Tratamento setorial

Qual a real necessidade de uma reforma tributária no Brasil

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18 de dezembro de 2014, 5h48

Tem-se falado com muita frequência sobre a necessidade de promover uma reforma tributária no Brasil. O assunto se tornou uma espécie de bandeira do próximo mandato presidencial e um mantra para aqueles que criticam o fraco desempenho da economia nacional.

Critica-se no Brasil o excesso de incidências tributárias e a alta carga imposta sobre os setores produtivos, a equivocada e antirrepublicana destinação que se dá aos recursos arrecadados, a inércia do Poder Judiciário em julgar causas que seriam os paradigmas de comportamento das autoridades fiscais e dos contribuintes, bem como as bruscas mudanças de entendimento que os Tribunais Superiores perpetram e que culminam em ambiente de insegurança jurídica, afastando investimentos que seriam tão caros em épocas de retração econômica como a que vivemos.

Para aqueles que pretendam se aprofundar nos pontos mencionados anteriormente, basta consultar a elucidativa entrevista feita por Alessandro Cristo e Marcos de Vasconcellos ao advogado Hamilton Dias de Souza, publicada nesta revista eletrônica no último dia 30 de novembro.

Não se nega a necessidade que o país tem em avançar nas questões já mencionadas. Aliás, anualmente os rankings[1] internacionais de países que mais favorecem o ambiente de negócios são contundentes em concluir que o Brasil precisa tornar o seu Poder Judiciário mais ágil e previsível, que deve reduzir o número de obrigações acessórias (cujo número, atualmente, transformou os departamentos de controladoria de empresas em verdadeiros centros de compliance), além de reduzir a carga tributária e empregar os recursos dela advindos em obras estruturais que possam suportar o desenvolvimento do país.

No entanto, em nossa visão, existe um tema que tem sido abordado com pouca habitualidade, cuja responsabilidade deve ser atribuída aos Poderes Legislativo e Executivo, e que já resolveria ou ao menos afastaria grande parte das queixas que os empresários têm em relação ao ambiente de negócios no Brasil: a coerência de tratamento setorial.

Para se exemplificar o que se busca dizer, tome-se o setor de transporte aéreo de pessoas e cargas. No âmbito federal, desde 2011 o setor foi tomado por significativas alterações na carga e na forma de apuração de tributos, especialmente com a desoneração da folha, quando implementada a sistemática de cálculo sobre o faturamento ao reverso do percentual sobre as remunerações pagas, conforme disposições da Medida Provisória 540, convertida na Lei 12.546/11 e ampliada por alterações posteriores (Leis 12.715/12, 12.794/13 e 12.844/13).

A medida apresentada foi salutar para as empresas de aviação, que receberam com entusiasmo a redução da carga tributária; no entanto, a solução mostrou-se temporária, eis que uma das alterações perpetradas na Lei 12.546/11 pela Lei 12.715/12 resultou em aumento de 1% na alíquota da Cofins-Importação para determinados produtos, dentre aqueles os importados por companhias aéreas para manutenção das suas aeronaves e que estavam sujeitos à alíquota zero. Em um primeiro momento, o setor recebeu a alteração como inócua, na medida em que não faria sentido um “aumento de alíquota” sobre um produto cuja alíquota era zero.

No entanto, este entendimento não foi acolhido pela Receita Federal do Brasil que, por meio do Parecer Normativo 10, de 20 de novembro de 2014, exarou seu entendimento no sentido de que o referido aumento apenas não valeria nas hipóteses de imunidade e isenção, mas que seria aplicável nos casos de alíquota zero e que, inclusive, não deveria gerar crédito para a empresa que poderia ser amortizado em sua atividade regular (o transporte de cargas, ao contrário do transporte de passageiros, está sujeito à sistemática não cumulativa de incidência da Cofins).

Ora, vê-se que, imediatamente a uma medida de simplificação do sistema e redução da carga, já se institui uma obrigação nova, de aspectos de difícil compreensão, e que incide justamente sobre produtos utilizados em uma atividade que acabava de ser desonerada. Pergunta-se: não seria mais racional se proceder a uma desoneração inferior em termos de renúncia tributária para o referido setor, ao invés de, simultaneamente, trocar aspectos de duas incidências tributárias, as quais que podem até mesmo se anular?

Ainda no âmbito federal, há que se fazer menção à Medida Provisória 652, editada em julho de 2014 com o objetivo de criar um programa de estímulo à aviação regional. Ora, o assunto não é novo e vem de longa data sendo discutida a necessidade de criação de incentivos para que as empresas passem a explorar o transporte regional de passageiros, em país de dimensão continental como é o Brasil. No entanto, ao invés da iniciativa legislativa ser promovida pelo Congresso Nacional, onde seria o seu ambiente natural de maturação, o Poder Executivo fez editar a referida Medida Provisória, a qual não foi votada pelo Congresso em tempo hábil e perdeu sua validade com a edição do Ato Declaratório 44/2014. Oportunamente, em 2015, ao reverso da matéria ser discutida nas Casas Legislativas, o Poder Executivo já anunciou que fará a reedição da medida provisória, cultivando o ambiente de instabilidade e de falta de previsibilidade para realizar investimentos.

Aproveitando-se o ensejo da aviação regional, outro ponto que demonstra a falta de coerência e sistematização da tributação setorial no Brasil está relacionado com os incentivos fiscais concedidos pelos Estados sobre o Querosene de Aviação (QAV) para as empresas que atendem determinado número de aeroportos naquele Estado. Ao reverso de que tais incentivos fossem concedidos de maneira uniforme, por meio de Resolução do Senado Federal, cada Estado decide criar um número específico de regras, que às vezes são cumpridas pelas empresas simplesmente para aproveitar os benefícios do abastecimento completo de combustível das aeronaves, e não pela atratividade das rotas, um verdadeiro exemplo de interferência da tributação na escolha sobre como o empresário vai gerir sua atividade.

Este tipo de conduta, além de advogar contra as normas de segurança aeronáuticas, permite que indevidamente empresas gozem de incentivos sobre outras que podem não preencher os erráticos requisitos exigidos pelas legislações estaduais, por aspectos acessórios das aeronaves, como modelo ou número de lugares.

No entanto, não apenas nos âmbitos federal e estadual que as normas não gozam de coerência no tratamento setorial. Mesmo no âmbito municipal uma nova questão se revela: diante dos últimos julgamentos havidos junto ao Supremo Tribunal Federal, em que a Corte reiterou o seu entendimento de que não incide o ICMS no arrendamento internacional de aeronaves, a Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (ABRASF) sustentou que, tendo sido reconhecida a constitucionalidade da cobrança do ISS sobre o arrendamento mercantil nas operações nacionais, no caso das aeronaves, o tributo também deveria ser pago ao município em que desembaraçado o produto.

Sem adentrar à constitucionalidade da cobrança (que em nosso ver é inconstitucional, posto que, ainda que se acolha o entendimento exarado pelo STF no julgamento do arrendamento mercantil interno, não haveria como se reconhecer a existência de um estabelecimento prestador no arrendamento internacional que pudesse cumprir com o critério pessoal da hipótese de incidência), é certo que se iniciará uma disputa dos municípios pelo objeto da arrecadação, que mais uma vez prejudicará a estruturação da operação do setor como um todo, seja porque as companhias aéreas estrangeiras ficarão a salvo do tributo (gerando desequilíbrios de concorrência), seja porque, caso a cobrança possa prevalecer, mais uma vez a atividade do setor será influenciada e as aeronaves serão desembaraçadas nos municípios em que houver a menor carga aplicável, o que demonstra a falta de tratamento uniforme lato sensu pela legislação nacional para empresas que estão na mesma situação jurídica.  

Em conclusão, a necessidade de reforma fiscal iminente deve ser interpretada sobre duas óticas: (i) a primeira delas é pela sua desnecessidade imediata, tendo em vista que os contribuintes demorariam muito tempo para se adaptar às novas regras vindouras, enquanto a uniformização daquelas já existentes já seria suficiente para reduzir, no curto prazo, o custo das empresas com a apuração e administração de tributos; (ii) caso seja levada a efeito, será de pouca valia se, indistintamente, as políticas públicas não levarem em conta o tratamento setorial de forma macro, alinhando os interesses das três esferas de governo e se, com o passar dos anos, a reforma seja viciada com a complexização das regras criadas, a exemplo do que ocorreu com o Simples Nacional, o Lucro Presumido, entre outros fartos exemplos da cultura legiferante do nosso país.


[1] Veja o “Doing Business 2014” elaborado pelo Banco Mundial. Disponível em <http: www.doingbusioness.org>.

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