Oportunismo marqueteiro

Justiça não se faz com vingadores, faz-se com um Judiciário independente

Autor

  • Marcelo Silva Moreira

    é juiz de Direito e coordenador substituto da Unidade de Monitoramento Acompanhamento Aperfeiçoamento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Maranhão.

17 de dezembro de 2014, 6h17

No momento em que escrevo essas linhas, tenho certeza, o pai, filho, esposo ou esposa de alguém, namorado ou amigo, estará perdendo a vida em mais um crime violento. Famílias vão chorar. Luto e dor se seguirão na ordem dos fatos. Não bastasse isso, um sentimento de revolta acometerá os que ficaram. Por que? De quem é a culpa? Que país é este? Questionamentos assim ecoarão aos quatro ventos. Órfãos, viúvas e amigos bradarão por justiça. Alguns por vingança. Enfim, por algo que possa, de alguma maneira, se não aplacar, pelo menos representar à memória do ausente, a lembrança de que ele não foi esquecido, de que nem tudo foi em vão.

É possível falar-se racionalmente num momento assim? É possível não se questionar se o Estado, por seus Poderes e agentes não deveria ter evitado a tragédia, diga-se de passagem, anunciada? Por maior que seja o sofrimento e revolta, devemos sim pugnar pela coerência dos discursos. Esse é um imperativo da sociedade em pleno século XXI. Esse é um imperativo de justiça, palavra essa que, diga-se de passagem, não se reduz às decisões de algum órgão judicial.

Algumas “soluções” costumam ser imediatamente apontadas: ao desgraçado do assassino a morte ou a masmorra de alguma das “Pedrinhas” desse imenso Brasil. Muitos clamarão por isso. É a hora do olho por olho, dente por dente; lei e ordem propagarão alguns jurisconsultos. Eis ai um discurso, que num cenário de tantas injustiças, das pequenas às graúdas, pega fácil.

E nesse oportunismo marqueteiro, críticos de toda a espécie buscarão para além do homicida, a figura de um culpado, momento que emerge, na ponta da língua dos “formadores de opinião”, aquele que, por ter poder de decisão, deveria também responder pela injustiça da perda do ente querido de alguém: o juiz.

No Brasil, segundo a turba, juiz é aquele sujeito dotado de privilégios de toda ordem, que vive encastelado em seu suntuoso fórum ou tribunal, que recebe salário estratosférico e enquadra agentes de trânsito na base da carteirada. É ele quem, por ter concedido anteriormente liberdade provisória ou revogado a prisão preventiva do agora homicida, deve também ser responsabilizado pela tragédia, afinal, por que aquele assassino miserável não permaneceu encarcerado após ter cometido um delito anterior? "A polícia prende e a justiça solta", bradarão os mais exaltados!

Bom, é sempre muito difícil colocar os pingos nos is quando disso emana um discurso contramajoritário, mas ao mesmo tempo, é imperativo que tentemos, principalmente sendo este que vos fala, tal como a esmagadora maioria de seus colegas, um magistrado que não é dotado de privilégios, mas sim de prerrogativas que existem para o bem da própria sociedade; que não vive encastelado em seu fórum que, aliás, de suntuoso nada tem; que não recebe salário estratosférico mas, apenas, a justa remuneração (ainda que corroída pela inflação) devida ante a responsabilidade de seu cargo; que não dá "carteirada" em agente de trânsito nem em ninguém, até porque, do jeito que as coisas estão, anunciar-se juiz no Brasil não tem sido a melhor das apresentações.

Assim, em respeito à plêiade de magistrados brasileiros, fiéis cumpridores do seu dever, não podemos calar ao vermos, ouvirmos e lermos tão inflamados discursos dos justiceiros de plantão.

Justiça, em qualquer sociedade civilizada ou pelo menos naquelas que o pretendem ser, não se faz com vingadores, faz-se com juízes e juízas, com um Poder Judiciário independente.

Convém nesse cenário lembrar, que acusados em processos criminais não se reúnem com magistrados no céu, para serem agraciados com o “perdão divino”, nem tampouco no inferno, a fim de padecerem por seus pecados. Réus vão ter com juízes nas salas de audiência dos fóruns. Nesses locais, a grande maioria desprovida do glamour e do aparato alardeado, a única força suprema que deve emanar é a da Constituição, sim, daquele documento que emanado da vontade soberana dos representantes do povo, regula a minha, a sua, a vida da vítima e de seus familiares e também, pasmem, a do acusado, conferindo-lhe obrigações mas também direitos. Vou repetir: di-rei-tos, dentre os quais, apenas para exemplificar, o que diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante e que ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal.

Perguntar-se-ia então, mas e a vítima? E seus familiares? A eles nem a comissão de direitos humanos da OAB? Ora bolas, vítimas da violência que nos assola somos todos nós, porque emana da mesma Constituição o direito à vida, à liberdade, à segurança, premissas que constituem o alvo, o fim mesmo da reunião de pessoas em sociedade, e que, portanto, devem ser buscados incessantemente, não apenas por juízes, mas também por cada cidadão, inclusive por aqueles que, na hora "H", elegem seus titiricas e mensaleiros.

Pela concretização de tais ideais, somos todos responsáveis e isso exige que cada um saiba direcionar as suas cobranças com a mesma justiça que exigem daqueles a quem a Constituição (lá vem ela de novo) atribuiu obrigação de a salvaguardar.

Ué, perguntariam outros, no Brasil não se pode falar mal dos juízes? Ora, se reclamamos até de Deus, quando nos frustramos em nossas expectativas, quanto mais do juiz, que de Deus (nem de Diabo), nada tem. Ocorre que a crítica exige, sob pena de injusta generalização, a necessária especificidade. Ser pontual na crítica a uma decisão judicial exige que se busque as suas verdadeiras razões ou pelo menos que se garanta aquilo que é comum nos processos judiciais e que, a meu sentir, deveria representar um padrão no comportamento humano, o respeito ao contraditório. Ouvir o outro lado é, também, ato de justiça.

E olhando-se para o lado oposto da moeda o que surgem? Números, com uma exatidão que, não obstante tripudiada, descortinam a velha máxima acima mencionada, de que a polícia prende e a justiça solta. Na verdade, os magistrados soltam pouco, muitíssimo menos do que deveriam.

Pesquisa feita pelo IPEA e pelo Ministério da Justiça aponta que 37,7% dos presos provisórios no país poderiam aguardar o julgamento em liberdade: 4 em cada 10 acabam absolvidos ou são condenados a cumprir penas alternativas ao final do processo; a maior parte dos processos tramitados nas varas criminais se origina de inquéritos policiais instaurados a partir de flagrante (59,2%); em 6% dos casos, o acusado já estava preso por motivos alheios ao processo, do que resulta que no momento de instauração do inquérito policial, 65,2% já estavam em algum presídio.

Para os pesquisadores, os números asseguram que, ao contrário do que alardeado pela opinião popular, a prisão provisória é regra no país e que, via de regra, há a manutenção pela Justiça da prisão realizada na fase policial.

Como se diz no popular, os números não mentem. Pois bem, se, de acordo com a Constituição, a prisão não é regra, mas exceção, ao ser concedida por um juiz a liberdade ao acusado antes do advento de uma sentença penal condenatória, deve o Estado, por meio de seu aparato de segurança pública, agir de forma que aquele réu permaneça livre de uma eventual injustiça, considerando que, ao final do processo, a sua absolvição é uma das possibilidades, assim como proteger a própria sociedade de uma possível reiteração criminosa daquele.

Atribuir-se indiscriminadamente responsabilidade ao Poder Judiciário pelo caos da segurança pública é jogar para galera, afinal, transformar togado em alvo virou esporte nacional. Que venham as olimpíadas!

Assim, por não nos acharmos acima do bem e do mal; por entendermos que somos parte de um Sistema que deve, acima de tudo, proteger o cidadão inclusive do próprio Estado; por sermos os garantidores do cumprimento da Constituição Federal, não podemos aceitar, impassíveis, tão injustas acusações, afinal, quantas Patrícias Aciolis terão que ser sacrificadas para lembrar aos críticos que nós, juízes, somos também alvos da violência? Quantos magistrados precisarão andar sob escolta para não se tornarem presas fáceis do crime organizado?

Enfrentar as causas da violência que assola a sociedade perpassa pela própria reconstrução democrática de nossas instituições, não por sua destruição. Para isso, ao invés de defenestrar o Judiciário e seus magistrados, precisamos lutar pelo seu fortalecimento e aprimoramento.

Finalizo citando Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, cujas palavras deviam ser o mantra de cada um dos magistrados brasileiros: "Eu cumpro a lei. A lei é que materializa essas escolhas da sociedade. Em uma democracia, não existe, de um lado, a sociedade civil, e de outro, o Estado. O Estado é o que a sociedade e os seus agentes eleitos constroem. A única coisa que um juiz não pode fazer é tratar de maneira discriminatória o condenado que a sociedade odeia. Juízes não são vingadores mascarados. Fazer justiça é aplicar a lei com imparcialidade, sem paixões, sem ódios ou espírito de vingança. É justamente quando esses sentimentos afloram na sociedade que você precisa de um juiz corajoso para fazer o que é certo. Eu tenho deveres para com a Constituição, o bem e a Justiça. O sentimento da sociedade não me é indiferente, e eu o levo em conta. Mas sirvo à Justiça, e não à opinião pública. Um juiz digno desse nome não joga para a plateia".

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