CADE e o judiciário

Controle de atos administrativos garante Estado Democrático de Direito

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13 de dezembro de 2014, 15h43

 

 Muito se tem visto sobre as decisões que são tomadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Várias destas decisões tem sido questionadas pela mídia e por especialistas em geral, sobretudo ante a égide da nova Lei Antitruste que criou o chamado “Supercade”. Por isto, salta aos olhos cada vez mais a importância da análise da possibilidade de revisão judicial das decisões do Cade.

 A primeira vista, tal problema pode parecer de fácil resolução. Mas ele passa a se tornar mais difícil na medida em que se discute o limite da intervenção do Poder Judiciário no Executivo. Nesse sentido, como a seguir se demonstrará, há toda uma linha calcada no Direito Administrativo, que impediria a revisão completa do Poder Judiciário dos atos praticados pelo Cade.

 Mas, antes de adentrarmos o assunto propriamente dito, é preciso esclarecer o que é o ato administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua o ato administrativo como “[…] a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com a observância da lei, sob o regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.” (DI PIETRO, 2012, p. 203).

 Ou seja, se aprofundando no referido conceito, o ato administrativo é a declaração do Estado ou de quem o represente, pois é derivado de ação tanto do Poder Executivo como dos demais poderes, que também podem editar atos administrativos, sendo uma exteriorização do pensamento (DI PIETRO, 2012, p. 202).

 Produz ainda efeitos jurídicos imediatos, ou seja, afasta-se da lei que é abstrata, e também se distancia do regulamento que possui conteúdo mais normativo, também se diferenciando de atos não produtores de efeitos jurídicos diretos (DI PIETRO, 2012, p. 202).

 O ato administrativo ainda se sujeita a lei por disposição clara do artigo 37 da Constituição Federal, que dispõe sobre o princípio da legalidade. Desta feita, sem possuir embasamento legal, o ato é absolutamente inválido e não merece produzir efeitos.

É preciso destacar ainda que o ato administrativo sujeita-se ao regime jurídico administrativo, ou seja, não possui qualquer relação com os atos de direito privado praticados pelo Estado, estando submetido a prerrogativas e restrições próprias do poder público (DI PIETRO, 2012, p. 202).

 Por derradeiro, o ato administrativo seria ainda passível de controle judicial, o que não será tratado a fundo nesta oportunidade, pois será melhor trabalhado em tópico adiante.

Os atos administrativos podem ser ainda vinculados ou discricionários. O ato vinculado é aquele em que diante do comando legal o administrador é obrigado a conceder ao administrado o requerido (MARINELA, 2012, p. 262). Em outras palavras, é o ato praticado não apenas nos limites da lei, mas conforme os seus comandos, pois não haverá opção ao administrador (MARINELA, 2012, p. 262).

 O ato discricionário, por outro lado, prega justamente o oposto. Nele, a lei possibilita ao administrador mais de um comportamento possível de ser adotado diante de um caso concreto (MARINELA, 2012, p. 262). Em outras palavras, nesta situação haverá liberdade para que o administrador possa atuar em um juízo de conveniência e oportunidade (MARINELA, 2012, p. 262).

Portanto, analisadas as premissas do ato administrativo, passa-se a verificar a sua possibilidade de revisão judicial.

  1. POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL DO ATO ADMINISTRATIVO

  Como dito acima, um dos grandes problemas da possibilidade de controle judicial do ato administrativo é definir seus limites.

 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a esse respeito, expõe que não existe restrição quanto ao controle judicial dos atos vinculados, uma vez que, sendo todos os seus elementos já estabelecidos na lei, caberá ao Judiciário examinar a conformidade do ato com o ordenamento jurídico para decidir efetivamente se haverá nulidade ou não (DI PIETRO, 2012, p. 224).

 A mesma conclusão não é tão fácil para os atos discricionários. A princípio, o ato discricionário é passível de sofrer o controle judicial, desde que seja respeitada a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei (DI PIETRO, 2012, p. 224).

 A lógica de tal premissa seria a de que, sendo a discricionariedade um poder delimitado pelo legislador, não poderia o Poder Judiciário invadir do espaço que foi reservado ao administrador, uma vez que isto levaria a violação a opção legítima realizada pela autoridade competente (DI PIETRO, 2012, p. 224).

 

Nesse sentido, dentre as teorias utilizadas para permitir a revisão de ato administrativo pelo Poder Judiciário, pode-se mencionar a do desvio de poder, na qual a autoridade se utiliza da discricionariedade para atingir escopo diverso do pregado pela lei (DI PIETRO, 2012, p. 225). Nesta situação, o ato poderá ser declarado nulo por ter sido praticado contra o interesse público estabelecido pela lei (DI PIETRO, 2012, p. 225).

 Outra teoria utilizada é a teoria dos motivos determinantes, na qual o ato administrativo discricionário só será válido se os motivos que o embasaram forem verdadeiros (DI PIETRO, 2012, p. 225). Assim, o Judiciário, para avaliar os motivos do ato, poderá verificar os pressupostos de fato e as provas de sua ocorrência (DI PIETRO, 2012, p. 225). 

Contudo, o que atualmente é importante é a tendência marcada pelo Poder Judiciário em aumentar a limitação sobre a discricionariedade em razão das noções imprecisas (DI PIETRO, 2012, p. 225). Estas noções são utilizadas pelo legislador com frequência para definir o motivo e a finalidade do ato, a exemplo da moralidade (DI PIETRO, 2012, p. 225). Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, nestes casos não poderia haver exame dos critérios de valor utilizados pela autoridade administrativa sob pena de se penetrar no exame da discricionariedade (DI PIETRO, 2012, p. 225).

 

Todavia, não se poderia confundir esta situação com as hipóteses extremas em que qualquer pessoa normal, diante das mesmas circunstâncias, chegaria ao mesmo resultado (DI PIETRO, 2012, p. 226). Ou seja, há situações que o Poder Judiciário, mesmo diante de um ato discricionário, poderá invalidá-lo, se observar que o ato não foi praticado de acordo com valores morais do administrador, mas em dissonância com os valores da própria sociedade e com os limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico (DI PIETRO, 2012, p. 226).

 

Contudo, o que se verá adiante é que, dentre os mais variados casos, fica difícil definir o que efetivamente é o juízo de moralidade do administrador e o que são os valores e requisitos jurídicos que podem ser utilizados pelo Poder Judiciário para a prática do ato administrativo.

 

Ou seja, verifica-se uma tendência cada vez maior em se permitir o controle do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário. Abrem-se “brechas”, criam-se novas teorias para que o administrador respeite, ainda que discricionariamente, os ditames da constituição e da lei.

 

E isto não se afigura abusivo – antes é até necessário – até porque, se não houvesse reiteradas situações de desrespeito pelo administrador dos princípios básicos da administração pública (legalidade, impessoalidade, publicidade, eficiência e moralidade), certamente não existiriam tantos casos nos Judiciário questionando a validade de atos administrativos discricionários.

 

O controle é preciso, portanto, para garantia do Estado Democrático de Direito.

 

Superadas estas premissas, segue-se para a análise dos atos administrativos exarados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

 

 

2. NATUREZA DAS DECISÕES PROFERIDAS PELO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA (CADE)

 

 

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica é autarquia considerada pela Lei nº. 12.529/11 como entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional, vinculada ao Ministério da Justiça e foro no Distrito Federal (art. 4º).

 

Para Carlos Ari Sundfeld, a leitura mais lógica da expressão "órgão judicante" é a que vincula o CADE a um certo método de trabalho, ou seja, que lembra a condição de independência, imparcialidade e impessoalidade, construída segundo um modelo de Direito (SUNDFELD, 2003, p. 02).

 

Ocorre que, por outro lado, se o CADE se aproxima do Judiciário quanto ao método que utiliza, dele se afasta quanto à abrangência, objetivo, conteúdo e efeitos da atuação (SUNDFELD, 2003, p. 02). É que, enquanto a ação do Judiciário tem âmbito universal, com a finalidade de normalização das relações interpessoais ameaçadas por crises jurídicas, o CADE é apenas órgão de intervenção administrativa na vida privada, ao qual cabe a aplicação de sanções administrativas por condutas anticoncorrenciais, realizando a limitação administrativa de direitos com vetos a atos de concentração (SUNDFELD, 2003, p. 02).

 

E nem poderia ser diferente pois, afinal de contas, o CADE é um instrumento de Governo, e não de Estado (NAZAR, 2014, p. 114). Isto é, o CADE é um instrumento do Poder Executivo para fins de fiscalização e implementação de políticas econômicas, ou seja, políticas governamentais (NAZAR, 2014, p. 115).

 

Os atos administrativos praticados pelo CADE são vários e variam de acordo com o papel desempenhado.

 

O papel preventivo corresponderia a análise dos atos de concentração.[1] Em outras palavras, é referente à análise das operações de fusões, incorporações e associações de qualquer espécie entre agentes econômicos.[2]

 

Sobre este ponto, Carlos Ari Sundfeld entende a atuação do CADE como uma técnica de limitação administrativa de direitos, isto é, a autarquia atua para intervir na vida privada (SUNDFELD, 2003, p. 02).

 

Dessa maneira, o CADE analisa os efeitos desses negócios – agora antes de sua realização – verificando o risco em cada caso da possibilidade de criação de prejuízos ou restrições à livre concorrência. [3]

 

De outro turno, o papel repressivo corresponde à análise das condutas anticoncorrenciais.[4] Nesses casos, o CADE possui por finalidade a de reprimir práticas infrativas à ordem econômica, a exemplo de cartéis, vendas casadas, preços predatórios, acordos de exclusividade, dentre outras.[5]

 

Por derradeiro, haveria ainda o papel pedagógico do CADE, o qual consiste em difundir a cultura da concorrência.[6]

 

Note-se que não há diferenças nos objetivos estabelecidos entre os atos praticados pelo CADE, uma vez que todos visam reprimir e prevenir infrações à ordem econômica. Nesse sentido, Carlos Ari Sundfeld afirma que o CADE e “[…] os poderes que tem, para aprovar ou não atos de concentração e estipular condições para tanto, estão ligados apenas a essa finalidade […]” (SUNDFELD, 2012, p. 4).

 

Ou seja, o uso das competências do CADE para outro fim, como para modelar o mercado segundo seus próprios conceitos, importaria em desvio de poder, ou seja, em vício do ato por atingir finalidade não atribuída pela regra de competência (SUNDFELD, 2012, p. 4).

 

Vale a pena destacar ainda que o poder de aprovar ou não atos de concentração poderá ser vinculado ou discricionário. Será vinculado quando sua expedição envolver apreciação puramente objetiva, e será discricionário quando comportar algum grau de subjetividade do agente (SUNDFELD, 2012, p. 5).

 

Assim, a autorização é vinculada quando o processo demonstrar que a operação de concentração não constitui infração atual ou potencial contra a ordem econômica, de modo que o interessado terá direito subjetivo a ela, ou seja, será CADE obrigado a expedi-la (SUNDFELD, 2012, p. 5). Por outro lado, a autorização será discricionária quando a operação caracterizar-se como uma "infração benéfica", hipótese em que o CADE irá observar a conveniência e oportunidade na sua aprovação (SUNDFELD, 2012, p. 5).

 

Quanto a aplicação de penalidades a lógica não parece ser diversa. Neste sentido, Fábio Ulhoa afirma que o direito brasileiro se aproxima mais da teoria da concorrência-meio, isto é, onde se verifica o relevo da melhoria da produção ou distribuição, o progresso técnico e econômico, os benefícios aos consumidores, dentre outros fatores (ULHOA, 2012, p. 268 a 269).

 

É assim que o CADE, verificando que a conduta possui efeitos benéficos na economia, inclusive de acordo com a política de governo, aumento a taxa de emprego e utilizando-se de outros fatores poderá atenuar e até afastar a aplicação da penalidade (ULHOA, 2012, p. 270).

 

Daí que, analisar a conduta como infracional não é discricionariedade do CADE (ULHOA, 2012, p. 270). O CADE não poderá dizer que ato previsto como infração pela lei não é infracional e não poderá dizer que ato não previsto na lei é infracional (ULHOA, 2012, p. 270).

 

Só que, quando se trata da aplicação das penalidades, a lógica se inverte. Nesta hipótese, o CADE possui discricionariedade para punir a conduta ainda que o ato seja considerado uma infração (ULHOA, 2012, p. 270). E isto, muito embora não esteja previsto expressamente na lei, se infere pela leitura dos artigos 45 e 88, §6º, que tratam da gradação da pena e autorizam atos restritivos ou prejudiciais da concorrência (ULHOA, 2012, p. 271).

 Portanto, como verificado acima, é possível o pleno controle judicial dos atos do CADE, sejam eles vinculados ou discricionários.

 4. BIBLIOGRAFIA

 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Cível e Reexame Necessário nº. 0034347-73.2000.4.03.6100. Administrativo. Multa administrativa – CADE – Art. 54, Lei 8.884/94 – Legalidade da autuação – Redução da multa ao mínimo legal – Inviabilidade – Poder discricionário – Ausência de vício a justificar a revisão judicial. Disponível em: <www.trf3.jus.br>. Acesso em: 29 set. 2014.

 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Cível nº. 89.03.004004-0. Direito Administrativo. Controle do ato administrativo pelo judiciário. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Lei nº 4.137/62. Dominação de mercados. Hipótese não caracterizada. Legalidade. Disponível em: <www.trf3.jus.br>. Acesso em: 29 set. 2014.

 CARVALHO, Julia Mendes de. A nova lei da concorrência e o impacto de suas mudanças nas análises de atos de concentração pelo Cade. Revista de Defesa da Concorrência. Brasília, n° 2, pp. 134-148, Novembro 2013.

 

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Funções do CADE. Disponível em: < http://www.cade.gov.br/Default.aspx?86b948d123f80f14e654e7>. Disponível em: 29 set. 2014.

 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

 MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 6ed. Niterói: Impetus, 2012.

 NAZAR, Nelson.  Direito Econômico. 3 ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2014.

SUNDFELD, Carlos Ari. A função administrativa no controle dos atos de concentração. Revista de Direito Público da Economia. Belo Horizonte, ano 1, n. 2, abr./jun. 2003.


[1] CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Funções do CADE. Disponível em: < http://www.cade.gov.br/Default.aspx?86b948d123f80f14e654e7>. Disponível em: 29 set. 2014m.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Idem.

 

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