Interesse do cidadão

Delação premiada deve ser opção dentro das coordenadas da defesa

Autor

16 de dezembro de 2014, 7h31

[Artigo originamente publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM]

Agora disciplinado sistematicamente pela Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, o instituto da delação premiada[1] tem sido demonizado.

Argumenta-se estar manchado o instituto de uma ética torta, a prestigiar a traição e o denuncismo sob a lógica de um egoísmo exacerbado (pois o outro lado da moeda é a condenação de coautores e partícipes), além de ser, ordinariamente, produto de uma ação caracteristicamente constrangedora dos agentes estatais.

Não enxergo o instituto exclusivamente sob essa ótica, como aliás já pude me manifestar no Boletim IBCCrim a propósito da edição da Lei 9.807/99, que dispôs sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.[2] Passados mais de 14 anos, e adiantando a conclusão desta breve reflexão, posso reafirmar ser o instituto orientado eticamente, constituir medida eficaz de política criminal e prestigiar as finalidades do direito punitivo num contexto do Estado democrático de direito e, finalmente, consagrar e garantir um excelente meio e um modo eficaz — muita vez o único — de exercício do direito de defesa, a ser com muita sensibilidade e extremo critério posicionado estrategicamente pelo advogado.

Em abreviadas palavras, a delação premiada é instituto jurídico a um só tempo ético quanto às finalidades penais e político-criminais, útil para o Estado na administração da justiça e estratégico nas coordenadas da defesa técnica.

A ética que define a delação premiada está comprometida com a afirmação dos valores essenciais de convivência (proteção de bens jurídicos fundamentais à vida em sociedade) sobre os desvalores próprios de um determinado grupo criminoso, cuja proeminência axiológica encontra-se na fidelidade que deve interceder entre os membros da organização delituosa ou entre os comparsas do crime.[3]

A delação promove a tutela de bens jurídicos pela descoberta precoce de infrações criminais, identificação da autoria ou participação de agentes, redução das consequências jurídicas do crime, resgate do bem jurídico objeto de proteção, a cumprir exitosamente a finalidade política de conservação das condições essenciais da vida em comunidade.

De outro lado, a delação antecipa o juízo ético-retributivo-preventivo próprio do direito punitivo. Ela implica a declaração antecipada — pelo Estado-Juiz — do cumprimento satisfatório da finalidade do magistério punitivo: prevenção especial de delitos pela reformulação do agente de sua hierarquia axiológica, com a penetração de sua personalidade pelos valores ético-jurídicos imperantes, cujo respeito e adesão são exigidos apenas no plano objetivo na vida em sociedade: demandar uma tal adesão e incondicional acatamento no plano subjetivo seria a recepção de uma intervenção autoritária do Estado no exercício do magistério punitivo.

A retomada — repita-se: na perspectiva objetiva — do respeito aos valores fundamentais de convivência, o reconhecimento da prática da infração criminal, a busca de uma proveitosa e útil persecução penal, a diminuição do dano causado pelo crime e o resgate do bem jurídico, por outro lado, constituem índice da desnecessidade da pena criminal — ou necessidade em grau diferenciado — sob a ótica da prevenção geral e da prevenção especial de crimes.

O fato, em tudo e por tudo reprovável de membros da polícia, do MP e da magistratura exercerem verdadeira coação com prisões e demais cautelas indevidas e, uma vez consumadas, aplicarem  "uma tortura psicológica" sobre o investigado, indiciado ou processado visando à delação não desmerece eticamente o instituto, senão as autoridades públicas que consumam um tal constrangimento, pelo qual devem responder criminalmente. Cabe ao defensor buscar energicamente a responsabilização dos agentes estatais.

A lei, isso não obstante, exige apenas a voluntariedade e não a espontaneidade na delação, notadamente a recente Lei 12.850/13 que disciplinou de modo bem completo a delação. A espontaneidade do comportamento pressupõe uma decisão autônoma, sem interferência decisiva externa; é o produto do conhecimento das circunstâncias da ação e das consequências dela no plano jurídico, natural e moral sem qualquer ação persuasiva ou coativa. Já a voluntariedade do comportamento implica uma decisão livre, em maior ou menor grau, a partir da adesão do sujeito a fins práticos e morais ainda que influenciado por fatores ou motivos externos. A coação externa pode retirar a espontaneidade de uma conduta, mas somente a coação absoluta anula a vontade, porquanto o sujeito não escolhe entre dois fins porque não há margem de liberdade, o que subtrai do ato sua qualidade moral.

Por essa razão, se fatores externos conduzirem o agente a decidir pela delação não há porque desconhecer a voluntariedade do ato. Considere-se que em geral e preponderantemente são externos os motivos e as razões da delatio[4]; impensável o ato puro de delatar decorrente de uma decisão absolutamente autônoma, sem que a própria investigação, acusação ou condenação penal não despertem o interesse, condicionem e encaminhem de qualquer modo à delação.

Há outros institutos na Parte Geral, interferentes alguns no capítulo das consequências jurídicas e outros na própria estrutura típica, que pressupõem uma opção livre do agente — investigado, indiciado ou acusado — para a obtenção do benefício ou solução legal. Assim, por exemplo, o arrependimento posterior com a devolução da coisa; o arrependimento eficaz e a desistência voluntária como destipificação do delito tentado, a confissão como circunstância atenuante obrigatória de natureza subjetiva, a retratação do agente ou a aceitação do perdão nos crimes contra a honra. Em todas elas, cogita-se da voluntariedade do investigado, imputado ou acusado, não podendo terceiro agir em seu nome; não se cuida de considerar a espontaneidade da ação.

Assim também na legislação especial, o pagamento ou parcelamento do tributo nos crimes tributários, a transação penal ou a composição civil, assim como a delação premiada — a que suficiente a simples voluntariedade do ato — podem constituir valiosa estratégia de defesa. O olhar sobre o caderno probatório pré processual e sobre o desenho da instrução processual, o juízo técnico-prospectivo sobre o curso das diligências policiais e assim a inevitabilidade da descoberta de todos os elementos da infração, ou a inevitabilidade da condenação, autorizam a defesa a encorajar o cliente a melhor solução para o litígio, a adoção de uma estratégia útil para o resultado favorável da potencial ou da já efetiva demanda penal.

Nesse sentido, o advogado que acoroçoa o cliente à delação premiada ou aceita que o faça presta serviço útil e valioso para a defesa e para a justiça. Nenhum outro vínculo, a nenhum outro compromisso deve obediência o advogado senão à defesa eficiente e excelente, a qual nem sempre significa negar a autoria ou participação no fato delituoso, desconsiderar ou desconstituir a prova dos fatos ou imputar a terceiros, na denominada chamada de corréu, a autoria deles.

Numa palavra, se a apreciação técnica e realista dos aspectos processuais desaconselham a defesa processual; ou o enfrentamento dos aspectos probatórios e dogmáticos da questão posta em Juízo, objeto da imputação, dissuadem desafiar o mérito, não há porque deixar de aderir a outros caminhos defensivos que minimizem a responsabilidade criminal, previstos no sistema jurídico, como acima lembrado. A delação premiada, tanto quanto as demais opções estratégicas dispostas na legislação, deve ser opção dentro das coordenadas da defesa e presidida, portanto, exclusivamente pelo interesse do cidadão, cuidando o advogado de formalizá-la na atmosfera da maior segurança jurídica possível para obtenção de seus efeitos positivos.

Não é demais lembrar a imposição  do Código de Ética da Advocacia de  ser esclarecida ao constituinte a natureza, extensão e possibilidade de êxito da defesa, sendo dever ético inadiável (artigo 8º) informar o cliente, de forma clara e inequívoca, dos eventuais riscos da sua pretensão e das consequências que poderão advir da demanda, bem assim — acrescento — dos riscos inerentes ao procedimento e ao resultado da delação.

Estende-se, portanto, linha muito tênue entre o direito de defesa, caracterizado por esgrimir argumentos, apontar nulidades, comportar-se procedimental e processualmente de determinados modos e utilizar determinados meios para obtenção de decisão favorável para o cliente, e a inteira licitude de sua atuação defensiva. Assim, repita-se, é plenamente justificada a opção da delação premiada — como de resto de outras soluções do sistema jurídico material e processual — quando todas as provas são contrárias à versão apresentada pelo agente, e foram coligidas de maneira lícita e, por isso, absolutamente válidas. É inteiramente desaconselhável tecnicamente sustentar a defesa de mérito ou processual, enfrentar com argumentos vazios ou pífios uma imputação de solar clareza e sem solução para defesa do cliente. Este não é, evidentemente, obrigado a arrepender-se, confessar, retratar-se, transigir, compor ou delatar. Nem o advogado deve constranger senão aconselhar ou desaconselhar a fazê-lo, a depender do cenário processual, da imputação e das provas coligidas antes ou durante a instrução do processo e, sublinhe-se, se outra solução efetivamente defensiva não houver.

Cumpre, destarte, ao advogado escolher os melhores meios e os mais formidáveis modos de exercer a defesa do cliente, cuidando de aplicar todo seu tirocínio, talento, inteligência e conhecimento jurídico — tanto mais na hipótese de delação — para que o termo de acordo de colaboração seja o mais claro, estrito e restrito possível, e homologado de modo a vincular os signatários e a autoridade judicial que o homologa, assegurando a obtenção dos benefícios previstos legalmente, em sua melhor e mais estendida expressão.

É dever imperioso do advogado — e aqui a maior relevância da atuação da advocacia — impedir a utilização da medida ao modo de um "estelionato" estatal, iludido o cidadão com benefícios para obtenção de informações e provas, benefícios que, ao final, não serão concedidos.


[1]   [1]Vide art. 159, parágrafo 4o., do CP; Lei 9.034/95 (Organizações Criminosas); Lei 7.492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional); Lei 8.137/90 (Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo, 9.613/98); Lei 9.807/99 (Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal); Lei 12.529/11 (Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica); Lei 11.343/06 (Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências).

[2]           Ver Boletim IBCCrim, São Paulo, ano VII,, n. 83, pp.5-7, n. 153, outubro 1999, sob título Colaboração premiada num direito ético.

[3]   [3]Uma espécie de Omertà, a lei do silêncio da máfia, um voto que não pode ser quebrado pelos membros  do grupo mafioso.

[4]    Note-se que a própria legislação prevê a delação quando já há decisão condenatória pendente de recurso, portanto após a sentença de primeiro grau (art. 4o., parágrafo 5o., da Lei 12.250/13.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!