogspot.com.br/ (Twitter: @EduFelipeMatias)

24 de dezembro de 2014, 7h32

Spacca
Em 2014 o mundo viu a cooperação internacional andar de lado e ainda passou pelo susto de ter o fantasma da Guerra Fria voltando a assombrar as relações internacionais. Muitos dos assuntos discutidos neste espaço em anos anteriores não tiveram progressos significativos e outros temas surgiram. Três anos após a série de revoltas que ficou conhecida como Primavera Árabe, o movimento ainda não frutificou como esperado. A crise na Ucrânia – que voltou a opor a Rússia a parte do Ocidente – e a barbárie do Estado Islâmico causaram preocupação e indignação. E a cooperação internacional, tão necessária tanto na área comercial quanto na ambiental, pouco avançou. Vamos aos fatos que marcaram o ano:

Desordens mundiais
Talvez o único acontecimento positivo relacionado à Primavera Árabe tenha sido a realização de eleições presidenciais livres e democráticas na Tunísia, país que, desde sua independência em 1956, até a queda do regime de Zine el Abidine Ben Ali em 2011, havia tido apenas dois presidentes. O Egito também passou por eleições, mas, com inacreditáveis 97% dos votos e participação de apenas 47% de sua população, estas serviram para manter no poder o general Abdel Fattah al Sisi, líder do golpe militar ocorrido no ano passado. De forma geral, os outros países da Primavera Árabe, como a Líbia, continuam vivendo um clima de instabilidade.

Na Síria, a guerra civil já matou mais de 150 mil pessoas desde 2011 e a violência não dá sinais de trégua. Um dos únicos pontos positivos é o cumprimento, ainda que com atraso, do acordo de iniciativa russa e americana que previa a destruição pela Síria de todo o arsenal químico que esta havia declarado à comunidade internacional.

Já o acordo provisório com o Irã que, sob pressão das sanções internacionais, se comprometeu em 2013 a reduzir seu programa nuclear, não seguiu o cronograma esperado. Ainda que este tenha atendido ao combinado quanto às reduções de seu estoque de urânio enriquecido, uma série de medidas de confiança não foram adotadas pelo país e a expectativa de assinatura de um acordo definitivo foi adiada para o meio do ano que vem.

No mesmo ano em que a luta pelo direito à educação garantiu o Prêmio Nobel da Paz ao indiano Kailash Satyarthi e à paquistanesa Malala Yousafzay, esta última um símbolo do combate ao obscurantismo, a selvageria do Estado Islâmico chocou o mundo. Esse grupo radical – também envolvido na guerra civil Síria, onde se opõe ao regime de Bashar Al-Assad – vem ocupando território iraquiano desde a saída das tropas americanas daquele país em 2011. Em agosto deste ano, os Estados Unidos levaram adiante uma série de ataques aéreos na região contra os jihadistas – que passaram a decapitar reféns norte-americanos e de países aliados.

Agravaram-se em 2014 os desentendimentos entre Rússia, Estados Unidos e União Europeia pelo conflito na Ucrânia. Esta sofreu, neste ano, a deposição de seu presidente, Viktor Yanukovich e a anexação da Crimeia – antes parte de seu território – à Rússia, após a realização de um referendo. A mobilização de tropas russas na região para garantir essa decisão e seu apoio a separatistas no leste da Ucrânia levou Estados Unidos e União Europeia a aplicarem sanções contra a Rússia nos setores de energia, armas e financeiro, impor restrições ao financiamento a empresas estatais e congelar bens de políticos russos.

Refletindo a desordem no cenário internacional em 2014, a comemoração, em novembro, dos 25 anos da queda do Muro de Berlim foi marcada pela declaração do último dirigente soviético, Mikhail Gorbachev, de que estaríamos vivendo uma nova Guerra Fria, tendo em vista os conflitos na Ucrânia, Síria e Iraque e o atraso do acordo nuclear com o Irã, situações que opõem Rússia e Estados Unidos. Ao menos, para contrastar com essa opinião, o mundo foi surpreendido agora em dezembro pela decisão de restabelecimento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e outro de seus oponentes na Guerra Fria, Cuba — ainda que acabar com o embargo econômico americano à ilha não vá ser uma missão fácil para o presidente Obama, considerando a necessidade de aprovação pelo Congresso, onde este não possui maioria.

Mas o acontecimento de 2014 que promete sacudir as peças do xadrez internacional é a abrupta queda de mais de 40% no preço do petróleo, que tem potencial para causar profundas mudanças econômicas e geopolíticas. Os abalos já estão sendo sentidos por alguns países produtores – por exemplo a Rússia que, com sua economia já enfraquecida pelas sanções econômicas impostas pelo Ocidente, viu a cotação do rublo despencar em dezembro, ameaçando contagiar os demais países emergentes. Mantido esse cenário, 2015 deve trazer fortes emoções.

Cooperação Internacional a passos lentos
Naquela que é a maior negociação multilateral de livre comércio, a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), o que se tem para comemorar não é um progresso, mas sim a ausência de um retrocesso. Em mais uma clara demonstração das dificuldades causadas pela necessidade de consenso entre os 160 países que compõem a OMC para a aprovação de propostas, a resistência da Índia em abrir mão de seu programa de estoque de alimentos e subsídios para pequenos produtores quase leva ao fracasso o Pacote de Bali, aprovado em 2013, cujo principal resultado seriam medidas de facilitação do comércio – como a desburocratização das aduanas – com potencial de trazer ganhos anuais de quase US$ 1 trilhão. Em novembro, no entanto, uma negociação bem sucedida entre Índia e Estados Unidos deu fim ao impasse, o que permitirá que os membros da OMC implementem o Pacote.

Por falar em facilitação do comércio, neste ano finalmente entrou em vigor no Brasil, por meio do Decreto nº 8.327, a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (Convenção de Viena), assinada na capital austríaca 34 anos atrás e que já vigia em 78 países. Esta define regras uniformes sobre a formação dos contratos, obrigações e responsabilidade das partes, simplificando a relação contratual e reduzindo os custos dos negócios envolvendo diferentes sistemas jurídicos.

E, voltando para a OMC, apesar de os entraves para a conclusão da Rodada Doha afetarem a credibilidade dessa organização, seu sistema de solução de controvérsias segue sendo uma alternativa importante para a redução das distorções no comércio internacional. Nesse sentido, uma importante disputa envolvendo o Brasil se encerrou neste ano e outra está para começar.

Depois de 12 anos de discussões, um acordo encerrou o caso em que o Brasil questionava os subsídios conferidos pelos Estados Unidos a seus produtores de algodão. A solução prevê o pagamento adicional pelos norte-americanos de US$ 300 milhões para o Instituto Brasileiro de Algodão e a limitação a até 18 meses das garantias de crédito à exportação concedidas por aquele país, que se estende a produtos como milho e soja. E, neste mesmo ano, outra disputa envolvendo o Brasil – dessa vez como réu — teve início, após o questionamento pela União Europeia de programas brasileiros de incentivo fiscal relacionados ao setor de equipamentos eletrônicos e ao automotivo — como o Inovar-Auto. Agora em dezembro, a OMC aprovou a abertura de um painel para julgar o caso.

Outro tema que pouco avançou foram os grandes acordos plurilaterais de livre comércio, destaque no ano passado. Um deles, a Parceria Transpacífica, que abrange uma dezena de países banhados por aquele oceano, representando 40% do PIB mundial e um terço de todo comércio global, teve reuniões inconclusivas em 2014. E a Parceria Transatlântica, entre União Europeia e Estados Unidos, também não progrediu. Um bloco que evoluiu positivamente foi a Aliança do Pacífico, já que Chile, Colômbia, México e Peru decidiram, em sua 8ª Reunião de Cúpula, ocorrida neste ano, cumprir a meta de zerar 92% das tarifas dos produtos comercializados entre eles.

Já o Mercosul assistiu a uma queda do comércio entre seus membros de 13% em relação ao ano passado e continua estagnado quando o assunto é a celebração de novos tratados de livre comércio com terceiros. A perspectiva positiva de um acordo entre esse bloco e a União Europeia, que vem sendo negociado há mais de uma década, não se concretizou em 2014, devido, principalmente, a divergências quanto à oferta de alguns produtos e aos prazos para redução tarifária, resultantes, em grande parte, da posição da Argentina. Esta última, vale recordar, passou o ano envolvida na disputa que vem travando com os fundos de investimentos “abutres” que não aceitaram as renegociações de títulos argentinos em moratória desde 2001 e reclamam em juízo o direito a receber o valor integral da dívida.

Outro bloco cujas atividades vêm sendo acompanhadas neste espaço ano a ano é o G20, o qual se consolidou, após a crise de 2008, como importante foro de discussão e coordenação de políticas globais. A maior preocupação dos líderes do grupo continua sendo a retomada do crescimento econômico e, em novembro de 2014, estes se reuniram em Brisbane, na Austrália para aprovar um pacote de 800 medidas para promover o comércio mundial e investimentos em infraestrutura com o objetivo de fazer o PIB mundial crescer 2,1% acima das previsões até 2018. 

O BRICS – bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul oficializou, durante sua reunião de Cúpula em Fortaleza em julho deste ano, a criação de um banco comum, batizado de Novo Banco de Desenvolvimento, para financiar projetos de infraestrutura em países emergentes. O Banco terá capital inicial subscrito de US$ 50 bilhões, dividido igualmente entre os membros fundadores, e capital autorizado de US$ 100 bilhões. Além disso, no já mencionado encontro do G20 em Brisbane, os líderes do BRICS voltaram a se reunir e criticaram a demora em implementar a reforma da divisão de cotas do Fundo Monetário Internacional aprovada em 2009 – reivindicação legítima que vem sendo uma das bandeiras desse bloco formado entre países tão diferentes.

Por fim, conviveu-se durante todo o ano com a epidemia de ebola na África, que provocou mortes – ao menos 6 mil entre as 16 mil pessoas infectadas com o vírus – e apreensão pela possibilidade de se espalhar rapidamente em um mundo altamente interligado. O surto, que levou a Organização Mundial da Saúde a declarar estado de emergência internacional, parece relativamente controlado, graças em parte à ação conjunta de organizações internacionais e não governamentais, em um dos poucos casos em que a cooperação global se mostrou eficiente em 2014.

Criando o clima para o desenvolvimento sustentável
A importância deste ano para o combate ao aquecimento global derivava, em grande parte, da promessa dos países partes da Convenção do Clima da ONU de assinar, no final de 2015, o tratado que substituirá o Protocolo de Kyoto a partir de 2020.

Por isso, seria bom que 2014 mostrasse sinais de que o clima está propício a esse acordo.

Alguns desses sinais foram dados, por exemplo, durante a Cúpula do Clima convocada pelo secretário-geral da ONU, realizada em setembro. Além de esta ter reunido quase 120 chefes de Estado em Nova York, 310.000 pessoas saíram às ruas daquela cidade para manifestar a sua preocupação com o aquecimento global. Nesse encontro, governos, empresas e líderes da sociedade civil se propuseram a mobilizar, até o fim do ano que vem, US$ 200 bilhões em investimentos voltados à redução das emissões de carbono, e alguns países resolveram contribuir com US$ 2,3 bilhões para o Fundo Verde para o Clima da ONU. Outro resultado do encontro foi a “Declaração de Nova York sobre Florestas”, que prevê reduzir pela metade o desmatamento até 2020 e zerá-lo até 2030, documento assinado por 28 governos, 35 empresas, 16 grupos indígenas e 45 ONGs e grupos da sociedade civil. Chamou a atenção, entretanto, o fato de o Brasil não ter aderido ao documento – perdendo, mais uma vez, a oportunidade de se posicionar como Estado líder na promoção da sustentabilidade.

Outro gesto positivo foi o acordo anunciado em novembro pelos dois maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo, que representam somados mais de 40% das emissões planetárias, Estados Unidos e China — cuja relutância em assumir obrigações efetivas nessa área, lembremos, muito contribuiu para o fracasso da COP-15 em Copenhague. Por esse acordo, os Estados Unidos se propõem a reduzir suas emissões, até 2025, entre 26% e 28% em relação aos níveis registrados em 2005, e a China se compromete a que o pico de suas emissões de CO2 não passe de 2030, ano em que estas deverão começar a cair, graças ao aumento dos investimentos em energias renováveis.

Nesse mesmo mês, na já mencionada reunião do G20, os líderes do grupo renovaram sua promessa de trabalhar em conjunto para a adoção, em 2015, de um acordo com força legal para combater o aquecimento global, e Estados Unidos e Japão anunciaram contribuições de US$ 4,5 bilhões para o Fundo Verde.

O ano terminou com a realização da 20ª Conferência das Partes (COP-20) da Convenção do Clima da ONU em Lima, no Peru.

O documento final desse encontro, denominado “Chamado de Lima para a Ação sobre o Clima”, refletiu a decisão já tomada anteriormente de incluir os países em desenvolvimento no esforço pela redução de emissões, produzindo um acordo que, diferentemente do Protocolo de Kyoto, será realmente universal. Como, sem essa inclusão, o aquecimento global não será detido, a declaração reconhece a existência de responsabilidades comuns. Mantém, no entanto, a ressalva de que essas responsabilidades são diferenciadas, em função da distinta contribuição histórica de cada nação para o problema, acrescentando, ainda, que essa distinção deve ocorrer "à luz das diferentes circunstâncias nacionais", o que dá a entender que países emergentes como China, Índia e Brasil devem colaborar mais para a solução do que outros países com menor nível de desenvolvimento.

O documento final atende às demandas dos países em desenvolvimento ao mencionar a necessidade de implementação de mecanismos que garantam não apenas a mitigação de emissões, mas também a adaptação, o financiamento, a transferência de tecnologia e a compensação pelas “perdas e danos” causadas pelas mudanças do clima, como secas, tempestades e aumento do nível do mar – lembrando que esses impactos serão mais sentidos pelas nações pobres, especialmente pelos pequenos países insulares. Os recursos comprometidos para o Fundo Verde, porém, continuam minguados: alcançaram US$ 10 bilhões anuais após a COP-20, ainda longe da meta definida de US$ 100 bilhões.

Os países reiteraram, ainda, que se esforçarão em apresentar seus compromissos de redução de emissões — as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas — ainda no primeiro trimestre de 2015, a fim de não deixar essa discussão para a última hora, o que inviabilizaria atingir o objetivo de se chegar a um acordo em dezembro de 2015, na COP-21, em Paris. Há, contudo, uma série de questões em aberto a respeito dos parâmetros para essas contribuições, como os anos-base a serem adotados, os mecanismos de verificação das medidas nacionais — que alguns países em desenvolvimento, como a China, resistem aceitar — e a metodologia que será aplicada para calcular se essas medidas, em conjunto, serão capazes de manter o aquecimento global dentro do limite máximo tolerável de 2° C.

Também é incerto se as dificuldades geradas pela necessidade de consenso nas negociações no âmbito da ONU acabarão produzindo um acordo que, embora global, não vá muito além do mínimo denominador comum do que cada parte está disposta a fazer. Por tudo isso, esperar que se chegue a um tratado legalmente vinculante no ano que vem parece um desejo exageradamente otimista. Por outro lado, resignar-se a que todo esse processo leve a uma simples declaração de boas intenções seria aceitar que a comunidade internacional é incapaz de estar à altura do maior desafio que a humanidade já enfrentou.

Autores

  • é sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados, Doutor em Direito Internacional pela USP e mestre pela Universidade de Paris, com pós doutorado na Espanha pela IESE Business School.. Alguns dos temas aqui abordados foram explorados com maior profundidade em artigos do autor reunidos no blog: http:// eduardofelipematias.blogspot.com.br/ (Twitter: @EduFelipeMatias)

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!