Corpos objetificados

Precisamos resistir contra a expansão continuada do poder punitivo

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2 de dezembro de 2014, 5h03

A frase do procurador da República, Manoel Pastana, causou justificada perplexidade: “o passarinho pra cantar precisa estar preso”. Se por um lado o protagonismo do juiz já vinha chamando atenção, como observaram Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa (veja aqui), o que dizer dessa inusitada declaração?

Por mais anedótica que a frase possa soar, o que causa desconforto é o fato dela ter sido proferida no contexto do que aparenta ser um novo fundamento para a prisão preventiva. Pastana argumenta que o expediente conforma uma “interpretação inovadora” do artigo 312 do Código de Processo Penal, que autorizaria uma extensão dos limites do que pode significar a expressão “para conveniência da instrução criminal”, ou seja, a sujeição dos corpos como meio para extração da verdade e abertura de espaços de negociação visando uma eventual confissão/delação.

Diante desse contexto, estaria “justificada” a prisão para forçar o passarinho a “cantar” — em verso e prosa — como foi cometido o delito, em um “negócio” que o Estado faz com o criminoso. Visivelmente trata-se de modalidade de prisão-guerra, utilizada como tática de aniquilação do outro, típica do dilema do prisioneiro, como discutido por Alexandre Morais da Rosa.[1] A delação premiada e suas implicações já foram acertadamente criticadas em outra oportunidade, por Morais da Rosa e Lopes Jr. São enormes as restrições ao instituto, que estão assentadas em razões políticas, jurídicas e epistemológicas (veja aqui).

Nesse sentido, engana-se quem supõe que o processo não possa ser interpretado através da metáfora do jogo: para Foucault, o interrogatório está muito próximo dos antigos desafios germânicos. Ele se liga às ordálias, aos duelos judiciais, aos julgamentos divinos, pois o juiz deve submeter o acusado, deve triunfar sobre ele: no suplício do interrogatório objetiva-se obter um “[…] indício, o mais grave de todos — a confissão do culpado; mas é também a batalha, é a vitória do adversário sobre o outro que ‘produz’ ritualmente a verdade”.[2] A paridade de armas não é medieval. O que é medieval é a sujeição arbitrária do outro, seja através de violência física ou simbólica.

Precisamos perceber que estamos rapidamente naturalizando as ruínas na paisagem e admitindo que o interrogatório pode conformar um jogo no qual o inquisidor deve triunfar sobre o inimigo, tido como objeto do conhecimento. Por mais que possam existir resistências (a meu ver, injustificadas) quanto à proibição de interferência do juiz na gestão da prova (Coutinho), precisamos ter uma noção mínima dos lugares e da necessidade de proibição da proliferação irrestrita de espaços potestativos de subjetividade que confundem o Direito com a moral.  Não se trata aqui de crítica em particular ao procurador ou ao juiz em questão, mas de incisiva discordância quanto aos pré-juízos que “autorizam” tal interpretação. Como fica o direito ao silêncio se o interrogatório deixa de ser oportunidade de fala e se transforma em meio coercitivo de extração da verdade, caracterizando flagrante deslealdade processual?[3] Não causa ou deveria causar preocupação quem irá julgar o futuro processo da lava-jato? Não é grande a possibilidade de que se transforme em mero golpe de cena, como discutido por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa (veja aqui)?

O recurso ao shock and awe na investigação preliminar remete às estratégias sistematizadas por Nicolau Eymerich no Manual dos Inquisidores, que são típicas do período de apogeu do inquisitorialismo, hoje arrefecido, mas sempre disposto a retornar a níveis de maior intensidade: como observou Cordero, no auge do esplendor inquisitório o processo tornou-se assunto terapêutico; a pena era considerada um remédio; querendo ou não, o imputado era coagido a cooperar. [4] A ferramenta inquisitorial desenvolveu um teorema: culpado ou não, o imputado detém a verdade histórica; cada questão será seguramente resolvida, bastando que o inquisidor entre em sua cabeça.[5] Não havia um diálogo formalmente regulado: o sistema era voltado para um animal que confessava.[6] A instrução ocorria no que Cordero chamou de ambiente inquisitório: o investigado é um animal que confessa, ou pelo menos deve sê-lo; como a efusão suicida é normalmente repugnante, deve ser estimulada.  Os investigadores manipulam almas, fazendo com que o acusado logo se torne irreconhecível em relação ao que era fora do ambiente inquisitório, o que exige uma sofisticada tecnologia: lugares fechados e um tempo cíclico, sujeito a horários indefinidos, típicos da arte inquisitória, que emprega um trabalho profundo na mente do acusado, alternado momentos de aspereza e doçura.[7] Trata-se de verdadeira clausura instrutória, para arrancar a verdade.[8]

Como arte dirigida à obtenção da confissão, o processo inquisitório necessita de tempo para manipular o acusado; expediente instrutório, essa custódia é um instrumento de ofício: em ambiente normal, o acusado não confessaria. [9] As características do sistema conformavam uma objetificação de corpos: para o inquisidor, era necessário dispor do corpo do herege, para que fosse esquadrinhado, decomposto analiticamente e recomposto como objeto de um saber possível, de acordo com a conformação dogmática de um conjunto de verdades e procedimentos preestabelecidos. Tudo isso é típico de uma estrutura processual penal movida por insaciável ambição de verdade, como discuti em minha tese de doutorado, publicada pela editora Atlas com o título de “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial”.[10]  

Gostaria que isso tudo fizesse parte do passado e pudéssemos deixar de lado a Inquisição. Mas o fato é que não há anacronismo aqui: existe uma continuidade entre os postulados da epistemologia inquisitória e a estrutura de pensamento que autoriza a continuidade de um processo penal do inimigo em pleno contexto contemporâneo, em nome de uma sacralizada busca da verdade.[11]  

Estamos trilhando caminhos perigosos e nos distanciando ainda mais da consolidação de uma estrutura ritualizada de contenção do poder punitivo, condizente com nosso cenário democrático-constitucional. Penso que se iludem aqueles que vibram com a deformação das regras do jogo em nome de uma equivocada ampliação do leque de persecução penal. As consequências que essas premissas podem trazer para os protagonistas das obras toscas da criminalidade, ou seja, dos sujeitos em situação de vulnerabilidade social são inimagináveis: uma caixa de pandora está sendo aberta e os mais pobres acabarão pagando a conta, ainda que a “interpretação inovadora” tenha surgido sob o pretexto de investigação de crimes complexos como a operação "lava jato". Afinal, eles simplesmente não terão o que negociar: a figura da delação premiada será mero pote de ouro no fim do arco-íris, completamente inalcançável.  

Se neste ano já tivemos prisões cautelares embasadas no que ativistas políticos poderiam potencialmente fazer ou que se acreditava que fariam, agora temos a aparente ressurreição das prisões para averiguações/declarações, como apontou Aury Lopes Jr. O resquício autoritário ainda domina o imaginário jurídico contemporâneo de forma assombrosa. Quem sabe talvez seja necessário novamente repensar o papel da defesa, como foi feito no século XIII? As engrenagens parecem se movimentar no sentido de que a sua função deve consistir em apressar a confissão e facilitar a delação. Será esse o papel essencial ao bom funcionamento da Justiça que a advocacia será chamada a desempenhar dentro dos marcos constitucionais do devido processo legal?

Não há como negar que tudo isso soa assustadoramente familiar.  A própria concepção de defesa de Eymerich desvela a visível conexão: dar o direito de defesa ao réu é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença, o que por sinal demonstra a que interesses serve a lógica da celeridade processual, já em sua gênese. E isso não faz parte de um passado que insistimos em ressuscitar: continua a prosperar uma problemática convergência de postulados inquisitoriais com uma infundada teoria geral do processo, que sonega ao processo penal categorias condizentes com a sua complexidade inerente, como disse Jacinto Coutinho.[12]

Se isso já é assustador, o que dizer do comentário de Francisco De La Peña (que ampliou o Directorum Inquisitorum)? Para ele, Eymerich tem absoluta razão quando fala da total inutilidade da defesa: o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido.[13] Será esse o caminho a seguir?

Peço que não me interpretem equivocadamente. Não se trata aqui de defesa de quem quer que seja em particular e muito menos da hemorragia que parece ter tomado conta da Petrobras. Estou estarrecido e indignado como todos os cidadãos brasileiros. Penso que a questão passa pela ampliação dos mecanismos de controle e transparência, mais do que em qualquer crença metafísica na suposta capacidade do Direito Penal para proteger bens jurídicos, ainda que alguns valores estejam sendo reavidos. Mas não podemos admitir que as regras do jogo sejam deformadas sob qualquer pretexto. A lógica inquisitória faz com que a noção de sujeito processual perca sentido. Corpos se tornam objeto de transação e aniquilação. Inevitavelmente com alguns se negocia e com outros não. Se vamos instituir o engaiolamento como regra, restarão poucos passarinhos voando neste mundo, se é que restará algum. Precisamos resistir contra a expansão continuada do poder punitivo. Não se brinca com direitos fundamentais e garantias. A democracia — mesmo uma tão imperfeita como a nossa — raramente morre de forma abrupta. Morre lentamente, passo a passo. E reconquistá-la é tarefa árdua e que leva décadas, ainda mais em um país com uma tradição tão autoritária como o nosso.[14] E não. Não foi um passarinho que me contou isso. A história é que mostra. Não se flerta com a barbárie impunemente e eventualmente todos acabam pagando o preço.


[1] “A partir da teoria dos jogos [Dilema do Prisioneiro] podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento (simbólica e real, dadas as condições em que são executadas). A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra com tática de aniquilação, uma vez que os movimentos da defesa estarão vinculados à soltura. Clausewitz deixou herdeiros no processo penal ao apontar que a pressão pela liberdade ou por finalizar o processo ajuda na estratégia, uma vez que atua no centro de gravidade: a liberdade. Além disso, a facilidade probatória (…) e a redução da condição do acusado a objeto (subjugação psicológica do acusado, defensor, familiares, etc.) podem ser úteis à acusação, como já apontava o Manual dos Inquisidores.” MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p.157. Ver também p.168: "O uso pela polícia e pelo jogador acusador possuem o condão de desestabilizar o investigado e, quem sabe, com isso, promover confissões, delações, etc."

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008. pp.36-37.

[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014. P.655.

[4] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. p.46.

[5] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. p.48.

[6] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. p.48.

[7] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal: Tomo I. Bogotá: Temis, 2000. p.393.

[8] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal: Tomo I. Bogotá: Temis, 2000. p.394.

[9] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal: Tomo I. Bogotá: Temis, 2000. p.392.

[10] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

[11] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

[12]  Como apontou Jacinto Coutinho, “[…] a teoria geral do processo civil, a cavalo na teoria geral do processo, penetra no nosso processo penal e, ao invés de dar-lhe uma teoria geral, o reduz a um primo pobre, uma parcela, uma fatia da teoria geral. Em suma, teoria geral do processo é engodo; teoria geral é a do processo civil e, a partir dela, as demais”. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A Lide e o Conteúdo do Processo Penal. 3ª Edição. Curitiba: Juruá, 1998. pp.122-123.

[13] EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. pp.138-139.

[14] KHALED JR, Salah H. Ordem e progresso: a invenção do Brasil e a gênese do autoritarismo nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. 

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