Constitucionalismo brasileiro

Direito constitucional está se reaproximando da ciência política

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5 de dezembro de 2014, 5h01

O objetivo deste artigo é demonstrar a evolução do constitucionalismo brasileiro, a partir da virada pós Constituição de 1988, que se divide, didaticamente, em três fases.

Para compreendê-las, devemos nos perguntar como uma disciplina jurídica se torna autônoma? O direito processual civil, por exemplo, ao longo de toda a Roma antiga foi associado ao direito material. Só tinha ação aquele que tinha o direito. Não existia o processo como um ramo autônomo do direito. Foram necessárias abstrações teóricas das mais variadas para lhe estabelecer um objeto autônomo. As teorias da ação, o processo, a lide, tudo concebido para demonstrar que o processo independe do direito material. O direito processual enfim se consolidou e se tornou independente.

Mas a realidade não se curva às abstrações, e, como não podia deixar de ser, o pêndulo moveu-se novamente no sentido da instrumentalização do processo, que não deve ser um fim em si mesmo, mas deve sempre servir à tutela do bem da vida que o justifica. Ou em outras palavras: o processo é autônomo, desde que entendido como instrumental para a distribuição do direito material. Essa relação entre o direito material e o direito processual sempre existirá. Assim, se em um momento foi fundamental estabelecer a autonomia e independência do processo para distingui-lo do direito material, isso decorreu das circunstâncias: o processo não existia enquanto ramo do direito. Era uma criança que ainda não tinha identidade. Certamente não é mais o caso. O direito processual já está maduro o suficiente para se misturar com o direito material sem perder a identidade.

Guardadas as devidas proporções, o mesmo aconteceu com o Direito Constitucional. A seguir, faremos um breve histórico das três fases de amadurecimento do Direito Constitucional e do controle de constitucionalidade no pós 1988.

A primeira fase, que pode ser chamada de nascimento ou infância do direito constitucional aconteceu no processo de redemocratização, marcado pela transição da ditadura militar para uma nova ordem democrática. Nesse período, prevaleceram o chamado constitucionalismo da efetividade e a fase “processual” do controle de constitucionalidade.

Há pouco mais de 25 anos, o direito constitucional era um apêndice da ciência política. Muitas vezes ensinado por professores de história, tratava-se de mera enunciação das instituições políticas tal qual existiam no plano descritivo. E dificilmente poderia ter sido diferente, como ensinou o professor Luís Roberto Barroso.[1] Com a Constituição Federal de 1988 e a redemocratização, o direito constitucional viu uma chance de se tornar autônomo, e foi da inexistência ao apogeu nesse breve espaço de tempo. Na sua infância, o direito constitucional preocupava-se em se afirmar direito. Obviamente, então, demonstrou pra quem quisesse ver que era tão provido de normas quanto o direito civil — seu irmão mais velho.[2] Nesse processo, alguns constitucionalistas como o Professor Luis Roberto Barroso e Clèmerson Cleve,[3] entre outros, atuaram com o propósito de dar sustentação teórica à doutrina brasileira da efetividade. A normatividade e o foco nos aspectos processuais de sua efetivação eram a tônica.[4] Realizávamos nos anos 90 o que os americanos tinham feito no início do século XIX: construíamos o constitucionalismo e a revisão judicial.[5]

Nesse contexto, não havia espaço para discussões filosóficas ou questionamentos em relação à natureza, propósito e justificação do controle de constitucionalidade. Esse processo de separação rígida das demais ciências sociais não foi um privilégio brasileiro. Também nos Estados Unidos, o início do desenvolvimento da ciência do direito tampouco permitia essa aproximação, razão pela qual os estudos empíricos ficaram distantes do direito durante mais de um século, como coloca Heise:

Notably, during the initial forging of the modern American law school model, delineating and maintaining the boundary between legal science and all other academic disciplines was so vital to the professional identity of the law professor, that there was precious little room for or interest in anything resembling empirial legal scholarship.[6]

Voltando ao Brasil, a tônica era enfatizar que a Constituição Federal de 1988 era norma, precisava ser concretizada, e que diversos de seus artigos conferiam essa missão concretizadora ao Judiciário. Afinal, pelo menos desde Marbury v. Madison[7] a Constituição teria sido província do Judiciário nos Estados Unidos, onde ele reinaria supremo, fenômeno que também ocorreu na Europa com o final da 2ª Guerra Mundial, faltando ao Brasil apenas acompanhar o pensamento jurídico das nações do primeiro mundo.[8]

Consolidada a doutrina da efetividade, o segundo momento histórico pode ser definido como a adolescência do direito constitucional brasileiro, em que novas formulações doutrinárias se agregaram ao que fora construído, notadamente o neoconstitucionalismo e a teoria dos direitos fundamentais. Nesse processo, começaram a surgir as primeiras dúvidas — procedimentalismo ou substancialismo; democracia ou constitucionalismo — e muitas certezas, dentre as quais destacam-se a supremacia judicial e a metáfora do guardião entrincheirado.

Nessa segunda fase, o direito constitucional avançou na sua afirmação e no seu afastamento da ciência política. A prática constitucional e o avanço da democracia permitiam vislumbrar o projeto constitucional de forma otimista. Aproveitando-se da doutrina estrangeira, sobretudo a norteamericana, que nas décadas de 1970 e 1980 se focou em construir teorias interpretativas desenhadas para manter os juízes dentro dos limites da lei e fora da política,[9] o direito constitucional brasileiro se abriu ainda mais à interpretação e aos princípios.[10] Mais alto e forte que seus irmãos, a prática constitucional permitia ao direito constitucional deixar de ser “apenas direito”, e sim o direito sobre o qual todos os demais se sustentavam. Surgiu espaço, então, para aprofundar as discussões sobre o papel da revisão judicial. Nessa contenda, buscaram-se dar respostas definitivas sobre qual deveria ser o papel do Judiciário no constitucionalismo democrático, de que forma os juízes deveriam decidir e interpretar a Constituição, ou seja, como as coisas deveriam ser.

Quanto à autoridade para concretizar a Constituição, o direito constitucional ainda tentava avançar nos corações e mentes — e sobretudo — na prática constitucional, a ideia do Judiciário como intérprete final, papel que lhe caberia por vocação e direito. Não havia clima nem vontade de abrir fendas nesse raciocínio.

Quanto à forma como essa autoridade final deveria ser exercida, contudo, surgiram as primeiras fissuras. Para uns, em geral dando ênfase ao constitucionalismo e ao compromisso com o governo limitado, a Constituição deveria ser interpretada pelos juízes de forma substancial, trazendo para o direito considerações morais de todas as ordens, desde que calcadas na razão pública, em princípios da justiça e em uma argumentação política aceita pela coletividade.[11] Para outros, em geral enfatizando o compromisso com a democracia, com a soberania popular e com o governo das maiorias, os juízes deveriam adotar uma postura menos ampla, procedimental, só intervindo para garantir as regras do jogo, ou seja, as condições procedimentais da própria democracia, dentre as quais se destacam, para uns, os direitos relacionados ao processo político, e para outros, a proteção de minorias desprovidas de voz na arena política.[12]

Ambas as perspectivas, no entanto, concordam que em alguma medida o judicial review deve existir. Essa impossibilidade de definição a priori entre um modelo substancial ou procedimental, portanto, não coloca em discussão a legitimidade do controle de constitucionalidade, mas apenas tenta debater a medida certa desse instrumento na receita ideal do constitucionalismo democrático. [13]

Essas duas perspectivas sobre a justa medida da interferência das Cortes nos demais poderes via controle de constitucionalidade se realiza, em muitos estudos, a partir do debate em torno da “dificuldade contramajoritária”, e tanto os substancialistas quanto os procedimentalistas justificavam teoricamente esse déficit democrático do controle de constitucionalidade a partir de diversos argumentos: o controle de constitucionalidade serviria para a proteção das minorias – juízes independentes do povo e dos demais poderes protegeriam a democracia dos excessos das maiorias ocasionais -, e a democracia conteria em si um paradoxo de autodestruição freado apenas pelo constitucionalismo e pela existência do controle de constitucionalidade, dois pré-compromissos voltados para nos amarrar ao barco e evitar a tentação das sereias.[14]

Todas essas justificações foram elaboradas de forma abstrata, no plano teórico normativo cujo pressuposto base é de que o juiz decida constrangido apenas pela lei e pelo isolamento da política. Tudo resolvido no Olimpo, acessível apenas por Hércules ou Spock[15] e seus companheiros.

Essa separação — teórica e até certo ponto prática — serviu para dar a maturidade que o direito constitucional precisava. Não se discute mais que a Constituição é norma, e que o Supremo Tribunal Federal tem um papel relevante na democracia brasileira. Ao contrário, hoje o STF avança de tal forma que para alguns já haveria uma supremocracia.[16] Assim como aconteceu com o direito processual, foi importante para o direito constitucional esse momento de separação rígida. Sem consolidar a sua personalidade, ele ficaria muito suscetível às influências dos “colegas mais velhos”. O muro entre o direito e a política foi construído. Muito bem construído, por sinal.

À medida em que o constitucionalismo foi se tornando vitorioso, seu sucesso chamou a atenção cada vez maior de estudiosos que passaram a enfrentar com maior riqueza de detalhes as suas premissas. A quantidade razoável de judicial review abriu-se para debate de forma mais intensa. Seria uma tensão inerente ao constitucionalismo democrático e insolúvel de forma definitiva. A dificuldade contramajoritária da mesma forma tentou ser enfrentada, e a resposta foi um tanto quanto similar, como dissemos: uns enfatizando o constitucionalismo e admitindo que alguns valores e direitos substantivos deveriam ser retirados do comércio político ordinário, outros ressaltando que o resultado produzido pelo controle de constitucionalidade promovia a democracia, e que, portanto, essa suposta dificuldade não seria um problema.

As demais questões que poderiam surgir sobre o constitucionalismo e o controle de constitucionalidade, a supremacia judicial, a necessidade de justificar a revisão judicial como um elemento intrínseco ao constitucionalismo, ou mesmo o teste empírico da dificuldade contramajoritária, permaneciam intocadas. Esse limite não decorreu de falta de curiosidade, de desinteresse ou foi autoimposto.

A falta de problematização dessas questões nessa segunda quadra da evolução do direito constitucional decorreu do reconhecimento dos seus limites e da falta de amadurecimento suficiente para lidar com uma verdade inexorável: Assim como o processo não existe sem o direito material, tampouco o direito constitucional consegue responder todas as perguntas e questões que surgem em seu âmago sem a ciência política. Mas essa barreira permanecia tacitamente intransponível. Um rompimento prematuro dessa fronteira poderia colocar todo um projeto vitorioso a perder.

Apenas na fase em que se encontra hoje, já adulto e maduro, o direito constitucional está suficientemente pronto para lidar confortavelmente com as incertezas. Ou, em outras palavras, está pronto para se reaproximar da ciência política sem perder a sua identidade. Essa reaproximação vem lançando luzes e dúvidas a questões aparentemente resolvidas no plano normativo, notadamente a supremacia judicial e a dificuldade contramajoritária. Quanto à supremacia judicial, assumida como um corolário lógico da supremacia da constituição, ela vem sendo questionada pelas teorias dos diálogos institucionais, que apresentam argumentos expressivos para demonstrarem que não cabe apenas ao STF decidir por último o que a Constituição significa.[17] Da mesma forma a dificuldade contramajoritária, cuja solução teórica de compromisso com uma democracia substantiva vem perdendo espaço para análises empíricas que questionam a própria possibilidade do Judiciário atuar dessa forma, no que se convencionou chamar de “teoria majoritária” de atuação da Suprema Corte.

Mas essa reaproximação não serve apenas para contestar o que já foi construído. O direito constitucional precisa se reaproximar de leituras “positivas” ou descritivas normalmente associadas com a ciência política, com o objetivo de oferecer soluções para problemas que no plano normativo parecem insolúveis. Saber como a Constituição deve ser aplicada e como os juízes devem interpretá-la é fundamental. Mas dissociadas de como os juízes efetivamente o fazem, ou das forças que se impõem sobre eles, o dever ser se torna uma discussão filosófica desinteressante para os não acadêmicos, desprovida de utilidade.

Concluído o breve panorama da evolução do direito constitucional brasileiro, que em 25 anos alcançou os debates atualmente realizados por todo o mundo, há que se notar que subjacente à reaproximação do direito constitucional com a ciência política está a relação do direito com a política. A afirmação parece óbvia, mas não é. A relação entre o direito e a política é complexa, e de dificil delineação: para uns devem ser dois mundos separados, para outros a relação é necessariamente simbiótica. Esse é justamente o momento atual do nosso direito constitucional, se reencontrando com a ciência política, e buscando delinear de forma mais clara os contornos dessa relação fadada à interdependência.


[1] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

[2] Ibid., p. 303: “Por ora, cumpre consignar que a doutrina da efetividade importou e difundiu, no âmbito do direito constitucional, um conceito tradicionalmente apropriado pelo direito civil, mas que, na verdade, integra a teoria geral do direito: o de direito subjetivo.”

[3] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A teoria constitucional e o direito alternativo. In: Uma vida dedicada ao Direito: homenagem a Carlos Henrique de Carvalho. São Paulo: RT, 19991, p. 34/53. E A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 1999.

[4] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Op. cit., p. 303: “as normas constitucionais definidoras de direitos – isto é, de direitos subjetivos constitucionais – investem os seus beneficiários em situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem efetivadas por prestações positivas ou negativas, exigíveis do Estado ou de outro eventual destinatário da norma. Não cumprido espontaneamente o dever jurídico, o titular do direito lesado tem reconhecido constitucionalmente o direito de exigir do Estado que intervenha para assegurar o cumprimento da norma, com a entrega da prestação. Trata-se do direito de ação, previsto no art. 5, XXXV da Constituição”.

[5] O controle de constitucionalidade não surgiu com a Constituição de 1988. O controle difuso e incidental tem sua certidão de nascimento no Decreto n. 848/1890, que criou a Justiça Federal. A primeira Constituição a prevê-lo foi a de 1891. Ver CERQUEIRA, Marcello. A Constituição na história – origem e reforma: da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed., Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 433. Já o controle abstrato de constitucionalidade foi criado pela Emenda Constitucional nº 16/1965, que criou a Representação de Inconstitucionalidade, permitindo ao STF a analise da compatibilidade de leis ou atos normativos com a Constituição. Contudo, a pratica do controle só se incorporou ao cotidiano juridico brasileiro após 1988. A propósito, ver BARROSO, L. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Op. cit.

[6] HEISE, Michael. The past, present, and future of empirical legal scholarship: judicial decision making and the new empiricism. University of Illinois Law Review. nº 4. vol. 2002. p. 820.

[7] 5 U.S. 137 (1803).

[8] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

[9] FRIEDMAN, Barry. The Politics of Judicial Review. 84 Texas Law Review, 2005. p. 267.

[10] Sobre a interpretação constitucional, ver, por todos, PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar. 2006.

[11] As referências aqui são muitas. Algumas representativas são: DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge, Mass.: London: Harvard University Press, 1985; DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge, Mass.: London: Harvard University Press, 1996; TRIBE, Laurence H. & DORF, Michael C. On reading the Constitution. Cambridge, Mass.; London: Harvard University Press, 1991;

[12] As referências aqui também são muitas. Algumas representativas são: NETO, Cláudio Pereira de Souza. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge, Mass.; London: Harvard University Press, 1980.

[13] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Op. cit., p. 93. “Em suma: na busca do equilíbrio entre constitucionalismo e democracia, os substantivistas dão ênfase aos princípios de justiça (i.e., aos direitos fundamentais) e os procedimentalistas, ao princípio majoritário. Deve-se reconhecer, no entanto, a existência de uma larga zona de interseção entre as duas concepções, mais expressiva do que suas diferenças.”

[14] ELSTER, Jon. Ulysses and the sirens – studies in rationality and irracionality. Great Britain: Cambridge University Press, 1979.

[15] BAUM, Lawrence. Judges and their audiences: A perspective on Judicial Behavior. New Jersey: Princeton University Press, 2006. pp. 9/10. Baum faz a menção ao personagem do famoso seriado americano Star Trek, que seria metade humano e metade alienígena. A sua metade alienígena seria responsável pela capacidade de Spock de racionalizar toda e qualquer decisão. O autor faz essa analogia para demonstrar que as teorias normativas exigem que os juízes sejam tão racionais quanto Spock.

[16] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In: SARMENTO, Daniel. Filosofia e teoria Constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[17] Os dois trabalhos referência do tema na doutrina pátria são: BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: A quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2012. e MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. Tese apresentada à Universidade de São Paulo para a obtenção do Título de Doutor. São Paulo, 2008.

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