Constituição e Poder

Também no Direito, toda generalização é perigosa

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8 de dezembro de 2014, 20h00

Spacca
Peço a permissão dos esclarecidos leitores de nossa coluna para dedicar o presente artigo à homenagem de um dos maiores advogados brasileiros, o professor Ruy Samuel Espíndola, recentemente empossado na cadeira 14 da Academia Catarinense de Letras Jurídicas (Acalej). Vamos a isso.

Dentre as muitas frases que eternizou em sua inabarcável obra, esse grande pensador brasileiro, Nelson Rodrigues, talvez um de nossos poucos verdadeiros filósofos, deixou em todos gravados essa indiscutível verdade: “toda unanimidade é burra” (quando não pelo conteúdo, pela forma como é alcançada). Ideia tanto mais repetida quanto desconsiderada, pois, como se sabe, todos adoramos escalar uma ideia pronta. A pesquisa jurídica no Brasil não é diferente.

Boa parte das teorias jurídicas brasileiras, sem que isso implique qualquer novidade, assenta-se em conjecturas ou em generalizações de pesquisas sociais absolutamente desprovidas de comprovação. São verdades repetidas sem que ninguém as tenha submetido à verificação.

Todos nós somos confrontados diariamente com hipóteses elevadas à condição de notoriedades evidentes por si mesmas. O cidadão é permanentemente testado em sua paciência e credulidade com hipóteses veiculadas de forma grandiloquente por especialistas que generalizam experiências isoladas, colhidas aqui e ali, que, na maior parte das vezes, representam pesquisas que sequer foram desenvolvidas para nossa realidade.  É esse o caso dos seguintes exemplos: “cadeia não reduz a criminalidade”, afirmação divulgada com a mesma solenidade com que se divulga o seu exato oposto: “a maior causa da criminalidade em nossas ruas é a falta de cadeia ou punição para os criminosos”. Tem ainda uma versão mais requintada, que afirma superar ambas as contradições: “não é o tempo de encarceramento, mas a certeza de punição que de fato reduz a impunidade”. Afinal de contas, onde está a verdade em tudo isso? A audiência fica compreensivelmente perplexa com discrepâncias tão evidentes e que, não obstante, são defendidas com o mesmo vigor por intelectuais igualmente sinceros e qualificados.

O impressionante nessas verdades absolutas e autoevidentes não é apenas a sua indiscutível contradição, já que umas certificam, como se pode ver, precisamente o contrário das outras. Também não está no fato de que intelectuais igualmente qualificados as profiram com a mesma confiança na sua indiscutível excelência, não obstante — repita-se — essencialmente antagônicas. O mais impressionante, como se disse, talvez esteja no fato de que são generalizações sem que jamais as tenhamos testado seriamente na realidade a que se destinam (país, estado, município).

Além disso, quem fizer uma rápida pesquisa em qualquer tema ou fato social importante — por exemplo: homicídio, corrupção, latrocínio, furto, aborto ou pedofilia —, mesmo em órgãos do governo, navegará em águas absolutamente turvas, com números a sustentar qualquer conclusão. Na ausência de pesquisas convincentes, pergunta-se: a mesma decisão tomada para a União terá a mesma eficácia quando adotada num Estado-membro ou numa cidade? Decisões abstratas aparentemente aconselháveis para realidades como as de São Paulo, Santa Catarina ou Paraná terão os mesmos efeitos em Rondônia, Roraima ou Amapá?

Nada obstante, leis e decisões judiciais são cotidianamente adotadas em Brasília sem que jamais tenham sido acompanhadas de pesquisas sociais minimamente  sérias, ou mesmo qualquer pesquisa, que possam comprovar os dados que suportaram  suas premissas e generalizações.

Talvez isso explique porque, em matéria de direito, muitos prefiram sustentar suas posições em pesquisas sociais promovidas em realidades (econômica, história, social e politica) absolutamente diversas da brasileira. Em outras palavras, é como se dissessem: lá onde foram feitas pelo menos as pesquisas são sérias. Isso me faz lembrar de  uma antiga piada contada por um querido e sábio professor de filosofia do direito e de criminologia: um vizinho encontra o outro completamente bêbado procurando a chave de casa perto do poste de luz. Depois de ajudá-lo a procurar por mais de meia hora, finalmente lhe pergunta se tinha certeza de ter perdido a chave naquele lugar. Ao que outro lhe responde: —  “não, mas aqui pelo menos temos luz para procurar”.

Karl Popper, na sua excepcional e mais prestigiada obra, “A lógica da pesquisa científica”,  recusa a possibilidade de extrair enunciados universais, tais como teorias ou hipóteses,  de enunciados particulares, singulares e concretos[1]. No dizer de Popper, do ponto de vista lógico, independentemente de quantos casos possamos observar, jamais poderemos retirar dessa observação uma conclusão universal: “não importa quanto cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos”[2].

Para Popper, uma das mais graves questões do conhecimento consiste precisamente em saber os limites das inferências indutivas, ou seja, um dos mais importantes problemas da pesquisa científica está em saber em que medida as conclusões que retiramos das nossas observações e pesquisas podem ser generalizadas em hipóteses e teorias. Não é sem razão, pois, que Popper transformou esse problema, o problema da indução, na preocupação central daquela que se transformaria em uma das principais obras de teoria do conhecimento de nossos tempos (o seu livro “A lógica da pesquisa científica”).

Popper descreve o problema da seguinte forma: “O problema da indução também pode ser apresentado como a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontram base na experiência, tais como a hipótese e os sistemas teóricos das ciências empíricas”[3].

Em resumo, o problema de Popper é também o de saber o que é que nós, honestamente, do ponto de vista intelectual, podemos conhecer e concluir a partir da experiência sensível. No caso da pesquisa em direito no Brasil, o problema seria ainda mais grave, pois qual seria a consistência de conclusões e hipóteses que têm como base premissas não comprovadas, ou pelo menos não comprovadas em nossa própria experiência social?

Por exemplo, tem algum significado para o Brasil a afirmação de que a pena morte reduziu, ou não, a criminalidade em determinada cidade norte-americana? Para Popper uma tal constatação provavelmente não teria muito significado nem mesmo para os Estados Unidos, já que a sua generalização só poderia ser concretizada ao custo da desconsideração de circunstâncias (histórias, geográficas, econômicas, educacionais e culturais, entre outros) específicas de outras experiências e realidades.

Hegel, num maravilhoso pequeno texto (“Quem pensa abstratamente?”[4]), afirmava que as pessoas perspicazes dificilmente se deixavam enganar com “generalizações abstratas”, isto é, quem quer enxergar a verdade não se deixa iludir pela forma parcial daqueles que pensam por puras “abstrações”. Por essência, para “abstrair”,  devemos  “generalizar”, isto é, devemos desconsiderar as particularidades de cada situação concreta. Afinal de contas, pensar abstratamente nada mais é, temos que concordar com Hegel, do que desconsiderar particularidades.

(Aqui, deve-se abrir um parêntesis: Precisamente para escapar ao perigo da arbitrariedade de suas próprias  abstrações, que são sempre generalizações de aspectos e perspectivas parciais, é que o magistrado tem a obrigação de se submeter à abstração da lei, não podendo, a cada decisão sua, reinventar, ou  reinaugurar um momento de abstração, onde possa impor, à revelia da abstração do legislador, a sua própria perspectiva).

Por sua vez, quem, na condição de legislador, almeja compreender o fenômeno da criminalidade, por exemplo, não pode proceder a generalizações de aspectos particulares, muito menos deixar-se envolver pelas paixões que normalmente nos iludem quanto aos fatos sociais. De fato, se o legislador tentar resolver o problema da criminalidade apenas com o “remédio” da punição terá o mesmo significativo efeito de quem, em sentido totalmente oposto, menospreza o caráter preventivo, concreto e, por que não?, simbólico, que o direito penal revela como orientação de sentido para as condutas humanas. Generaliza e erra tanto quem menospreza a eficácia do Direito Penal quanto aquele que o eleva à única solução para o problema da criminalidade.

 O crime, evidentemente, não é um problema que se resolva exclusivamente no âmbito do Direito Penal, mas também não pode desconsiderá-lo. O fenômeno do crescimento das taxas de homicídio em nossa sociedade, por exemplo, não pode ser explicado apenas como consequência de algum espírito degenerado de indivíduos cuja natureza nasce e permanece essencialmente criminosa. Fosse esse o caso, e a única solução seria mesmo  o seu enclausuramento  e, com isso, a sua exclusão do convívio social. Se indivíduos nascem mesmo predestinados ao crime, nada há que se fazer a não ser suportá-los ou excluí-los  definitivamente da sociedade. Educação, família, economia e inclusão social nada têm o que dizer para quem ou o que é essencialmente mau. Obviamente, a simples disposição do problema já revela a parcialidade e inadequação de uma generalização assim deduzida. Essas abstrações absolutas também não explicam como sociedades diminuem consistentemente (ou veem aumentar) as suas taxas de criminalidade.

De outro lado, hoje é possível dizer que tampouco a criminalidade é um fenômeno que se reconduza apenas a aspectos econômicos e sociais, como muitos acreditavam. Países extremamente pobres convivem com taxas de criminalidade expressivamente menores que países de economia estável. E para não ir muito longe, não obstante o Brasil experimente nos últimos anos uma taxa considerável de inclusão social, no entanto, para a surpresa de muitos, ao invés de um decréscimo nos índices de criminalidade, assistimos assustados a uma desconcertante elevação de quase todos os indicadores de infrações criminais.

Muito provavelmente, como sustentam vozes mais autorizadas, o crime seja mesmo um fenômeno de múltiplas causas, não se podendo alcançar uma resposta eficaz às suas origens que se resuma meramente às qualidades ou deficiências do aparelho policial-repressivo. Parodiando alguém, sem desmerecer todos os agentes da repressão estatal à criminalidade, o crime é fenômeno complexo demais para ficar a cargo apenas da polícia, do Ministério Público ou do Judiciário.

Por coincidência, no mesmo belo texto acima referido, Hegel recusava enxergar no crime, ou no criminoso, um fato social de uma única causa ou de uma perspectiva exclusiva (cito):

“Um assassino é conduzido ao local de execução. Para o povo em geral trata-se somente de um criminoso e nada mais. Algumas damas comentam talvez que ele é um homem forte, belo e interessante. O povo reage com repulsa: ‘o que? um assassino belo?’ ‘Como se pode pensar tão equivocadamente a ponto de chamar um assassino de belo?’ ‘vocês não são melhores do que ele!’ O padre, que conhece bem a razão das coisas e os corações, acrescenta talvez, que isto é um sinal da corrupção dos costumes que permeia as classes superiores. Uma pessoa que realmente conheça o ser humano (Menschenkenner) traça o caminho de formação do criminoso; ele encontrará na história do criminoso uma educação deficiente; péssimas relações familiares entre seu pai e sua mãe; alguma punição monstruosa (ou ‘incrível severidade’)[5] após um leve delito, que deixa esse homem amargurado com a ordem civil; uma primeira reação dessa ordem contra ele, excluindo-o da sociedade e possibilitando-lhe a partir daí a sobrevivência somente através do crime. Provavelmente existem pessoas que ao ouvirem tais coisas dirão: este quer isentar o criminoso de sua culpa! Eu me lembro bem ter ouvido, quando era jovem, um prefeito reclamando que os escritores estavam passando dos limites, pois procuravam destruir totalmente o cristianismo e a honradez. Segundo o prefeito, um deles teria escrito uma apologia do suicídio; horrível, horrível demais! Algumas perguntas mais e descobriu-se que se tratava dos Sofrimentos de Werther (do Goethe). Pensar abstratamente significa isto: ver no assassino somente o fato abstrato que ele é um assassino e através desta simples qualidade anular toda a essência humana ainda remanescente nele.”

 Em resumo, tanto em Popper como na bela passagem de Hegel, o que encontramos é a recusa a aceitar que possamos medir o mundo, ou qualquer fenômeno social, a partir das generalização de nossas experiências particulares.

Na verdade, esse espetacular pensador de nossos tempos, Karl Popper, considerou essa uma de suas principais batalhas: a rejeição da possibilidade de aceitarmos verdades universais a partir de experiências indutivas, que partem sempre de uma base de dados ou de perspectivas particularizadas. Por isso, opôs-se à ideia de um princípio da indução, insistentemente defendido por Reichenbach, que acreditava que a verdade das ciências depende da aceitação da legitimidade do raciocínio indutivo. Contrariamente,  Popper afirmou que, na melhor das hipóteses, o método indutivo é supérfluo (argumento de reforço). Que todos os corvos que tenhamos encontrado numa pesquisa sejam pretos apenas prova isso, ou seja, que  só encontramos corvos pretos, e não que não possam existir corvos de outra cor.

Além disso, abstrações genéricas trazem geralmente outro vício, para Popper inaceitável: o fato de não se predisporem a refutações. Para Popper, como se sabe, cada teoria ou hipótese apenas se sustenta cientificamente enquanto se mostra passível de ser refutada.  Hipóteses, afirmações ou teorias que, por sua conformação, não sejam permanentemente passíveis de falseabilidade não têm legitimidade científica. Quem ou o que não se abre à possibilidade de erro não merece credibilidade científica.

Isso também explicaria a desconfiança de Popper quanto à possibilidade de a Filosofia apresentar algum problema genuíno, pois, como acreditar em teorias que não se permitem verificar, precisamente por se apresentarem como explicação de tudo, além de se colocarem “em face de algo que se semelha um amontoado de ruínas – embora, talvez, haja tesouros ocultos” (Prefácio à primeira edição, de 1934, “A lógica da pesquisa científica")? A não ser que façamos como uma espécie de pensamento analítico, que, depois de ser convencido de suas limitações, pretendeu reduzir a filosofia, tristemente, à lógica formal.

Por fim, tudo isso, obviamente, não significa a completa inutilidade de pesquisas comparadas, já que, desde que se submetendo ao confronto permanente com experiências na realidade para onde se queiram transportar, têm evidentemente, penso eu, a legitimidade do argumento de reforço.

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[1] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.

[2] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.

[3] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.

[4] G. W. F. Hegel. Quem pensa abstratamente?, (Síntese Nova Fase: V. 22 N. 69 (1995): 235-240), texto visualizado na data de 8-12-2014 no sítio http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/hegel-quem-pensa-abstratamente.pdf.

[5] No original, aparece a expressão “ungeheure Härte”, que a tradução original preferiu “punição monstruosa”. Talvez “tremenda dureza” ou “incrível severidade” traduza melhor o sentido. Confira-se em G. W. F. Hegel. Quem pensa abstratamente?, (Síntese Nova Fase: V. 22 N. 69 (1995): 235-240), texto visualizado na data de 8-12-2014 no sítio http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/hegel-quem-pensa-abstratamente.pdf.

*Texto alterado às 9h08 do dia 9/12 para correções.

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