Verdade Judicial

Comissão Nacional da Verdade afirma que Judiciário foi conivente com torturas

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10 de dezembro de 2014, 19h14

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue à presidente Dilma Rousseff e divulgado à sociedade nesta quarta-feira (10/12) dedica um capítulo inteiro sobre a atuação do Judiciário brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985) e não deixa por menos: ministros, juízes e auditores sabiam que se torturava nos porões da repressão e pouco fizeram para impedir que isso ocorresse. O relatório também afirma que o Supremo Tribunal Federal “não questionou a validade dos atos institucionais, nem se insurgiu com as restrições por eles impostas ao controle judicial”.

O relatório reconhece as dificuldades enfrentadas pelo Judiciário: “Durante o regime militar, num processo iniciado em 1964 e concluído em 1969, restringiu-se, de um lado, o acesso ao Poder Judiciário, ao impedir-se o controle judicial sobre determinadas matérias; de outro, possibilitou-se a interferência, pelo presidente da República, na estrutura e na composição das instituições judiciárias, mediante criação e extinção de cargos e aposentadoria de magistrados”.

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Segundo o relatório, até 1968 o Habeas Corpus ainda funcionou como uma poderosa arma contra os desmandos das autoridades militares e policiais. O Ato Institucional número 5, editado em dezembro de 1968, contudo, suspendeu a aplicação de Habeas Corpus para os chamados crimes contra a Segurança Nacional, o que restringiu mais as garantias para os presos políticos.

Ainda mais sabendo-se que o conceito de crime contra a Segurança Nacional era muito elástico. O relatório cita o caso de João Rodrigues Cerqueira, preso sob acusação de lenocínio, ou exploração de prostituição que foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal e o relator, ministro Luís Gallotti, pediu esclarecimentos ao secretário de Segurança sobre as acusações. O secretário, general Luiz de França Oliveira respondeu: “O inescrupuloso comércio de lenocínio [exploração da prostituição], sob o manto protetor de alvarás de licença para funcionamento de hotéis, é um dos fatores que mais degradam a sociedade. Informar ao excelso pretório 'qual o crime' imputável ao paciente, em termos de legislação penal comum, parece, data vênia, uma fuga à realidade revolucionária. O crime de João Rodrigues Cerqueira, como o de outros, vai além da norma penal simples, porque exerce uma atividade antissocial genérica, que precisa ser banida”.  O relator não concordou. “Por mais sérias e respeitáveis que sejam as razões invocadas pela autoridade, a garantia de Habeas Corpus, quanto a esse crime, não está suspensa.”

O relatório também reconhece que enquanto estava em vigência a Constituição de 1946, cerceada apenas pelas medidas do AI-1, o STF viveu um “período marcado por sucessivas concessões de Habeas Corpus em favor de civis acusados de crimes contra a segurança nacional, tendo em vista as irregularidades verificadas nos respectivos inquéritos policiais militares". À época, havia dúvida se a competência para julgar esse tipo de crime era da Justiça Militar ou da Justiça comum. Em agosto de 1964, no julgamento do HC 40.865, o Supremo definiu a questão, não tomando por base a autoridade coatora, mas o tipo de crime: se comum, era da Justiça comum; se contra o Estado e a ordem política, era da Justiça Militar. "Não está sujeito à jurisdição militar, o civil acusado de prática de delito comum, não enquadrável nas hipóteses previstas no artigo 42, da Lei 1.802/1953, que define os crimes contra o Estado", diz a decisão.

Com a entrada em vigor do AI-2, em 1965, a Justiça Militar teve sua competência ampliada para julgar civis e autoridades acusadas de crime contra a segurança nacional, tirando essa matéria da alçada do STF. Restava-lhe ainda declarar extinta a ação “por falta de justa causa". Foi o que aconteceu no julgamento do HC 43.734, em que Henrique de Carvalho Matos, preso sob acusação de tentar reorganizar partido político. “O simples fato de alguém aderir ao marxismo ou ao comunismo, como convicção política, filosófica, ideológica, enfim, doutrinária, não é por si só crime, enquanto não passa ao começo da execução das atividades específicas catalogadas na lei penal.”

Com a edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, porém, foi suspensa, conforme já observado, a garantia de HCs nos casos de crimes políticos — contra a segurança nacional, contra a ordem política e social e contra a economia popular. A partir desse momento, diversos pedidos não foram conhecidos. O AI-5 trouxe ainda, de quebra, a aposentadoria compulsória dos ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em solidariedade, o presidente da corte, Gonçalves de Oliveira se aposentou também, o mesmo foi feito por Lafayette de Andrada. Como o número de integrantes do Supremo fora aumentado de 11 para 16 pelo AI-2, em menos de um ano, o governo militar teve a chance de nomear, a seu gosto, dez novos ministros para a corte.

O relatório cita pesquisa de Swensson Junior, segundo a qual, durante o regime militar, o STF julgou 292 recursos ordinários criminais, relativos a 565 réus, negando provimento a 376 réus. Entre 1969 e 1974, foram 127 os recursos e 222 os réus; de 1975 a 1979 foram julgados 143 recursos e 312 réus.

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Tortura
Com base nesses recursos, o STF firma o entendimento de que confissões extrajudiciais são admissíveis como prova, quando forem testemunhadas e não forem contrariadas por outras provas. “Confissões judiciais ou extrajudiciais valem pela sinceridade com que são feitas oe verdades nelas contidas”, escreveu o ministro Cordeiro Guerra no acordão do Recurso Criminal 1.255.  O mesmo ministro afirmou: “Não acolho a orientação doutrinária esposada pela Procuradoria-Geral da República, de que todas as confissões extrajudiciais, pelos simples fato de serem repelidas em juízo, sob alegação de terem sido prestadas por coação, devem ser havidas como destituídas de valor probante”.

“Muitos dos processos contra os perseguidos políticos que tramitaram na Justiça Militar com acusações de crimes contra a segurança nacional continham denúncias de tortura apresentadas pelos réus”, afirma o relatório da CNV, citando a pesquisa Brasil: nunca mais. Na maioria dos casos, o auditor militar registrava a queixa. Às vezes fazia constar nos autos, mas não tomava nenhuma providência. Mas havia exceções. Era o caso do ministro Aliomar Baleeiro, do Superior Tribunal Militar, que levava a sério o que ouvia: “Vinte séculos de civilização não bastaram para tornar a polícia uma instituição policiada, parecendo que o crime dos malfeitores contagia fatalmente o caráter dos agentes que a Nação paga para combatê-los e corrigi-los”, disse ele, como relator do Recurso 1.143, julgador em maio de 1973.

Indenizações às famílias
O relatório cita ainda alguns casos em que as Justiças Federal e a estadual foram chamadas a pronunciar-se sobre graves violações de direitos humanos de presos políticos. A primeira dessas ações é a impetrada por Elizabeth Chalupp Soares, pedindo indenização por danos morais e materiais pelo assassinato de seu marido Manoel Raimundo Soares, pelos órgãos de repressão. O caso foi ajuizado em 1973, mas só em 2000 foi proferida sentença condenado a União ao pagamento de pensão vitalícia à viúva, retroativa de 13 de agosto de 1966, quando ocorreu a morte.

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Outra ação citada no relatório é a de Clarice Herzog e seus dois filhos, Ivo e André, pedindo a declaração da responsabilidade da União pela prisão ilegal, tortura e assassinato de seu marido e pai, o jornalista Vladimir Herzog (foto). Ação iniciada em 1976, teve sentença em 1978, proferida pelo juiz federal Márcio Moraes, que reconheceu a obrigação da União de indenizar os autores pelos danos materiais e morais decorrentes da morte de Herzog.

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