Ditadura dos Tribunais

Pensou-se no STF e no STJ, mas faltou ouvir o povo sobre o novo CPC

Autor

  • Nelson Nery Jr.

    é parecerista professor titular das Faculdades de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC­-SP) e da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp) e sócio do Nery Advogados

20 de dezembro de 2014, 12h16

[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 17/12]

Melhorar a legislação do País é sempre providência salutar e bem­vinda, pois a todos interessa a existência de leis constitucionais e adequadas à realidade brasileira e, no caso específico do processo civil, que atendam às garantias constitucionais da celeridade processual e da razoável duração do processo.

Equívoco muito comum entre nós é pretender modificar a legislação como se, num passe de mágica, essa mudança fosse capaz de alterar a natureza e a realidade das coisas. Não é com mudança de legislação, apenas, que serão melhoradas as condições da Justiça brasileira e o tempo de duração dos processos, bem como a qualidade da prestação jurisdicional pelos juízes e tribunais do País.

Leis nós temos muitas. E boas. O CPC vigente, de 1973, é uma lei excelente. O novo, que foi aprovado pelo Senado, não foi feito porque a lei anterior era ruim, mas para tentar equacionar o problema do estoque dos processos nos escaninhos dos órgãos do Poder Judiciário, principalmente nos tribunais superiores.

A aplicação dessas leis e/ou sua efetividade é que sofrem das mazelas culturais, econômicas e sociais próprias de País em desenvolvimento e que está caminhando a passos lentos para a estabilização das instituições democráticas.

O Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública são dois exemplos excepcionais, que têm prestado relevantes serviços à cidadania brasileira, mas que, por outro lado, não têm sido tão efetivos em virtude da utilização inadequada por todos aqueles que devem se servir dessas leis. Falamos de advogados, membros do Ministério Público, Magistrados em geral, órgãos da Administração Pública e Procuradores Públicos. Essa é a razão pela qual se pretende a reforma do CDC e da LACP. O problema não é de deficiência da lei, mas sim sua aplicação e efetividade. Em suma, o problema é cultural.

No caso do CPC, o cenário é um pouco diferente, mas a gênese é semelhante. Há um problema grave de acúmulo de processos no Poder Judiciário, o que vale dizer que há demora excessiva na solução dos casos submetidos ao exame dos juízes e tribunais.

Apesar da versão aprovada pelo Senado Federal ser muito melhor do que a de 2010, originariamente aprovada pelo mesmo Senado e que era extremamente ruim, pensou­se num novo CPC que privilegiasse a questão do estoque de processos e a hierarquia dos tribunais superiores sobre os tribunais regionais federais e estaduais e, destes, sobre os juízos singulares.

Essa visão, em meu modo de ver é, em princípio, distorcida, porque ataca o efeito mas não a causa. Há um número excessivo de processos, então tomam­se medidas para solucionar a questão. O problema é de outra ordem, nomeadamente, de natureza cultural. O exemplo vem de cima, pois o primeiro a descumprir a Constituição e as leis é o Poder Público. Ele não cumpre as leis e, com esse mau exemplo, os particulares também não cumprem, gerando a judicialização dos problemas originados por esse descumprimento. Se o Poder Público cumprisse a Constituição e as leis, tomando a iniciativa de decidir com responsabilidade questões cristalinas sobre as quais não há dúvida, a diminuição de demandas seria sensível e ocorreria automaticamente.

O projeto aprovado pelo Senado obedece a pauta dos tribunais superiores. Vale dizer, foi elaborado para desafogar os escaninhos principalmente do STF e do STJ, sem que se tivesse privilegiado o jurisdicionado, o povo, destinatário final da prestação jurisdicional.

Não se perguntou à população se ela quer a extinção de recursos ou a dificuldade em admitir­se recurso para qualquer tribunal. Ou seja, se deseja que seu direito constitucional de ação seja impedido por decisão liminar que julga improcedente sua pretensão, e colocando um ponto final na discussão se essa contraria súmula de tribunal!

Em meu entender, a população deveria ter sido consultada, de nada valendo a afirmação de que o projeto foi aprovado na "Casa do Povo", que é a Câmara dos Deputados. Estou falando de democracia verdadeira e não de democracia formal. Não se faz um Código de Processo Civil para atender interesses apenas de tribunais.

A questão da hierarquia é ainda mais aguda. Quer­se instituir o autoritarismo do processo com o denominado "direito jurisprudencial", termo que coloco entre aspas porque entendo ser pejorativo, já que não pode existir num País que adota como fundamento o estado constitucional, jurisprudência vinculante, seja de que tribunal partir essa determinação. O CPC de 1973, aprovado durante o regime da ditadura militar era e é ideologicamente democrático; o novo CPC, com a instituição de obediência hierárquica dos juízos aos tribunais, com a instituição de súmula vinculante, súmula impeditiva de recurso e outros expedientes assemelhados, será um código ideologicamente autoritário. Mais uma vez estaremos diante de um "estado democrático de direito" virtual, de uma democracia com punhos de renda.

No mais, naquilo que o projeto traz de melhoria dos institutos processuais, só pode receber elogios, pois, repito, ninguém pode colocar­se contra a melhoria da legislação. Mas isso é varejo. No atacado, o Código será autoritário, instalará a ditadura dos tribunais e descumprirá o já tão menosprezado direito de ação, garantia constitucional que deverá ser tratada como cláusula de algodão, porque de pétrea parece que não terá mais nenhum vestígio.

Boa sorte ao jurisdicionado brasileiro. É o quer posso humildemente desejar.

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    é parecerista, professor titular das Faculdades de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC­-SP) e da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp) e sócio do Nery Advogados

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