Combate incondicional

"Advogado que estimula cliente à delação presta serviço útil para a Justiça"

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14 de dezembro de 2014, 6h52

Spacca
A virada para o século XXI trouxe, no campo penal, um nítido rebaixamento do direito de defesa em nome do combate ao crescimento do crime organizado. Assim como nos Estados Unidos, os direitos civis foram relativizados depois do atentado contra as torres gêmeas, no Brasil o que se vê é uma releitura do que sejam as garantias individuais e os direitos fundamentais de cada um. 

Independentemente das críticas de criminalistas — que enxergam nesse tipo de voluntarismo um terreno propício para condenações sem provas — o fato é que os juízes que dão curso ao combate incondicional ao crime organizado ganham cada vez mais espaço. E o movimento prospera, como se viu no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, no Supremo Tribunal Federal, ou nas manchetes recentes sobre a operação “lava jato”.

O trabalho do juiz Sergio Moro, maestro da “lava jato”, tem um precedente no noticiário recente e no campo ideológico: os processos julgados pelo juiz federal paulista Fausto De Sanctis, atualmente desembargador.

Em defesa do colega, hoje sob holofotes, De Sanctis afirma que não se contém a corrupção com luvas de pelicas. “Juiz que não é firme jamais pode atuar, quanto mais em se tratando de crimes econômico-financeiros, como lavagem de dinheiro, corrupção e fraudes em licitação”, diz o desembargador, lembrado pela atuação nas operações satiagraha e castelo de areia, em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico

Especialista na área de crimes financeiros e famoso por sua atuação em operações de combate à lavagem de dinheiro, De Sanctis vive hoje com a agenda cheia — foi preciso insistir para que concordasse expor seu pensamento na entrevista abaixo. Suas ideias têm sustentação internacional. Em 2012, ele deu 14 palestras só nos Estados Unidos. Ano passado, dezenas. Neste ano, falou duas vezes na França, duas vezes em Harvard, outras duas na American University e na American Bar Association. 

Há outras: Georgetown University; George Washington University; Massachusets Division of Banks; Yale University World Bank; IADB (Banco Interamericano); Federal Judicial Center; International Law Institute; Washington Foreign Law Society; OCDE/Paris e no Gafi/Mônaco (Grupo de Ação Financeira, órgão encarregado de implementar as políticas de combate ao crime financeiro determinadas pelo G8).

Para dar conta da demanda sem faltar com suas obrigações, De Sanctis em geral vai a eventos quando o TRF não funciona ou então usa seus dias de férias. O trabalho vai bem. Do estoque de 14 mil processos que encontrou ao assumir na turma previdenciária em que está, já baixou para 7,3 mil, enquanto resolve os novos casos. 

Seus livros e artigos são citados em publicações como The New York Times e Financial Times, entre outros. Gentil e emotivo, o desembargador tem dois filhos: Thomaz e Theodoro. Gosta de ir a shows, como o de Elton John, que foi ver recentemente. Aprecia arquitetura e diz acreditar fervorosamente no futuro do país.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o senhor vê as críticas à lentidão do Judiciário?
Fausto De Sanctis —
Participei recentemente de encontro na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, onde palestrei sobre o assunto. Uma das questões levantadas era a falta de credibilidade da Justiça em razão de sua morosidade e difícil cumprimento das decisões judiciais. O Brasil apresenta dados negativos assustadores em razão da complexidade desnecessária do sistema, do exaustivo e injustificado número de recursos, pelo número de instâncias, pela prescrição consagrada apenas aqui. Além disso, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, ao considerar inadequada a fixação da pena, tem devolvido os processos para os tribunais inferiores para nova fixação, em vez de fazê-lo, permitindo, com isso, mais recurso e mais reconhecimento de prescrição. A prescrição intercorrente, ou mesmo as tradicionais existentes (punitiva e executória), são excessivas, porque os casos criminais têm resultado na sua extinção e no não cumprimento das sentenças criminais condenatórias — já esparsas nos casos de crime econômico. Logo, há impunidade e desconfiança porquanto a instituição descumpre função essencial.

ConJur — O que o senhor pensa sobre o chamado “ativismo judicial”?
Fausto De Sanctis —
A igualdade deve ser considerada um plus ao Estado-social, aquele que deseja e consagra o bem-estar de todos. Quando os demais poderes silenciam em questões que deviam atuar, o juiz é chamado a fazê-lo, não porque deseja se substituir aos demais poderes, mas em razão de garantir o mínimo existencial, a igualdade. Cabe ao juiz, limitar-se a esse mínimo para não se convolar em poder absoluto.

ConJur — Como o senhor vê a jurisprudência restritiva em relação ao manejo do Habeas Corpus? Isso ajuda no combate à impunidade?
Fausto De Sanctis —
O Habeas Corpus é um remédio constitucional da mais alta valia. É consagrado em vários países como um direito a uma agressão institucional indevida. No exterior, é usado em hipóteses concretas de abuso do direito de réus presos. No Brasil, porém, ganhou uma extensão tal que, hoje, esse remédio pode ser utilizado contra toda e qualquer decisão judicial, estando o réu solto ou não, convolando esse instituto em verdadeira fraude ao devido processo legal. Isso ocorre porque muitas vezes o Habeas Corpus na verdade visa retirar do juiz natural o caso, quando não evitar que seja prolatada uma sentença. É o que denomino de “doutrina brasileira do Habeas Corpus”, assim como “doutrina brasileira do princípio da não culpabilidade, da algema, dos recursos sem sentido, da pena branda ao crime econômico, da tentativa de evitar a publicidade da decisão judicial, da prerrogativa do foro, do não sigilo de inquéritos em que a investigação ainda esteja em curso etc.”

ConJur — O STF deveria parar de julgar HCs para ser apenas uma corte voltada a questões constitucionais propriamente ditas?
Fausto De Sanctis —
Não necessariamente. Deveria realmente se tornar Corte Constitucional e decidir apenas questões de real relevância nacional no que tange a constitucionalidade das leis, decisões e julgados que ofenderiam normas de caráter nacional e universal, além de tratados e convenções internacionais.

ConJur — O que o senhor acha da delação premiada?
Fausto De Sanctis —
A delação premiada, existente no Brasil desde as Ordenações Filipinas, é ética, útil e estratégica. Ética porque atende às finalidades político-criminais e à proteção do bem jurídico. Quando se ataca esse instituto alegando não ético, na verdade está se invocando a “ética” do criminoso, que não aceita ser apontado por um comparsa. Útil pelo fato de permitir a descoberta precoce de crimes e seus autores ou partícipes, facilitando o trabalho de todos. Por fim, estratégica para as partes, inclusive à defesa, já que o cliente se vê beneficiado com uma pena relativizada sem o custo do processo. O advogado que estimula o cliente à delação presta serviço útil e valioso para a Justiça porquanto a ele está vedado expor fatos falseando deliberadamente a verdade ou estribando-se na má-fé, conforme estabelece o Código de Ética da OAB. Esse é o sentido real de se compreender a função advocatícia como essencial à Justiça.

ConJur — Como o senhor encara as reações contra a atuação firme do seu colega Sergio Moro?
Fausto De Sanctis —
Desconheço as atuações contra a atuação firme do juiz federal Sérgio Moro. O juiz que não é firme jamais pode atuar, quanto mais em se tratando de crimes econômico-financeiros, como lavagem de dinheiro, corrupção e fraudes em licitação. Firmeza atende às expectativas socioculturais no sentido de esperar que o juiz seja convicto, imparcial e que apresente cabal demonstração das razões de seus argumentos. O Judiciário se legitima apenas quando há solidez, clareza e credibilidade de suas decisões, permitindo a sua compreensão e propiciando a reflexão crítica.

ConJur — O que o senhor acha das novas leis anticorrupção e de lavagem de dinheiro?
Fausto De Sanctis —
As novas leis trouxeram um ganho instrumental enorme ao Brasil, que se nivela com a legislação mais avançada existente sobre o tema. A Lei de Lavagem de Dinheiro, encerrando com a lista de delitos antecedentes para sua existência, alargando o rol de obrigados, para que nenhum setor fique de fora, permitindo a alienação antecipada etc., veio contribuir para prevenção e combate de crimes graves. É a luz apagada que se acende e faz com que todo o conjunto de luzes permaneça funcionando. A Lei Anticorrupção, tal qual a da lavagem de dinheiro, atende a compromissos internacionais, mormente Convenção da OCDE, e se traduz num instrumento vital para evitar que alguém responda por atos da empresa. Esta pode agora ser responsabilizada civilmente e solidariamente, e não somente o particular. Adam Smith já dizia que as corporações são marcadas pela negligência e esbanjamento. Ora, é necessário combater a corrupção a partir do corruptor e não apenas do setor público, já que não resolveria o problema.

ConJur — O senhor concorda que o acordo de leniência, como proposto, não atrai as empresas, uma vez que o acordo possibilita posteriores investidas do Ministério Público, Tribunal de Contas da União, Conselho Administrativo de Defesa Econômica e Fisco?
Fausto De Sanctis —
A lei brasileira, como a lei inglesa, ao contrário da americana, apenas permite o acordo em relação à primeira empresa que tomar essa iniciativa. Não saberia dizer como está sendo proposto, mas a norma brasileira determina apenas o afastamento da publicidade da decisão condenatória, redução de multa e vedação de subsídios e empréstimos públicos em caso de leniência. O acordo não evita, porém, a perda de bens, suspensão ou encerramento das atividades ou mesmo das empresas.

ConJur — Delegado de polícia deve poder requisitar dados de clientes de companhias telefônicas sem ordem judicial?
Fausto De Sanctis —
Segundo a lei brasileira de lavagem, pode. Tratam-se de dados apenas e não de quebra do sigilo telefônico que depende de ordem judicial.

ConJur — O que acha do fim da especialização de varas em crimes financeiros?
Fausto De Sanctis —
Seria um verdadeiro retrocesso, já que essa foi a grande e única recente mudança positiva que permitiu e tem permitido revelar o país e suas instituições. A verdade está vindo à tona graças a essas varas, que contam com pessoas qualificadas e focadas na depuração de fatos que são, por natureza, complexos e tortuosos.

ConJur — O juiz Baltazar Garzón pode ser considerado pioneiro no movimento mais ousado de interpretação da norma penal?
Fausto De Sanctis —
O juiz Baltazar Garzón foi corajoso e pioneiro na questão da interpretação do Direito Penal quanto à violação de direitos humanos, adotando a teoria da competência universal para firmar a competência penal de fatos graves ocorridos no exterior. Existem muitos juristas importantes que têm dado interpretações compatíveis com a realidade atual, no sentido de proteção dos direitos humanos. Tanto quanto as liberdades, a segurança deve ser conquistada e isso se faz com instituições úteis e fortes.

ConJur — Leis internacionais recentes, como a Foreign Account Tax Compliance Act, formulada para combater a evasão fiscal dos Estados Unidos, relativizam o sigilo de dados. Alguns setores da academia no Brasil, seguindo o exemplo, começam a flertar com o fim do sigilo para pessoas jurídicas. A privacidade deve morrer em prol da segurança?
Fausto De Sanctis —
Não existe relativização do sigilo bancário. Está havendo um equívoco. A lei brasileira (Lei Complementar 105/2001) permite que o indivíduo abra mão desse direito. A intimidade é inviolável, mas a privacidade é um bem disponível e se o indivíduo desejar ocultar das autoridades americanas valores recebidos, teriam que fazer por outros caminhos e não mais depositando-os em instituições financeiras no exterior. O direito à privacidade é protegido, mas, hoje, aceita-se, por exemplo, sermos filmados em elevadores, ruas, bancos etc. sem que haja o expresso consentimento, mas, que, em verdade, este é implícito e aceito em prol da segurança pública.

ConJur — O compliance se tornou obrigatório para as empresas. Isso indica que a máxima está se invertendo e agora é o cidadão, em geral, quem precisa provar que é inocente?
Fausto De Sanctis —
O compliance constitui a avaliação e orientação permanente das atividades das empresas para verificar se elas cumprem as normas sociais e, o que é novo, as normas legais. Trata-se de contribuição do particular para a apuração de fatos graves que podem evitar o próprio fim da empresa, em caso de punição futura. Por isso é que ele ganhou um protagonismo único e essencial. Não há Estado honesto sem sociedade honesta.

ConJur — Qual é o poder do juiz sobre o processo? Ele escolhe o que e quando julgar? Pode negar informações a outros magistrados, mesmo de instâncias superiores?
Fausto De Sanctis —
Claro que o juiz não escolhe o processo, já que a distribuição é feita eletronicamente. O juiz não nega informações a outros magistrados também competentes para a apreciação dos fatos. Ele apenas preserva o sigilo para evitar que se fulminem investigações em curso e usa da cautela para dar conhecimento a quem de direito sobre a integralidade dos fatos. Importante é que o Judiciário constitua um todo — não sendo dividido entre primeira, segunda, terceira ou quarta instâncias. A sua eficácia depende da colaboração, experiência e compreensão de seus atores.

ConJur — Qual é o dever do juiz de informar às partes sobre o processo? Em que ponto deve ser franqueado o acesso a dados investigados?
Fausto De Sanctis —
O juiz sempre informa às partes sobre o processo. Entretanto, por exigências legais e fáticas, o contraditório é diferido como, por exemplo, numa interceptação telefônica ou telemática, numa delação premiada etc., evitando a ineficácia do que está ainda sendo apurado.

ConJur — Qual é o limite do direito à defesa dentro de um processo de investigação criminal? O que o advogado deve ou não deve fazer?
Fausto De Sanctis —
Ao advogado cumpre contribuir com a verdade. Apenas lhe cabe referendar o que o acusado alegar, caso ele não silencie. Acompanhei várias audiências nos Estados Unidos e na França e sempre ou quase sempre a defesa admitia os fatos, invocando dever de ética, mas pleiteando uma resposta condizente com a pessoa daquele que era defendido.

ConJur — Quais são os limites do MP e da Polícia? O que podem ou não fazer?
Fausto De Sanctis —
O Ministério Público tem função diversa da Polícia e um não se submete a outro. Se existe algo criticável nos Estados Unidos é o fato de a atividade policial estar vinculada à do Ministério Público, num país em que, mudando a orientação ideológica (partido dominante), todas as chefias do Ministério Público são alteradas e, aí, muitas investigações podem ser suspensas. Aqui, a Constituição consagrou a atividade policial independente da do Ministério Público, que também atua independentemente. Isso é muito salutar.

ConJur — Um juiz pode "consertar" ou ignorar erros da denúncia se estiver convencido da culpa do réu?
Fausto De Sanctir —
O juiz é um técnico e deve preservar trabalhos de qualidade técnica. Melhor é que o faça desde o início. Eu sempre verifiquei as denúncias antes de recebê-las ou rejeitá-las para constatar se atendiam aos requisitos do Código de Processo Penal.

ConJur — Juiz pode investigar? Pode se basear em fatos e conclusões de fora dos autos? Pode, por exemplo, conferir informações na Internet?
Fausto De Sanctis —
Não. Juiz não investiga e não se vale de elementos de fora do processo. Entretanto, cabe-lhe indagar as partes, as testemunhas e o próprio acusado sobre o que considera relevante porque somente ele é quem possui o ônus do veredicto e este há de constituir uma resposta exata ao fato levado à justiça. Não pode o juiz fazer de uma injustiça uma justiça. Quanto mais elementos no processo, as partes se beneficiarão já que terão melhores condições de defender qualitativamente os seus direitos.

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