Observatório Constitucional

Ativismos são necessários no
Estado de Direitos Fundamentais

Autor

  • Christine Oliveira Peter da Silva

    é mestre e doutora em Direito Estado e Constituição pela UnB professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

20 de dezembro de 2014, 7h00

O plural empregado no título deste artigo indica minha opção consciente pela teoria possibilista como referência teórica para a reflexão aqui proposta. A teoria possibilista, como uma teoria tripartite das realidades, necessidades e possibilidades, tal qual apresentada por Peter Häberle[1], é aquela que permite analisar um mesmo fenômeno sob diversos pontos de vista e encontrar suas múltiplas razões, versões e propostas de teses.[2]

Tenho compartilhado minhas reflexões constitucionais mais recentes com Carlos Ayres Britto[3] e já não é novidade que venho propondo um deslocamento da questão do ativismo judicial, tema tão debatido nos círculos acadêmicos, para o ativismo constitucional, a partir de uma afirmação já repetida inúmeras vezes por Ayres Britto: “O ativismo no Brasil é da Constituição e, não, dos juízes!”.[4]

O ativismo constitucional é toda ação que tenha como meta realizar a Constituição, ou mais especificamente, é o conjunto de ações, sempre complexo e descentralizado, de fazer valer as normas constitucionais jusfundamentais em todas as práticas de poder, seja pelo administrador público, seja pelo legislador, seja pelo juiz.

O deslocamento da discussão sobre ativismo judicial para o ativismo constitucional propõe olhar a prática ativista como inerente às funções de poder exercidas há mais de dois séculos no que se tem experimentado como realidade chamada de Estado constitucional. Assume-se, portanto, o ativismo judicial como parte integrante e inerente a outras formas de ativismo, como os ativismos legislativo e administrativo necessários para o exercício das competências constitucionalmente distribuídas entre as funções de poder.

Assim sendo, os limites, excessos e potencialidades do ativismo, seja o judicial ou qualquer outro, podem ser enfrentados a partir da premissa de que somente com o comprometimento de todos os órgãos de poder e suas competências constitucionalmente estabelecidas, no jogo democrático, é que será possível impor os limites e conter eventuais excessos dessa prática que, se monopolizada por qualquer dos interlocutores, apresenta-se inadequada a qualquer versão de constitucionalismo.

São três as propostas de abordagem do fenômeno aqui chamado de ativismo constitucional: o ativismo constitucional como ideologia; como teoria e como metodologia. Na verdade, todos são facetas de uma mesma realidade, qual seja, a de que, no Estado Constitucional, a perspectiva estática do Direito necessariamente tem que ganhar contornos dinâmicos, pois não mais se admite a dogmática jurídica e constitucional como aquela exclusiva dos juízes e suas decisões. Todos estão vinculados e submetidos à Constituição e, já por isso, devem ser ativistas na exata medida de suas competências constitucionais.

A premissa central desse raciocínio é que o ativismo dos juízes certamente repercutirá nos ambientes de atuação do legislador e administrador, os quais devem movimentar-se, sempre pautados pela Constituição, em ações concretizadoras dos direitos expressos no texto da Constituição, também com o intuito de limitar, contrapor ou complementar as ações dos magistrados.

Pressupor algo diferente, ou seja, de que há um espaço de decisão judicial imune à interação com os espaços de decisões políticas e administrativas, é fechar os olhos para a realidade cotidiana de exercício de poder, bem como para as necessidades e possibilidades apresentadas pela complexa teia constitucional engendrada desde o final do século XX.

Sob a perspectiva ideológica, o ativismo constitucional propõe a existência de um fundamento racional para considerar a Constituição como uma ordem objetiva de valores. A doutrina constitucional já é vetusta ao apontar, no quadro das possíveis teorias dos direitos fundamentais[5], a teoria da ordem de valores como aquela que pressupõe a vinculação de todo o ordenamento jurídico aos direitos fundamentais.

Assim, os direitos fundamentais, vistos a partir da ordem de valores, apresentam-se como pauta de caráter objetivo a irradiar seus efeitos para todos os campos do saber e do fazer jurídicos, deixando a sua condição clássica de direitos subjetivos ou de meras pretensões subjetivas.

Também é preciso registrar que os direitos fundamentais, concebidos como ordem de valores objetiva, dotada de unidade material e na qual se insere o próprio sistema de pretensões subjetivas, reconduzem a princípios objetivos através da realização dos quais se alcança uma eficácia ótima deles próprios, reconhecendo-se ainda um verdadeiro estatuto de proteção aos cidadãos.[6]

Em resumo, sob a perspectiva ideológica, o ativismo constitucional seria aquele inevitavelmente comprometido com a concretização dos direitos fundamentais com efeitos irradiantes, dirigentes e horizontais para todos os âmbitos da vida jurídica, exigindo dos ativistas constitucionais (sejam juízes, legisladores, administradores, órgãos auxiliares da Justiça, ativistas da sociedade civil organizada, etc) um discurso justificador de suas ações e decisões estritamente vinculado à tarefa de tornar concretos os princípios jusfundamentais.

Nesse particular, não se desconhece a crítica quanto ao enfraquecimento dos direitos fundamentais pela possibilidade de sua banalização em virtude do grande número de casos concretos envolvendo direitos fundamentais. Porém, também é possível afirmar que a construção dialética e cooperativa desses direitos pelos mais diversos atores sociais é a única forma que enfrentar o problema da sua relativização, pois somente o efetivo controle recíproco será capaz de minimizar os efeitos negativos da relativização pela concretização individual em casos específicos.

Assim, ao invés de negar a relevância das críticas formuladas ou de tentar refutá-las uma a uma, o ativismo constitucional ideológico enfrenta as suas dificuldades assumindo-as como parte do próprio processo de realização das normas jusfundamentais. E não é por outro motivo que a postura ativista tem conduzido a muitas reflexões, especialmente diante do embate que atualmente se apresenta em evidência entre o constitucionalismo clássico (Estado de direito) e o chamado neoconstitucionalismo (Estado constitucional).[7]

Em verdade, tal embate, no plano teórico, representa mais uma tentativa de superação da dicotomia juspositivismo/jusnaturalismo e, nesse contexto, a discussão desloca-se da referida dicotomia para como tais escolas do pensamento jurídico, na contemporaneidade, tem lidado com a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, com os discursos e práticas do humanismo pós-segunda guerra.

A complexa e multifacetada teoria da dignidade humana apela a uma referência cultural e social plural, recolhida pragmaticamente de sugestões filosóficas e doutrinárias de diferentes esferas, com diferentes causas e consequências.[8] Não pode ser desconsiderada como métrica hermenêutica inerente ao afazer do intérprete de direitos fundamentais, necessariamente ocupando lugar de destaque em qualquer proposta teórica que se diz humanista.

O que tem notado é que críticos do princípio da dignidade humana se voltam mais para aos riscos do ativismo judicial — e consequentemente o poder que se acabou por conceder ao poder judiciário de reconhecer e até de criar direitos fundamentais — do que com a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana em si.

Ao propor um giro na reflexão sobre ativismo judicial para uma reflexão sobre ativismo constitucional pretende-se evitar os excessos da já cansativa discussão sobre a maléfica concentração de poder na figura dos juízes, para concentrar esforços na difícil tarefa de se construir uma dogmática constitucional humanista.

O ativismo constitucional, no plano teórico, já iniciou seus esforços em dar suporte ao antídoto para este problema, pois diferentemente das correntes realistas, o neoconstitucionalismo, não supera o aspecto normativo do positivismo, porque com ele compartilha a premissa de que direito é norma (premissa básica do raciocínio de Hans Kelsen). Nem o juiz, nem o administrador, nem mesmo o legislador pode afastar-se dos comandos normativos básicos (e aqui, por óbvio, estamos a falar da Constituição como norma suprema) sem o crivo do devido processo legal substantivo.

Como reflexos mais específicos dessa novidade para a seara do direito constitucional podem ser enunciados: i) o deslocamento da teoria dos direitos fundamentais como direitos subjetivos para a da teoria dos direitos fundamentais como ordem objetiva de valores constitucionais; e ii) o deslocamento da centralidade normativa exclusiva da figura do legislador para uma descentralização da produção normativa também para os demais órgãos que exercem função de poder (como o Judiciário e o Executivo) e até por atores não-estatais ou quase-estatais com influência política em seus âmbitos (como entidades e organizações nacionais e internacionais).

Mas como fazer isso? O ativismo constitucional, pelo prisma metodológico, propõe atitude ativista cujas ações e procedimentos metódicos conduzam sempre à concretização de direitos fundamentais. Ou seja, pela hermenêutica específica dos direitos fundamentais, a qual pressupõe um raciocínio metódico irremediavelmente vinculado ao devido processo legal substantivo, é que se consegue chegar a resultados satisfatórios nesse contexto. Assim, não há como fugir dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade.

Isso porque, toda concretização de direitos fundamentais implica um raciocínio metódico que envolve, em alguma medida, restrições, concorrências ou colisões desses direitos.[9] A afirmação de que não há direitos fundamentais absolutos decorre exatamente da dinâmica de sua concretização, uma vez que no amplo universo desses direitos apresenta-se inevitável o confronto dos âmbitos de proteção de diversos direitos, sejam de um mesmo titular (concorrência), sejam de titulares diferentes (colisão), o que irá desembocar em uma ou mais práticas de restrições recíprocas.

Considerando que, no Brasil, não vingou a tese da hierarquia entre normas constitucionais[10], não há como afastar-se metodologicamente do juízo de ponderação como meio de tornar concretos os comandos constitucionais. Há controvérsias doutrinárias e críticas ao método de ponderação como atitude metodológica adequada para a concretização de direitos fundamentais, porém, continua sendo esta técnica a que mais se recorre quando direitos fundamentais estão em colisão ou concorrência, sendo necessária a restrição do âmbito de proteção de um ou mais direitos envolvidos.

A atitude ativista, nesse âmbito, implica um ônus argumentativo para justificar as ações e decisões a serem tomadas, pois sempre que se está diante da necessidade de reconhecimento da prevalência de um direito fundamental em detrimento de outro, é preciso construir um discurso fundamentado e convincente sobre a decisão tomada, não sendo possível assumir a premissa falaciosa de que somente argumentos jurídicos (e irrefutáveis) estarão em jogo.

Outrossim, os limites das restrições impostas deverão ser confrontados com o parâmetro do devido processo legal substantivo, ou seja, pela proporcionalidade — e seus subcritérios da adequação, necessidade ou proporcionalidade em sentido estrito — ou pela razoabilidade — também com os seus subcritérios de equidade, congruência e equivalência.[11]

Trata-se de uma metódica complexa, não há como negar, porém o exercício cotidiano do jurista comprometido com os direitos fundamentais cria ambiente adequado para experimentar os métodos e procedimentos necessários para o seu exercício.[12]

Como conclusão, pode-se dizer que não há como fugir da pedagogia constitucional, como um espaço necessariamente a ser ocupado com a metódica de aplicação e racionalização da concretização dos direitos fundamentais, sob a perspectiva da compreensão (hermenêutica) e da comunicação/linguagem (argumentação), em tempos de ativismos.

Acredito que somente com práticas pedagógicas direcionadas para uma construção cultural — a cultura constitucional — vamos deixar de reproduzir os mesmos equívocos e refletir sobre as mesmas críticas daqueles que já, há mais de dois séculos, enfrentam a complexidade, inerente e inevitável, dos ativismos que são necessários para que se tornem realidade, em sua máxima potencialidade, as possibilidades de um Estado de direitos fundamentais.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] “Não se trata de considerar qualquer tipode possibilidade, de necessidade ou de realidade, mas também de fazê-lo  com algumas especificidades que se encontram no seio ou campo gravitacional do Estado constitucional, âmbito onde todas elas se ponderam.” Cf. HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: Estúdios de Teoría Constitucional de la Sociedad Abierta .Tecnos, Madrid, 2002, p. 60.
[2] Aqui, pela própria limitação da coluna, as considerações foram ajustadas aos objetivos e padrões editoriais.
[3] Inevitável fazer  referencia ao Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais – CBEC do ICPD/UniCeub, que tem nos proporcionado ambiente institucional para partilharmos pesquisas, estudos e reflexões.
[4] Esta reflexão também pode ser encontrada e aprofundada em meu: Do ativismo judicial ao ativismo constitucional no Estado de direitos fundamentais, in Revista Brasileira de Políticas Públicas, 2015, no prelo.
[5] Para uma visão mais ampla, no bojo da teoria geral dos direitos fundamentais, acerca das teorias dos direitos fundamentais vide meu: Hermenêutica de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2005.
[6] CANOTILHO, J. J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra : Almedina, 2003, p. 1397.
[7] Como uma obra que retrata de forma séria e fiel o referido embate recomendo leitura: GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito. São Paulo : Saraiva, 2014.
[8] CANOTILHO, J. J. Gomes. Brancosos e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional, 2ª ed. Coimbra : Almedina, 2008, p. 180-181.
[9] Sobre uma abordagem detalhada sobre a as metódicas de colisão, concorrência e restrição de direitos fundamentais, vide: CANOTILHO, J. J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra : Almedina, 2003, p. 1268-1284.
[10] Quem se interessar pela doutrina correspondente, vide: BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra : Almedina, 2008.
[11] Sobre esta classificação, por todos vide: ÁVILA, Humberto Bergman. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 13ª edição. São Paulo : Malheiros, 2012.
[12] Uma proposta que se aproxima daquilo que considero uma postura adequada acerca da aplicação da proporcionalidade como decorrência da dogmática dos direitos fundamentais pode ser encontrada em: SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, in Revista dos Tribunais, n. 798, 2002, p. 23-50.

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