Contas à Vista

Refis é uma transação tributária e não uma renúncia fiscal

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

2 de dezembro de 2014, 9h15

Spacca
Uma das bases da política econômica dos governos brasileiros (federal, estaduais e municipais) nos últimos anos tem sido calcada nas renúncias fiscais, que se caracterizam em redução da carga tributária através de diversos mecanismos como crédito presumido, isenção e redução da base de cálculo, muitas vezes concedidos a empresas específicas, outras vezes a setores inteiros que atuam em determinado seguimento econômico.

Será que o Refis, e outros programas de parcelamento incentivado que existem em nossa Federação, se caracterizam como um mecanismo de renúncia fiscal? E qual a importância teórica e pratica desta distinção?

Essa foi a tônica da palestra que fiz no dia 14 de novembro deste ano, quando recebi das mãos de Ives Gandra Martins o prêmio de Tributarista de Destaque no biênio 2013/2014 concedido pela Associação Paulista de Estudos Tributários (Apet), entidade presidida por Marcelo Magalhães Peixoto, o qual me foi atribuído em razão da generosidade de seus componentes. Em breve síntese, o que expus naquela ocasião foram as ideias que abaixo apresento.

No âmbito federal já foram apresentados vários programas de parcelamento incentivado, que receberam no meio tributário o nome genérico de Refis, embora tenham um título diferente em cada ocasião. O primeiro foi intitulado propriamente de Programa de Recuperação Fiscal – Refis (Lei 9.964/00); o segundo foi denominado de Parcelamento Especial – Paes (Lei 10.684/03); o terceiro recebeu o nome de Parcelamento Excepcional – Paex (MP 303/06); o quarto foi o “Refis da Crise” (Lei 11.941/09), que foi reaberto (5º) sob a alcunha de “Refis da Copa” (Lei 12.073/14), novamente reaberto (6º) com o apelido de “Refis das Eleições” (Lei 12.996, de 18 de junho de 2014) e mais uma vez reaberto (7º) até meados de dezembro (Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014).

Como se vê, foram sete diferentes Refis federais com regras e características diferentes em cada versão. Não vou torturar os leitores com detalhes de cada qual, mas todos tiveram por base uma espécie de oferta de redução de valores pretensamente devidos ao Fisco Federal (valor do principal, juros, multas e encargos) sob a condição de que o contribuinte fizesse uma renúncia de direitos à discussão de teses jurídicas perante o Poder Judiciário, seja referente a processos já em curso, ou que poderiam vir a ser discutidos em juízo. Uma vez renunciado este direito de discussão perante o Poder Judiciário, o Fisco Federal aceitaria que seu crédito tributário fosse pago pelos contribuintes com as reduções ofertadas e em certa quantidade de parcelas, variáveis de acordo com cada qual dos Refis propostos. Os diversos Refis de estados e municípios seguem o mesmo sistema acima apontado.

Não há dúvida que esse conjunto de Refis se insere na política econômica do governo federal de desonerações incentivadas, visando reduzir o estoque de seus créditos e obter mais receita para fazer frente ao superávit primário que se compromete a realizar, inserido como meta fiscal estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) anual. Porém, juridicamente, trata-se de uma singela renúncia fiscal? Quais as normas aplicáveis a estes Refis? Este é o ponto a ser analisado.

Como é sabido, os créditos fiscais são regidos primordialmente pelo Código Tributário Nacional (CTN), Lei 5.172/66, que está às vésperas de completar 50 anos sem ter nenhum de seus artigos declarado inconstitucional — o que é um marco em nosso ordenamento jurídico — e que possui status de lei complementar tributária reconhecido pelo STF, a teor do que estabelece o artigo 146 da Constituição Federal.

O CTN regula a forma pela qual os créditos tributários são constituídos (artigos 142 a 150), como podem ser suspensos ( artigos 151 a 155-A), excluídos (artigos 175 a 182) e extintos (artigos 156 a 174). Deixemos de lado as normas referentes à constituição do crédito tributário, pois irrelevantes para fins da presente análise. Onde enquadrar os Refis? Trata-se de uma espécie de suspensão, de exclusão ou de extinção?

Dentre as hipóteses de suspensão temos o parcelamento (artigo 151, VI, CTN), que inegavelmente encontra-se presente nos diversos Refis. Mas será apenas isso? Entendo que não. Os diversos Refis acima apontados não se caracterizam como um singelo parcelamento, pois não se trata apenas disso. O contribuinte não comparece ao Fisco e adere a um parcelamento caracterizado como um fracionamento do pagamento de uma dívida. É mais que isso. Nos Refis o Fisco abre mão de parte da receita que alega ter direito e o contribuinte renuncia ao direito de discutir judicialmente o que entende irregular, visando compor a lide. Existe um parcelamento ínsito ao sistema, mas não é apenas um parcelamento. Logo, não se pode enquadrar os Refis como uma singela suspensão do crédito tributário, sendo algo mais que isso. Portanto, devemos continuar a busca do exato perfil jurídico desse instituto.

Dentre as modalidades de exclusão do crédito tributário está a anistia (artigo 180, CTN), entendida como a renúncia fiscal às infrações cometidas anteriormente à lei que a instituiu, e que alcança as penalidades tributárias, notadamente as diversas espécies de multas. Certamente existe anistia tributária dentro dos Refis, porém não é apenas isso, pois há também renúncia fiscal dos valores cobrados de principal, ou seja, do valor do tributo pretensamente devido pelo contribuinte. Desta forma, a caracterização do Refis como sendo apenas uma anistia, uma exclusão do crédito tributário pela ótica do CTN também é insuficiente.

Passemos às diversas espécies de extinção do crédito tributário. A rigor, a forma geral de extinção dos créditos se dá pelo pagamento, regulado nos artigos 157 a 169, o que inclui as normas referentes às situações de pagamento indevido ensejando repetição de indébito. Dentre as hipóteses restantes, e que são pertinentes à presente exposição, sobressai a remissão (artigo 172, CTN), que diz respeito à extinção parcial ou integral do crédito tributário, o que abrange o principal da dívida, o que, sem dúvida, também está inserido no contexto dos diversos Refis, mas que, como acima referido, não é suficiente para explicar todo o complexo contexto normativo envolvido.

Entendo que resta apenas uma hipótese em todo o sistema normativo tributário que permite enquadrar os diversos Refis, aqui incluídos os estaduais e municipais, que é a da extinção do crédito tributário pela transação, fórmula prevista pelo artigo 171 do CTN, que, pedindo paciência ao leitor, abaixo transcrevo e analiso:

Artigo 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário.

Observe-se que a transação é uma mescla de vários dos institutos acima mencionados, o que se caracteriza pela expressão “concessões mútuas” a serem firmadas entre os “sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária”, cujo objetivo é a “determinação do litígio” visando a “extinção do crédito tributário”. Claro, sob a égide da reserva legal, o que é pressuposto e está contemplado nos diversos Refis, consoante as leis acima mencionadas.

Assim, nesse plexo de relações tributárias, temos anistia, remissão, parcelamento e pagamento, dentre outros institutos isolados previstos no CTN, a depender do exato formato do programa de parcelamento incentivado. Portanto, trata-se de um programa que mescla extinção, suspensão e exclusão do crédito tributário em um só sistema, cuja única possibilidade teórica de enquadramento normativo no CTN é através do instituto da transação tributária.

Claro que o escopo final é, da parte do contribuinte, pagar menos, e, para tanto, renuncia ao exercício de direitos que entende possuir contra aquela exigência fiscal; da parte do Estado é receber valores incertos, de forma mais rápida e segura, renunciando a direitos que entende possuir contra o contribuinte. O Estado oferta esta possibilidade através de Lei e o contribuinte a aceita, convalidando a transação.

Existe, por detrás de toda essa operação, diversos valores e princípios constitucionais tais como a boa fé específica entre as partes envolvidas, a confiança recíproca, a busca por segurança jurídica, o conceito de ato jurídico perfeito e, acima de tudo, a lógica do sistema capitalista, que gera a necessidade de relações jurídicas estáveis, pois para as empresas é melhor a certeza de uma dívida que a dúvida de uma relação jurídica a ser analisada em prazo incerto e com resultados imprevisíveis pelo Poder Judiciário.

O STJ já reconheceu serem os Refis uma transação em pelo menos dois julgados (Relator Ministro Castro Meira, REsp. 739.037/RS; e Relatora Ministra Eliana Calmon, REsp 499.090/SC).

A esta altura da exposição, entendo haver certa tranquilidade em afirmar, no âmbito teórico, serem os diversos Refis uma espécie jurídica de transação tributária e não uma fórmula singela de renúncia fiscal. Contudo, quais as implicações práticas desse enquadramento?

Vejo algumas que devem ser consideradas, dentre outras.

A renúncia ao direito de discutir judicialmente as teses jurídicas é relativa, e não definitiva. Havendo o descumprimento do parcelamento, os contribuintes que renunciaram à discussão judicial dos seus débitos fiscais podem propor ou reativar os debates judiciais acerca das matérias envolvidas. Não se trata de uma renúncia definitiva, mas condicional nos termos da transação efetuada. Isso contradiz o argumento exposto em diversos pronunciamentos dos Fiscos (nacional, estaduais e municipais, além dos autárquicos) a respeito do tema, que considera a renúncia como algo definitivo, que não pode ser retomada nem mesmo em caso de inadimplemento da obrigação de pagar. Observe-se que essa posição do Fisco estaria correta se os Refis fossem considerados como singelos parcelamentos, e não como uma transação. O Poder Judiciário deve estar atento a esta consequência jurídica importante, decorrente da classificação acima mencionada.

Este inadimplemento pode ocorrer pelo contribuinte, em razão de vários aspectos, dentre eles o da modificação do contexto econômico em que foram realizadas as adesões à transação do Refis. Se até mesmo as dívidas de estados e municípios para com a União tiveram seus critérios de cálculo revistos de forma retroativa em face da mudança das condições macroeconômicas existentes, conforme aprovado pela Lei Complementar 148, de 25 de novembro de 2014, o que não dizer em relação em aos contribuintes em um cenário semelhante? A crise bate a porta das empresas e dos setores econômicos de diversas formas, e esta modificação de critérios econômicos é algo que deve ser levado em conta na análise dos casos, pois, em nossos sistema econômico, o Estado sobrevive da arrecadação de tributos que decorrem do bom desempenho das empresas, e não de sua falência ou sufocamento. Um equilíbrio na relação entre arrecadação fiscal e nível da atividade econômica é sempre necessário. Se as empresas não forem lucrativas não haverá tributos a sustentar o Estado.

O inadimplemento da transação fiscal também pode ocorrer pelo Fisco, em face de regulamentação de maneira desconforme com a Lei, conforme já verificado em algumas situações, sendo a mais emblemática a cobrança de juros sobre a multa de ofício, que penalizou fortemente quem tinha valores depositados como forma de suspensão do crédito tributário em face de quem pagou a vista seus débitos para com o Fisco, o que não estava previsto na Lei 11.941/09, do “Refis da Crise”. Fiquemos apenas neste exemplo, dentre outros possíveis.

O fato de enquadrar juridicamente os Refis como uma transação tributária e não como uma singela renúncia fiscal tem como consequência os aspectos acima referidos, mas outros lhe são ínsitos, tais como o direito de não pagar os tributos inconstitucionais que foram parcelados, quando a declaração de inconstitucionalidade vier a ser proferida posteriormente à adesão ao programa de parcelamento incentivado. Afinal, o princípio da Reserva Legal Tributária é um limite àquilo que o Estado pode receber, sendo-lhe vedado receber além do que a norma permite. Assim, a devolução do que tiver sido pago se impõe, mesmo tendo havido renúncia ao direito de discutir aquela incidência no seio de um Refis.

Por fim, vale destacar que nem todo parcelamento se caracteriza como uma transação tributária. Existem parcelamentos que permanecem sendo tipicamente uma forma de suspensão do crédito tributário, quais sejam, aqueles em que o Fisco apenas permite o pagamento parcelado, sem qualquer renúncia de direitos recíprocos ou condições, e que se enquadra no artigo 151, VI, do CTN. Todavia, havendo por lei a exigência de “concessões mútuas” visando a extinção do crédito tributário, estaremos diante de uma transação tributária, e não de uma suspensão do crédito tributário.

Esta análise parte de um posicionamento mais focado no realismo jurídico, fruto de uma concepção sistêmica do direito financeiro e tributário, do que em uma singela análise econômica ou em uma análise formalista do Direito. Penso que este seja um bom caminho a seguir.

Autores

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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