Direito Comparado

Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial (parte 6)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

24 de dezembro de 2014, 13h51

Spacca
Ao prosseguir no estudo das inovações do Código Civil e Comercial argentino de 2014, examinar-se-á o restante do Direito das Obrigações, especificamente o capítulo sobre as relações de consumo e iniciar-se-á a análise do Direito Contratual.

Os contratos de consumo foram objeto dos artigos 1.092 a 1.122, nos quais se apresentam conceitos relevantes sobre a qualificação das relações de consumo, as cláusulas abusivas e a formação dos contratos envolvendo consumidores.

O código argentino, em seu artigo1.092, define relação de consumo como “o vínculo jurídico entre um provedor e um consumidor”. Considera-se consumidor a “pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza, de forma gratuita ou onerosa, bens ou serviços, como destinatário final, em benefício próprio ou de seu grupo familiar ou social”.  Cuida-se ainda da figura do consumidor por equiparação, assim entendido aquele que, “sem ser parte de uma relação de consumo”, como consequência ou na ocasião de sua ocorrência, “adquire ou utiliza bens ou serviços, de forma gratuita ou onerosa, como destinatário final, em benefício próprio ou de seu grupo familiar ou social”. 

A preocupação do legislador em definir, que é sempre perigosa, uma vez mais aqui se manifesta. A experiência brasileira na tentativa de qualificar as relações de consumo é reveladora das imensas dificuldades em se distinguir a figura do consumidor por equiparação e o não consumidor. Os argentinos utilizaram-se a linguagem do Direito do Consumidor brasileiro, mas deverão sofrer idênticos problemas aos sentidos no Brasil quando se estiver diante de um consumidor equiparado. Essa influência do Brasil é sensível tanto nos conceitos quanto na opção por não distinguir entre pessoas naturais e jurídicas fornecedoras de bens ou serviços. A única vantagem do modelo argentino é que não há um microssistema normativo de Direito do Consumidor, dada a opção por inclui-lo no próprio código civil, a exemplo do que já ocorreu na Alemanha em 2002.

Idênticas dificuldades de qualificação surgem no art.1.093, que define contrato de consumo como aquele celebrado “entre um consumidor ou usuário final com uma pessoa física ou jurídica que atue profissional ou ocasionalmente ou com uma empresa produtora de bens ou prestadora de serviços, pública ou privada, que tenha por objeto a aquisição, o uso ou o gozo dos bens ou serviços por parte dos consumidores ou usuários, para seu uso privado, familiar ou social”. O que seria uma “pessoa física ou jurídica que atue profissional ou ocasionalmente”? Eis uma definição lacunosa e extremamente aberta.

A título de normas hermenêuticas, o codificador dispôs que: a) as regras sobre relações de consumo devem ser interpretadas conforme “o princípio da proteção do consumidor e do acesso ao consumo sustentável” (art.1094); b) se houver conflito de normas, prevalecerá a mais protetiva ao consumidor (art.1094); c) o contrato será interpretado de maneira mais favorável ao consumidor e, se houver dúvida sobre o alcance de suas obrigações, deve-se “adotar a que seja menos gravosa” (art.1095).

A “formação do consentimento”, de que se ocupa o capítulo 2, divide-se em duas seções: (a) práticas abusivas e (b) informação e publicidade dirigida aos consumidores. Na primeira seção, agrupam-se quatro diferentes normas, relativas ao âmbito de aplicação, ao tratamento digno, ao tratamento equitativo e discriminatório e à liberdade de contratar. Em linhas gerais, tem-se que as normas da seção aplicam-se a “todas as pessoas expostas às práticas comerciais, determináveis ou não, sejam consumidores ou sujeitos equiparados, conforme o disposto no art.1.092”. Quanto ao tratamento a ser conferido aos consumidores, diz-se que os “fornecedores devem garantir  condições de atenção e tratamento digno aos consumidores e usuários. A dignidade da pessoa deve ser respeitada conforme os critérios gerais que advém dos tratados de direitos humanos. Os provedores devem abster-se de realizar condutas que coloquem os consumidores em situações vergonhosas, vexatórias ou intimidatórias” (art.1.097), ao passo em que é também exigido dos fornecedores que deem aos consumidores um “tratamento equitativo e não discriminatório”, não lhes sendo admitido diferenciar estes últimos por meio de critérios contrários à garantia constitucional de igualdade, em especial a nacionalidade (art.1.098).  A liberdade de contratar dos consumidores não pode ser limitada, em especial por efeito de práticas que subordinam o fornecimento de produtos ou serviços à aquisição simultânea de outros, bem assim práticas de efeito equivalente (art.1099).

O fornecedor, na segunda seção, obriga-se a informar o consumidor de modo “certo e detalhado” a respeito de tudo o que se relacionar com as “características essenciais dos bens e serviços que fornece, as condições de sua comercialização e qualquer outra circunstância relevante para o contrato”. São caracteres da informação sua gratuidade e sua clareza, de modo a que permita a necessária compreensão pelo consumidor (art.1.100).

Estabeleceram-se regras proibitivas da publicidade que: a) contenha indicações falsas ou de tal natureza que induzam ou possam induzir o consumidor a erro, quando recaiam sobre elementos essenciais do produto ou do serviço; b) efetue comparações de bens ou serviços, de tal modo que possa levar o consumidor a erro; c) seja abusiva, discriminatória ou induza o consumidor a se comportar de modo prejudicial ou perigoso para sua saúde ou segurança (art.1.101).  A publicidade e seu conteúdo, materializada em anúncios, prospectos e outros meios de difusão, tem-se como parte integrante do contrato e são obrigatórias para os fornecedores (art.1.103).

O capítulo 3 cuida de modalidades especiais de contratação, como aquelas celebradas: (a) fora dos estabelecimentos comerciais; (b) à distância ou (c) que se utilizam de meios eletrônicos.

De modo sistemático podem ser assim resenhados os conteúdos das regras sobre essas contratações:

(a) Consideram-se “contratos celebrados foram dos estabelecimentos comerciais” aqueles resultantes de uma oferta ou proposta sobre o bem ou serviço que se conclua no domicílio ou no lugar de trabalho do consumidor, em via pública ou por meio de correspondência. Assim também se consideram as contratações decorrentes de uma convocação para que o consumidor ou usuário vá ao domicílio do provedor ou a outro lugar, quando o objetivo desse chamado seja total ou parcialmente distinto da contratação ou se trate de um prêmio ou favor (art.1.104).

(b) Os “contratos celebrados a distância” definem-se como aquele concluídos entre “um fornecedor e um consumidor com o uso exclusivo de meios de comunicação à distância”, assim entendidos aqueles que podem ser utilizados sem a presença física simultânea das partes contratantes. São exemplos os “meios postais, eletrônicos, as telecomunicações e os serviços de rádio, televisão ou imprensa” (art.1.105).

O lugar do cumprimento dos contratos fora do estabelecimento, à distância ou com utilização dos meios eletrônicos ou similares será aquele no qual o consumidor recebeu ou deveria ter recebido a prestação. Esse lugar “firma a competência aplicável aos conflitos derivados do contrato” e a “cláusula que prorroga a competência tem-se por não escrita” (art.1.109).[1]

O direito de arrependimento do consumidor é exercitável no prazo de 10 dias contados da celebração do contrato, em se tratando das hipóteses de negócios à distância e fora do estabelecimento comercial. Se a aceitação for posterior à entrega do bem, o prazo começará a contar a partir da data da entrega (art.1110). Esse direito há de ser informado ao consumidor, de modo explícito e com caracteres em destaque. A informação inadequada quanto a esse direito impede a caducidade do direito de arrependimento (art.1.111).

O capítulo 4 do título 3 é complementar aos arts.985-988, comentados em coluna anterior.

O código argentino de 2014 declara que a abusividade da cláusula pode ser declarada ainda na fase de negociação individual ou mesmo se aprovada expressamente pelo consumidor (art.1.118).

E o que seria uma cláusula abusiva?  Responde o art.1.119: “Sem prejuízo do disposto em leis especiais, é abusiva a cláusula que, tendo sido ou não negociada individualmente, tem por objeto ou por efeito provocar um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes, em prejuízo do consumidor”. De modo complementar, afirma-se o conceito de “situação jurídica abusiva”, assim considerada quando “o mesmo resultado se alcança por meio da predisposição de uma pluralidade de atos jurídicos conexos” (art.1.120). Finalmente, pré-excluem-se do conceito de cláusula abusiva aquelas disposições que: a) digam respeito à “relação entre o preço e o bem ou o serviço procurado”; b) reflitam disposições vigentes em “tratados internacionais ou em normas legais imperativas” (art.1.122).  

As cláusulas abusivas serão controladas judicialmente, não havendo óbice à intervenção judicial pelo fato de terem sido aprovadas previamente por órgão administrativo. O efeito da identificação da abusividade é que a cláusula se reputará não acordada. Existindo declaração judicial de “nulidade parcial do contrato”, é obrigação do juiz integrar o negócio, “se não puder subsistir sem comprometer sua finalidade”.  Em havendo “situação jurídica abusiva derivada de contratos conexos”, o juiz deverá aplicar a regra do art.1075, que impede a exceção do contrato total ou parcialmente não cumprido.

No título seguinte, de número 4, o Código Civil e Comercial argentino trata dos contratos em espécie. 

Mantendo-se a tradição, inaugura o título o contrato de compra e venda. Suas disposições, conforme o art.1.124, terão incidência supletiva  às espécies negociais que transfiram direitos reais de condomínio, propriedade horizontal, superfície, usufruto, uso e outros direitos afins, além dos contratos que tenham por objeto a transferência da propriedade de títulos mobiliários por um preço em dinheiro.

O código de 2014 traz regras específicas sobre a venda de coisas futuras, com hipótese de o comprador assumir o risco de que a coisa não venha a existir sem culpa do vendedor (art.1.131) e sobre a alienação de coisas alheias, que é tida como válida, nos termos do art.1.008, também já mencionado em coluna anterior.

São também mantidas as cláusulas acessórias ao contrato de compra e venda, como o pacto de retrovenda (art.1163), o pacto de revenda (art.1164), o direito de preferência (art.1.165).

À compra e venda seguem-se os contratos de permuta (arts.1.172-1.175) e de  fornecimento (art.1.176-1.186), que não tem previsão típica no Código Civil brasileiro, mas é previsto no Código Civil italiano.

O contrato de  locação é extensamente regulado nos arts.1.187-1.226. A locação na qual figure como locadora uma pessoa jurídica de direito público será regida por normas de Direito Administrativo, com incidência subsidiária das disposições do Código Civil (art.1.193). A locação habitacional tem regras restritivas no art.1.196, como a proibição de do pagamento de alugueres antecipados por mais do que 1 mês; a exigência de fiança-caução superior a esse período e o pagamento das chaves ou verba equivalente. O prazo máximo de duração da locação habitacional será de 20 anos e de 50 anos para as que tenham outro objeto (art.1.197).

O contrato de leasing, com a denominação em inglês, é objeto dos arts. 1.227-1.250, o que revela a adequada inserção de matéria comercial no Código Civil e o tratamento detalhado do arrendamento mercantil. Aplicam-se ao leasing, de modo subsidiário, as normas do contrato de locação (art.1.250). Se houver inadimplemento no leasing de bem móvel, abre-se ao locador o direito de pretender o sequestro do bem ou a execução do devedor (art.1.249).

O “contrato de obras e serviços”, que se assemelha a nossos contratos de empreitada e de prestação de serviços, é definido como aquele no qual “um pessoa,  conforme o caso o empreiteiro ou o prestador de serviços, atuando independentemente, obriga-se a favor de outra, chamada comitente, a realizar uma obra material ou intelectual ou a fornecer um serviço mediante uma retribuição” (art.1.251).

O contrato de transporte, excluídos o multimodal e o gratuito, que se rege por normas específicas, ocupa os arts.1.280-1.318, dividindo-se entre transporte de pessoas e de coisas. A responsabilidade do transportador de pessoas é remetida ao art.1.757, localizado no título quinto, que trata das “outras fontes das obrigações”, em cujo capítulo primeiro estão as normas sobre “responsabilidade civil”. De acordo com esse dispositivo, a responsabilidade é objetiva e não haverá excludente fundada em autorização administrativa para o uso da coisa ou a realização de atividade, muito menos pela prova do cumprimento de técnicas de prevenção.

Na sequência, cuidar-se-á das demais espécies contratuais.

P.S. O colunista, a fim de não interromper uma vez mais a série sobre o Código argentino, optou por não escrever um texto adequado ao período. Independentemente disso, deixa-se aos leitores (a razão de ser desta coluna) e à equipe da ConJur, bem assim a seus familiares, os votos de um Feliz Natal.


[1] O Código Civil e Comercial Argentino utiliza as expressões “fija la jurisdicción” e “prorroga de jurisdicción”. Optou-se por traduzir para “firma a competência” e “prorrogação da competência”, por se entender mais conforme ao sentido do português jurídico.

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  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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