Autonomia do paciente

A dignidade da pessoa humana na clínica médica

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12 de dezembro de 2014, 5h20

A dignidade da pessoa humana foi erigida como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III). Consagra que a organização jurídica brasileira baseia-se no ser humano (antropocentrismo) e não em qualquer outro referencial. O ser humano deve ser considerado, sem distinção, como pessoa, ou seja, um ser espiritual que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores. A dignidade, no latim, significa dignitas, ou seja, “merecimento, valor, nobreza” [1].

Nos dias atuais, em que é patente a insensibilidade e indiferença do frenético mundo tecnicista, reclama-se o reencontro do respeito e proteção aos direitos humanos fundamentais. Essa consciência, de que a vida do homem necessita de uma imperiosa proteção, vai criando uma série de regras que se ajustam mais e mais com cada agressão sofrida, não apenas no sentido de se criarem dispositivos legais, mas como maneira de estabelecer formas mais fraternas de convivência[2].

Para o Direito, o referencial da dignidade humana aponta dois núcleos de proteção jurídica ao indivíduo, conforme a posição que ostenta: sob um primeiro aspecto, assume a qualidade de um direito de proteção individual, tanto em sua relação de subordinação com o Estado, tanto em sua relação de coordenação com particulares (a que se tem chamado a eficácia horizontal dos direitos fundamentais); sob um segundo aspecto, assume a característica de um dever de tratar seus semelhantes com isonomia material. 

A dignidade é atributo intrínseco da essência da pessoa, único ser que compreende o valor interno, superior a qualquer compensação financeira, que não admite substituição equivalente. Esse legado ganhou força no pensamento contemporâneo, consolidando-se como princípio basilar do ordenamento jurídico em diversos países do mundo, sobretudo após a Declaração de 1948 da ONU.

Não se trata de um direito stricto sensu, mas a base de todos os direitos fundamentais: vale dizer, a dignidade humana é uma noção que antecede aos direitos humanos. Trata-se de um ciclo comum: ao mesmo tempo em que a dignidade da pessoa humana é o núcleo central dos direitos fundamentais, esses direitos são justificados pela referência à dignidade humana. Logo, os seres humanos têm direitos porque são dignos de respeito[3].

Não é fácil a compreensão jurídico-constitucional da dignidade da pessoa humana. Segundo Ronald Dworkin, qualquer pessoa que professa a tomar os direitos a sério deve aceitar “a ideia vaga, mas poderosa da dignidade humana”[4].

De fato, dentre outras razões, conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet, a dificuldade de compreensão do que se entende por dignidade da pessoa humana decorre da circunstância dela ter “um conceito de contornos vagos e imprecisos caracterizado por sua ‘ambiguidade e porosidade’, assim como por sua natureza necessariamente polissêmica”[5]. Justamente por isso que João Baptista Vilella nos lembra do perigo do uso indiscriminado do termo “dignidade da pessoa humana”[6], o que poderá fazer com que esse importante princípio caia em descrédito[7].

Com efeito, dada a vagueza de seu conceito, por se entender como um conceito jurídico indeterminado[8], é comum que muitos se utilizem deste princípio para invocar, inclusive, direito ao aborto (dignidade da gestante), direito à compra e venda de órgãos (direito à dignidade do receptor) ou mesmo o direito à eutanásia (dignidade do doente). Mostra-se, portanto, necessário alcançar seu conteúdo.

Como substrato formal, a dignidade da pessoa humana trata-se de um superprincípio que ilumina todas as normas constitucionais e infraconstitucionais. Já seu substrato material, para Maria Celina Bodin de Moraes, pode ser desdobrado em quatro postulados:

i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii)  merecedores  do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade”[9].

A noção de dignidade também é usada como um argumento corrente no debate bioético e é compreensível que seja assim. Por um lado, ninguém pode negar as contribuições surpreendentes aos progressos mais recentes da biomedicina para o bem-estar da humanidade, permitindo a prevenção e o tratamento de muitas doenças e sofrimentos. Mas por outro lado, os novos conhecimentos levantam preciosas questões que estão diretamente relacionados à ideia de um valor intrínseco dos seres humanos. Será que tudo pode e deve ser feito em nome do progresso médico-científico, sem medir as consequências para os seres humanos?[10]

A resposta a essa pergunta encontra fundamento no respeito que se deve ter à dignidade da pessoa humana e, sem dúvida, na necessidade de obtenção do consentimento informado do paciente como autorização prévia para que possa haver intervenção em seu corpo.

Recorda-se de um artigo da pesquisadora de bioética norte-americana Ruth Mackin, publicado em dezembro de 2003 no British Medical Journal, que condenou a dignidade humana como um “conceito inútil”[11], para a medicina. A autora justifica sua posição afirmando que o respeito à dignidade das pessoas não seria outra coisa que não o respeito à sua própria autonomia, contido no princípio ético de respeito à pessoa: trata-se de corolário à exigência do consentimento informado, a proteção à confidencialidade dos pacientes e a necessidade de se evitar descriminações e práticas abusivas [12].

Entretanto, dignidade e autonomia não são considerados conceitos sinônimos, tanto que um recém-nascido não tem autonomia, mas é portador de dignidade. Mas a indagação persiste: será mesmo a dignidade um conceito inútil?

Criticando e contrapondo-se a esse posicionamento, Roberto Andorno entende que a noção de dignidade humana não é nem inútil nem supérflua. Ela ilumina, ou deveria iluminar toda a prática biomédica. Com efeito, a ciência médica não tem, ao final, outro objetivo que não o de estar a serviço das pessoas, ou seja, de contribuir para o seu bem-estar físico e psíquico de todos. Afinal, não é o homem que foi feito para servir à medicina; é a medicina que foi feita para servir ao homem. É precisamente esta a ideia fundamental que a noção da dignidade humana quer trazer[13].

Nesse sentido, voltar os olhos para o “Belmont Report” de 1979, fruto da Comissão Nacional Britânica para a Proteção dos Sujeitos Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental é essencial, uma vez que trouxe ao mundo científico os princípios fundamentais da bioética, que devem nortear também a clínica médica, quais sejam: princípio da autonomia, princípio beneficência e princípio da justiça.

Portanto, é no servir da medicina ao homem que deve ser garantido a todos os pacientes o direito de ser sujeito ativo e participativo na relação médico-paciente. Na clínica médica, este é detentor do direito de ser precisamente informado de sua condição, para que autorize a intervenção médica e se garanta a sua dignidade.


[1] Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: 2009, p. 685.

[2] FRANÇA, Genival Veloso de,  Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010,p. 105.

[3] ADORNO, ROBERTO. A noção paradoxal de dignidade humana. Revista Bioética, v. 17 (3): 2009, p.438/440.

[4] DWORKIN, Ronald. Levando os Direito a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 304.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 31.

[6] Segundo trecho da obra Variações impopulares sobre a dignidade da pessoa humana, João Baptista Viella é incisivo ao demonstrar quão ruim pode ser o uso indiscriminado da dignidade da pessoa humana. São suas palavras: “Dignidade da pessoa humana acabou por ganhar, assim, a propriedade de servir a tudo. De ser usado onde cabe com acerto pleno, onde convém com adequação discutível e onde definitivamente não é o seu lugar. Empobreceu-se. Esvaziou-se. Tornou-se um tropo oratório que tende à flacidez absoluta. Alguém acha que deve ter melhores salários? Pois que se elevem: uma simples questão de dignidade da pessoa humana. Faltam às estradas condições ideais de tráfego? É a própria dignidade da pessoa humana que exige sua melhoria. O semáforo desregulou-se em consequência de chuvas inesperadas? Ora, substituam-no imediatamente. A dignidade da pessoa humana não pode esperar. É ela própria, a dignidade da pessoa humana, que se vê lesada quando a circulação viária das cidades não funciona impecavelmente 24 horas por dia. O inquilino se atrasou com os alugueres? Despejem-no o quanto antes: Fere a dignidade da pessoa humana ver-se o locador privado, ainda que por um só dia, dos direitos que a locação lhe assegura.” VILLELA, João Baptista. Variações impopulares sobre a dignidade da pessoa humana. Superior Tribunal de Justiça: Edição comemorativa, 20 anos, 2009. p. 562.

[7] Se torna necessário, segundo Antônio Junqueira de Azevedo, aprofundar o conceito de dignidade da pessoa humana. Para o autor, a pessoa é um bem, e a dignidade, o seu valor. E continua:“O direito do século XXI não se contenta com os conceitos axiológicos formais, que podem ser usados retoricamente para qualquer tese. Mal o século XX se livrou do vazio do ´bando dos quatro`- os quatro conceitos jurídicos indeterminados: função social, ordem pública, boa-fé, interesse público -, preenchendo-os, pela lei, doutrina e jurisprudência, com alguma diretriz material, surge, agora, no século XXI, problema idêntico com a expressão dignidade da pessoa humana”. AZEVEDO. Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. São Paulo: RT nº 797/15, 2002.

[8] Luis Roberto Barroso define conceito jurídico indeterminado como expressão em sentido fluído, destinadas a lidar com situações nas quais o legislador não pôde ou não quis, no relato abstrato do enunciado normativo, especificar de forma detalhada suas hipóteses de incidência ou exaurir o comando a ser dele extraído. (…) Como natural, o emprego dessa técnica abre para o intérprete um espaço considerável – mas não ilimitado ou arbitrário – de valoração subjetiva. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 313.

[9] MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos a pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85.

[10] ADORNO, ROBERTO. A noção paradoxal de dignidade humana. Revista Bioética, v. 17 (3): 2009, p.436.

[11]  MACKIN, Ruth. Dignity is a useless concept. BMJ  v. 327,  2003, p. 1419 (tradução livre do autor).

[12]  MACKIN, Ruth. Dignity is a useless concept. BMJ  v. 327,  2003, p. 1420(tradução livre do autor).

[13]  ADORNO, Roberto. A noção de dignidade é supérflua para a bioética? Tradução por Carlos Eduardo Bistão Nascimento. Disponível em: <http://carlosnascimento.adv.br/blog/archives/139>. Acesso em 10.02.2012. No original: La notion de dignité humaine est-elle superflue en bioéthique?  Consulte: <http://www.contrepointphilosophique.ch/Archives/Sommaire/Sommaire.html>. Acesso em 10.02.2012.

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