Morosidade da Justiça

Novo CPC não simplifica procedimentos judiciais, nem diminui sua duração

Autor

  • Leslie Ferraz

    é mestre e doutora em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) foi pesquisadora visitante na Universidade de Firenze (Itália) e na Fordham Universitiy (Nova Iorque EUA). Atualmente é pesquisadora professora da PUC-Rio e do Mestrado Acadêmico em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes.

20 de dezembro de 2014, 6h30

O “novo” (?) Código de Processo Civil (NCPC) nasce com a promessa de trazer “a felicidade que o povo brasileiro merece”, por meio da criação de um “processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e aberrações que passam pela Ponte da Justiça”.

Será mesmo? A mudança legislativa é suficiente para solucionar as mazelas da Justiça brasileira num passe de mágica, num piscar de olhos?

As pesquisas empíricas que eu venho desenvolvendo durante a última década apontam claramente que não. Cito alguns exemplos.

Um ponto muito festejado é a mudança no sistema recursal. Embora se afirme que “bastante simplificado foi o sistema recursal”, não é isso que se conclui de sua breve leitura: o número de recursos elencados no atual e no novo código é exatamente o mesmo (oito). No NCPC, entra o agravo interno no lugar dos embargos infringentes.

Neste ponto, aliás, também se afirma que “uma das grandes alterações havidas no sistema recursal foi a supressão dos embargos infringentes”. Para aferir a procedência desta assertiva, fiz um breve levantamento de dados no Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro. Aferi que os embargos infringentes representam ínfimos 0,26% dos recursos da Corte Fluminense. Ou seja: sua supressão, proclamada como uma das grandes alterações da nova legislação, não trará nenhum impacto – ao menos no Rio de Janeiro e em termos de redução do número de recursos, um dos principais objetivos da reforma.

Também me preocupa quando se afirma que o NCPC irá solucionar o problema da morosidade da Justiça.

Eu participei de um estudo sobre os cartórios judiciais, coordenado pelo professor Paulo Eduardo Alves da Silva (PNUD/ CEBEPEJ/Direito GV), que aponta que o processo passa entre 80% a 95% do tempo de tramitação no cartório. A pesquisa detectou que, em termos de morosidade, o principal problema reside no “tempo morto”, isto é, o tempo que o processo fica parado no cartório, sem andamento. Isso significa que a mera alteração nos procedimentos e prazos processuais sem a correspondente e necessária modernização dos sistemas de gestão dos cartórios judiciais trará pouco ou nenhum impacto no tempo de duração do processo.

Um dos maiores problemas atuais da Justiça brasileira são as demandas repetitivas. A solução trazida pelo NCPC é o incidente de coletivização que, embora seja um avanço, uma clara tentativa de gerir um contencioso de massa, não é a melhor saída. É que ele lida com uma questão de natureza evidentemente coletiva de forma individual.

Eu explico: o sistema imposto pelo NCPC não impede o ajuizamento de milhares de ações individuais idênticas. O que acontece é que, caso se afira o potencial de repetição, todas as ações são suspensas, aguardam o julgamento pelo Tribunal e, em seguida, são processadas uma a uma, de forma artesanal.

Uma questão evidentemente coletiva jamais poderia entrar no Poder Judiciário de forma individual, devendo ser objeto de uma única ação capaz de amparar todos os indivíduos lesados. A melhor solução, portanto, para as demandas de massa, é fortalecer nosso sistema de tutela coletiva.

Neste ponto, também entendo que, se o sistema regulatório não funcionar a contento no Brasil, a Justiça brasileira continuará a enfrentar lentidão e inchaço causados pelas demandas de massa.

E mais: se não abandonarmos a visão centralista de que o Poder Judiciário deve solucionar todo e qualquer problema enfrentado por cada cidadão brasileiro, também não conseguiremos avançar. Países desenvolvidos, como Austrália e Inglaterra, contam com programas calcados em medidas extrajudiciais para solucionar, por exemplo, demandas de telefonia (acordo, negociação, ombudsman), conduzidos pelas próprias empresas e controlados pelo governo, sem qualquer interferência do Judiciário.

Por fim, na última pesquisa sobre Justiça Itinerante que coordenei em todo o país (Ipea), detectei que as mesmas regras processuais são aplicadas no Fórum Central da cidade de São Paulo e no barco que atende comunidades ribeirinhas do Amapá. E nem poderia ser diferente, já que nossa legislação não previu nenhum procedimento diferenciado. Este desarranjo acaba tendo que ser compensado pelos juízes e servidores da itinerância, obrigados a flexibilizar algumas regras pela impossibilidade de aplicação do CPC, extremamente formalista, na íntegra. E o NCPC não altera este quadro.

De outra sorte, também detectei diversos casos em que a parte optou pela Justiça Itinerante ao invés do juízo comum, pois, apesar de sua estrutura ser muito mais precária, os usuários acreditam que o tratamento é mais informal e os resultados, mais rápidos. Ou seja: a população prefere um processo mais simples e efetivo.

Por que criar procedimentos complexos, ritos incompreensíveis e palácios inacessíveis? Sempre tive a impressão de que nosso processo civil está mais comprometido com os dogmas da doutrina italiana do que com seus usuários. E, com o NCPC, não é diferente.

Um Código de Processo realmente novo, precedido de uma ampla pesquisa empírica e de debates aprofundados, certamente contribuiria para uma Justiça mais simples, célere e efetiva. Infelizmente, contudo, a oportunidade foi desperdiçada. 

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    é mestre e doutora em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), foi pesquisadora visitante na Universidade de Firenze (Itália) e na Fordham Universitiy (Nova Iorque, EUA). Atualmente, é pesquisadora, professora da PUC-Rio e do Mestrado Acadêmico em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes.

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