Direito ao silêncio

Advogados e promotores discutem delação premiada na "lava jato"

Autor

14 de dezembro de 2014, 13h28

O direito ao silêncio e a não se incriminar, garantidos pela Constituição Federal, voltaram a ser discutidos com a chamada operação “lava jato”. O uso da delação premiada tornou-se um desafio para os advogados e membros do Ministério Público passaram a defender, inclusive, a prisão preventiva como forma de pressionar os réus a confessar.

A sessão de artigos da Folha de S.Paulo tornou-se palco para essa discussão. Em texto publicado neste sábado, os advogados Lenio Streck e André Karam Trindade, ambos colunistas da ConJur, dizem que é preciso impedir que a delação seja utilizada como forma de pressão e/ou violência psíquica. “Do contrário, é moralismo. E autoritarismo.”

O artigo dos advogados é uma resposta a um texto publicado no dia 3, no mesmo espaço, assinado por dois procuradores, membros da força-tarefa criada para a “lava jato”.  Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos reclamam que advogados “veem na colaboração um recurso antiético, um incentivo do Estado à alcaguetagem”. A crítica, dizem, “dá valor ético à ‘omertà’, o juramento de silêncio entre criminosos”.

Leia, abaixo, os dois artigos:

Lenio Streck e André Karam: Vícios privados, benefícios públicos

No artigo "A ética do crime do colarinho branco" (Folha de S. Paulo, 3/12) , membros do MPF (Ministério Público Federal) da operação Lava Jato (Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos) disseram que "alguns advogados do caso, trasvestidos de juristas" e "alguns ‘doutrinadores’ vêm na colaboração um recurso antiético, um incentivo do Estado à alcaguetagem". Para eles o silêncio dos acusados seria "imoral".

Claro: o silêncio não é mais um direito constitucional. Virou imoral por decreto de dois procuradores da República, que reescrevem a Constituição. Lendo o seu artigo, tem-se que o MP –ao qual um dos subscritores desta réplica pertenceu por quase 30 anos– longe está de alcançar o grau de distanciamento e imparcialidade que a função exige.

Aqui, ao que se vê, há um sentimento "tipo procurador Pastana", que, assinando parecer em nome da Instituição guardiã da cidadania, disse que a delação premiada deve ser usada para pressionar os investigados "a abrirem o bico", pois "passarinho para cantar precisa estar preso". Bingo.

Pois é essa manifestação que os dois procuradores defenderam e, a partir de falácia ad hominem, atacam os "doutrinadores" (para eles, entre aspas). Claro que jamais pensaríamos em colocar "procuradores" entre aspas.

Não somos advogados da causa. E nem temos procuração dos colegas Alberto Toron, Aury Lopes Jr., Geraldo Prado, Guilherme Batochio, Marcus Vinícius Coelho e Miguel Reale Jr. Mas temos procuração da Constituição, para a qual todo réu é inocente até prova em contrário. Aquela que proíbe prova ilícita e que veda pressão sobre acusados. Sim, o texto constitucional, que dá direito sagrado ao silêncio e que, portanto, não pode fazer com que os investigados sejam presos para "abrir o bico".

Se a delação é usada para tanto, é flagrantemente inconstitucional, por violação ao direito ao silêncio e pela vedação de responsabilidade objetiva. Por isso deve ser feita uma "Verfassungskonforme Auslegung" (do alemão interpretação constitucional) para impedir que a delação seja utilizada como forma de pressão e/ou violência psíquica. Do contrário, é moralismo. E autoritarismo.

Inútil dizer que culpados devem ser punidos. Mas não a qualquer custo. Não podemos sacrificar os direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição sob o álibi (moralista) de que se pode usar a delação como forma de pressão.

Por fim, valemo-nos de uma fábula liberal, a das abelhas, de Mandeville. Elas viviam prosperamente em sua colmeia, até que um grupo de abelhas "neovirtuosas" decidiu dar um fim aos vícios (corrupção era o menor deles!). Foram à rainha e pediram que fosse decretada a virtude. E assim se fez. Todos virtuosos. Bom? Não. Ruim.

Sem vícios, a sociedade começou a ruir. Advogados ficaram sem trabalho, procuradores não tinham quem denunciar, médicos sem pacientes, policiais ociosos. Fracasso total. As abelhas se reuniram e pediram à rainha o restabelecimento dos vícios. Moral da história? É impossível uma sociedade formada apenas por virtuosos.

Por isso, a necessidade de garantias constitucionais para os que sucumbem aos vícios. Eles fazem parte da sociedade. Hobbes já sabia disso. Aliás, nós, juristas, vivemos dos vícios. O MP também. Vícios privados, benefícios públicos, diria Mandeville. Eis a moral da história. Esperamos que a ironia seja bem entendida. E, como tal, não deve ser lida ao pé da letra.

LENIO STRECK, 59, e ANDRÉ KARAM TRINDADE, 33, são professores de direito constitucional e sócios do escritório Streck, Trindade & Rosenfield


Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos: A ética do crime do colarinho branco

Guantánamo, alcaguetagem, tortura. O uso do exagero para manchar a conduta da Polícia Federal, do Ministério Público e da Justiça na Operação Lava Jato tem sido a estratégia de defesa eleita por alguns advogados do caso, por vezes travestidos de juristas, em entrevistas e artigos em jornais. Essa abordagem, contudo, não resiste aos fatos.

Primeiramente, o uso pelo Ministério Público Federal do instituto da colaboração premiada (para alguns, "delação premiada") e, agora, da leniência, é amparado nas recentes leis do Crime Organizado, Anticorrupção e da Defesa da Concorrência, bem como na experiência bem-sucedida de mais de dez anos de seu uso por membros da força-tarefa Lava Jato.

É a técnica investigativa de melhor resultado na revelação de crimes do colarinho branco, engendrados em restaurantes sofisticados, em festas milionárias, e ocultos sob camadas de manobras contábeis aparentemente legais.

Aliás, o procedimento hoje adotado pela Lei do Crime Organizado teve por base os diversos acordos firmados pela força-tarefa Banestado, naquela época –entre 2003 e 2007– fundados em leis esparsas e na experiência americana e italiana.

Sem querer recorrer à hipérbole, comparando o grupo mafioso italiano Cosa Nostra com investigados da Operação Lava Jato, sempre é bom lembrar que foi justamente o acordo de colaboração com o mafioso Tommaso Buscetta que possibilitou o "maxiprocesso" de Palermo, em que os procuradores antimáfia Giovanni Falcone e Paolo Borsellino alcançaram a condenação de mais de 350 mafiosos.

Em segundo lugar, alguns "doutrinadores" veem na colaboração um recurso antiético, um incentivo do Estado à alcaguetagem –dizem. Esse sofisma dá valor ético à "omertà", o juramento de silêncio entre criminosos. Esse silêncio é imoral e deve ser combatido. O valor ético aqui é o de desvelar o crime e punir seus autores.

Enquanto o alcagueta trabalha em becos escuros, o colaborador presta suas contas à Justiça; enquanto o alcagueta é ilicitamente pago pelas suas informações, o colaborador tem apenas o alívio parcial das penas impostas; enquanto o alcagueta nunca tem sua identidade revelada, o colaborador terá seu acordo revelado e irá depor em juízo sobre os fatos. A legitimação, enfim, da colaboração premiada está na sua obediência ao devido processo legal e ao contraditório.

Assim se explica a opção legal pelo acordo escrito, clausulado segundo negociação da acusação com o investigado, assistido por defensor, homologado pelo Judiciário após um juízo de legalidade, com depoimentos sigilosos até a denúncia respectiva, e cujo valor probante é insuficiente para qualquer condenação.

Aqui, verifica-se outra faceta desse instituto. Apesar de enfatizada como uma técnica especial de investigação, a colaboração premiada é antes de tudo uma opção de defesa. Cabe ao investigado, com seu advogado, analisar a conveniência de se socorrer desse instituto para minimizar o risco de vir a ser condenado a uma pena indesejada.

Em suma, qualquer acordo, seja de colaboração, seja de leniência, deve ser visto sob a ótica do interesse público, ou seja, baseado na confissão integral dos fatos criminosos, na entrega de provas, pessoais e materiais, desses crimes e de outros ainda desconhecidos, e o pagamento de multas pesadas.

O que se busca é a punição dos culpados e o ressarcimento dos danos na maior extensão possível. Outra espécie de acordo, tal qual sugerido por alguns advogados, coletivo, baseado tão somente no pagamento de multa e no esquecimento do passado, é juridicamente impossível e moralmente inaceitável.

CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA, 49, procurador regional da República, e DIOGO CASTOR DE MATTOS, 28, procurador da República, são membros da força-tarefa da Operação Lava Jato

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!