Evolução das normas

Por que sustento prisão preventiva para corroborar delação premiada

Autor

  • Manoel Pastana

    é procurador regional da República no Rio Grande do Sul e autor do livro autobiográfico De Faxineiro a Procurador da República.

1 de dezembro de 2014, 12h43

Causou muita discussão o fato de ter, como membro do Ministério Público Federal, ofertado parecer em Habeas Corpus em processos da operação lava jato, perante o Tribunal Regional da 4ª Região, sustentando a prisão preventiva como instrumento a corroborar com a delação premiada.

Sei que é muito difícil minha tese ser aceita. Tão difícil quanto aceitar que alguém condenado por corrupção a sete anos e 11 meses de prisão seja preso e cumpra efetivamente a pena de segregação. Tão difícil quanto se admitir que um “garoto” de 17 anos de idade, que sequestra, estupra, mata e ainda recebe o dinheiro do resgate, tem consciência de seus atos e por isso deve ser responsabilizado criminalmente. Assinalo que o problema não é do Judiciário, mas da legislação e dos cidadãos que não exigem mudança.

De outro giro, a tese de quem quer utilizar a minha tese como “tábua de salvação” para tirar os clientes da prisão não vai vingar. A uma, porque nenhuma das prisões da lava jato foi decretada com base na minha tese. A duas, usei-a no parecer tão somente como argumentação secundária. A três, é apenas uma tese, não forjei provas nem alterei fatos, limitei-me a sustentá-la como fundamentação secundária em manifestação processual; e, ainda que fosse aceita pelo tribunal, não geraria nulidade, exceto se fosse a única fundamentação a sustentar a manutenção da prisão, o que não é.

Portanto, o estardalhaço feito por alguns defensores não vai adiantar, exceto a constatação de que não é só na brecha da lei que se busca a salvação de quem a descumpre. Aliás, em se tratando de defender a impunidade, tudo é válido, até o que não vale.

Quanto à sustentação da minha tese, farei daqui a pouco, pois não corro do debate, antes, como fui acusado de agir “sem pudor” por defendê-la, resumirei minha trajetória no Direito, que inclusive resultou no livro autobiográfico De Faxineiro a Procurador da República, para o leitor analisar se eu agi sem pudor.

Oriundo da Ilha do Marajó (PA), concluí o segundo grau aos 24 anos de idade em ensino supletivo público em Brasília. Ingressei em uma modesta faculdade particular aos 25 anos. Com a cansativa jornada de trabalhar durante o dia e estudar à noite, concluí o curso de Direito, em 1992, aos 30 anos.

Fui o primeiro da família a cursar uma faculdade e não queria que o meu diploma ficasse sem uso. Assim, um mês após a formatura, fiz concurso para oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e passei em primeiro lugar. Em setembro de 1992, tomei posse no Superior Tribunal de Justiça, tornei-me o primeiro oficial de Justiça daquele Tribunal Superior, nomeado por concurso público.

Fiz amizades com assessores e aprendi com eles muitas coisas na prática (prefiro a prática à teoria), inclusive, fui convidado por um ministro para assessorá-lo, mas preferi seguir carreira fora do tribunal. Em 1993, fiz concurso para procurador federal do INSS. O certame despertou o interesse de muita gente porque, além da remuneração próxima ao topo da pirâmide salarial do serviço público, as férias eram de 60 dias e a advocacia era permitida (hoje não é mais). Concorri em Brasília, onde havia 18 vagas, milhares de candidatos participaram, apenas 11 lograram êxito em todas as etapas, minha classificação foi o primeiro lugar.

Apesar de o meu contato com o Direito ter ocorrido somente quando ingressei na faculdade, apaixonei-me pela área. Antes eu gostava de ciências exatas, adorava cálculos. Tinha facilidade para calcular e dificuldade para escrever. Na escola, quando eu fazia uma redação de trinta linhas, esticava as letras para gastar espaço, pois costumava faltar ideias e sobrar papel. Outra dificuldade era falar em público.

Como sou pragmático e sabia que no exercício da profissão na área jurídica teria que escrever e falar em público, fiz alguns cursos de redação e de oratória. Não me tornei bom escritor, tampouco orador de destaque, mas aprendi o básico para me comunicar, tanto na escrita como na fala. Isso aumentou o meu interesse pelo Direito e me proporcionou bons resultados nos concursos públicos, tanto que, além da aprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, passei em seis concursos da área jurídica, sendo três em primeiro lugar.

Porém, no exercício do cargo de procurador do INSS, quando comecei a atuar como advogado público e a patrocinar minhas primeiras causas na advocacia privada (na época era permitida), percebi que eu era um profissional pela metade. Explico. O médico deve tentar curar o paciente ainda que esteja ferido por causa de uma bomba detonada pelo próprio enfermo, a qual matara milhares de pessoas. O mesmo se diga do advogado. Este deve defender o acusado, ainda que ele tenha sido o autor do atentado, referido no exemplo. Em outras palavras, é preciso ser profissional.

Ocorre que eu não consegui me adequar a esse profissionalismo, por isso, não me sentia bem, tendo que defender o INSS em causas nas quais entendia que o segurado tinha razão. Sentia-me mal ser obrigado a fazer defesa que ia contra o meu entendimento e a minha consciência. Na advocacia privada, certa vez fui procurado por um cliente que me ofereceu boa quantia (o equivalente a uns dois anos de salário que recebia como procurador do INSS) para defender-lhe em um júri.

Aceitei a causa, uma vez que, pelo que me foi narrado, o caso era típico de legítima defesa. Como procuro conhecer profundamente os fatos, fiz investigação por conta própria, para colher mais elementos e defender o cliente da melhor forma possível, pois não gosto de perder nem no par ou ímpar. Contudo, após a investigação, desisti de fazer a defesa. A desistência não foi por receio de perder, pois tinha absoluta convicção de que a ganharia a causa. Desisti porque descobri que o cliente, na verdade, provocou a legítima defesa (ele induziu a vítima a fazê-lo ficar na situação de legítima defesa e a matou).

Eu precisava do dinheiro, porquanto na época estava construindo uma casa para minha mãe, mas a minha consciência não me permitiu fazer aquela defesa. Não disse nada sobre o motivo da desistência, só falei ao cliente que procurasse outro defensor, e não indiquei nenhum. A título de informação, ele foi absolvido por unanimidade.

Nesse sentido, sou profissional pela metade, pois embora sabendo que em toda causa deve haver um defensor (e eu gosto de defender), só consigo defender o lado que entendo que, na realidade, tem razão e não importa o lado, isto é, se é o da sociedade ou o do indivíduo. Desde fevereiro de 2004 atuo na segunda instância, como custos legis, perante o TRF-4. Inúmeras vezes me pronunciei a favor do acusado, algumas vezes, inclusive, provocando desconforto com colegas da primeira instância, como aconteceu em duas oportunidades distintas, envolvendo advogados presos. Ambos foram soltos, após o relator ter negado liminar em Habeas Corpus e depois se convencer com a minha manifestação de que as prisões eram indevidas.

Ingressei no MPF em junho de 1996, nos anos de atuação na linha de frente, isto é, na primeira instância, sempre procurei ser diligente para não acusar ninguém indevidamente. Esse cuidado me proporcionou excelente desempenho profissional. Para se ter uma ideia, por quatro anos atuei na área eleitoral, sabidamente área difícil de se obter êxito definitivo, pois quando se ganha aqui perde-se ali na frente. Das ações que promovi, perdi apenas uma, cuja votação terminou empatada (3X3), sendo que o acusado venceu com voto de minerva.

Das julgadas procedentes, os acusados recorreram ao TSE e ao STF e perderam todas. Inclusive, fui responsável pela ação que resultou na decretação de perda do mandato por corrupção de um parlamentar federal de importante partido, sendo que até então nenhum de seus parlamentares tinha sido acusado por corrupção. Ele foi o primeiro parlamentar federal do tal partido a perder o mandato. A propósito, quando a minha atuação atingia parlamentares de outros partidos, eu era elogiado, quando passou a atingir parlamentares de tal partido, pois meu alvo é o infrator, independente de que partido seja, tornei-me persona non grata por parte de uns, que gostariam de me ver atuando, em determinadas situações, no faz de conta, como se eu fosse manipulável.

Por causa disso, em meados de 2003, na época, com 22 anos de serviço público e passagem por diversos órgãos federais sem nunca ter respondido sequer a uma sindicância, minha vida virou de perna para o ar. Tive que me defender em sindicâncias, inquéritos e processos administrativos, ações penais e ações cíveis por danos etc. De 2003 até 2007 o que mais fiz foi me defender. Ganhei todas. Aliás, na acusação, quando atuava na linha de frente, meu índice de sucesso ficou em torno de 95% (percentual considerado até o trânsito em julgado, pois não me preocupava em ganhar só na primeira instância, fazia o trabalho bem feito para resistir as investidas contrárias em todas as instâncias); já me defendendo, o êxito foi de 100%.

Como se vê, minha performance é um pouco melhor na defesa do que na acusação. Aliás, mesmo quando atuava na acusação, na verdade, eu defendia a sociedade e quando defendemos a sociedade não podemos cometer injustiça. Por isso, na única vez em que acusei um inocente, assim que me convenci da sua inocência, imediatamente pedi sua absolvição, o que foi deferida.

Tenho 52 anos de idade, 33 anos de serviço público, sendo 18 anos no MPF, já vi e passei por muitas coisas, principalmente nos últimos 11 anos. Por não saber atuar “por faz de conta”, tampouco silenciar diante do absurdo, sou alvo de ira por parte de alguns e aplausos por parte de outros, que sabem do meu legítimo propósito. Por exemplo, no dia 7 de novembro de 2013, a ConJur publicou um artigo escrito por mim com o título Juiz honesto é investigado pelo Conselho Nacional de Justiça. Trata-se do juiz federal João Bosco Costa Soares, titular da 2ª Vara Federal de Macapá (AP). O CNJ instaurou processo administrativo disciplinar (PAD) contra ele, atendendo representação formulada por alguns procuradores da República.

Por conhecer os fatos, sobretudo o que está por trás dessa representação, não consegui ficar em silêncio diante da esdrúxula e injusta acusação e escrevi o mencionado artigo. O PAD deve ser julgado em breve. A instrução processual confirmou o que escrevi no artigo, pois não sou irresponsável de me intrometer em assunto delicado sem conhecimento de causa. Tenho plena convicção de que o juiz honesto e trabalhador será absolvido. A rigor, ele foi acusado por trabalhar demais (é só perguntar à sociedade carente do Amapá), ao contrário dos que o acusam, dos quais não conheço trabalho algum digno de menção.

Pronunciar-me em público contra representação de “colegas” (as aspas são porque os considero exceção, tanto que valorosos colegas prestaram depoimentos no PAD atestando a retidão do juiz) não é atitude confortável, mas não consigo me calar diante do absurdo. E vezes outra tenho que responder por isso, por exemplo, no último inquérito administrativo do qual figurei como “investigado” (faz dois anos), entre outras ridículas imputações, fui acusado de ter “prestado consultoria informal” a uma colega procuradora em estágio probatório, que foi exonerada. Entendi que a exoneração foi ilegal e injusta, por isso expus a minha opinião na rede eletrônica dos procuradores da República.

Essa colega foi alvo da ira de parte da cúpula do MPF. Como não concordo com absurdos nem sei ficar em silêncio em tais situações manifestei-me publicamente contra o ilegal e injusto ato. Por conta disso, passei mais de um ano respondendo a inquérito administrativo, e o contribuinte pagando passagens aéreas e diárias para os membros da comissão de inquérito viajarem de Norte a Sul, de um lado para outro, na tentativa de conseguir alguma coisa para justificar uma punição contra mim. Ao final, graças a Deus, venci mais uma. A título de informação, eu estava certo a respeito da procuradora, tanto que ela foi reintegrada judicialmente antes mesmo de ser publicada a portaria de exoneração, o que estava sendo providenciado às pressas.

Atualmente não respondo a nenhum procedimento e espero continuar assim, mas se tiver que responder por boa causa estou preparado. Só fico preocupado com o contribuinte, que tem de pagar passagens aéreas e diárias (e não são poucas) para membros das comissões “escolhidos a dedo” viajarem de um lado para outro, procurando alguma coisa contra mim, para justificar a nomeação deles na missão de sujar a minha ficha funcional que continua limpa como sempre, embora sem elogios, mesmo porque os elogios que me importam são os da minha consciência.

Ano que vem publicarei um livro, contando, entre outras coisas, o que está por trás da representação contra o referido juiz, assim como do caso da colega procuradora e do mensalão, principalmente. No caso do mensalão, contarei o que foi feito e o que não foi, bem como o que precisa ser feito. Assinalo que a realidade do mensalão é muito diferente do que se divulgou. Mostro no livro que a denúncia desse esquema criminoso foi um “faz de conta”, que acabou indo além do que se imaginou, mas que ficou muito aquém do que deveria.

A seguir, apresento a razão de sustentar a tese mencionada neste artigo, isto é, a prisão preventiva corroborando com a delação premiada. Enfatizo que se eu não tivesse convicção do envolvimento dos presos da lava jato no esquema criminoso, já teria me pronunciado pela liberdade deles. Por não compactuar com injustiça, não tenho medo de colocar à prova minha independência funcional. Se um dia tiver receio de agir de acordo com a minha consciência, saio imediatamente do MPF, pois não acho justo o contribuinte me custear para eu fingir que exerço meu mister.

Entre os requisitos da prisão preventiva, previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, está a “conveniência da instrução criminal”. E o que se entende por conveniência da instrução criminal? Somente hipóteses nas quais o investigado ou acusado está a destruir provas, a apagar vestígios, a intimidar testemunhas, isto é, aquelas clássicas hipóteses que aprendemos no banco da faculdade?

As normas e suas interpretações precisam evoluir. Os infratores da lei penal estão cada vez mais ousados e não medem esforços para alcançar seus objetivos ilícitos. Assim, faz-se necessário que as normas acompanhem a evolução da criminalidade e a hermenêutica também.

A delação premiada é uma inovação legislativa a ser implementada por negociação direta, na qual o delinquente, que traiu a sociedade, recebe benefício para trair seus comparsas. Isso é ético? É moral? Pode não ser, mas é legal.

Com efeito, tendo em vista que a delação premiada é um instituto previsto em diversos textos de leis, não vejo óbice, diante da prova da materialidade e de indícios da autoria, como é o caso da lava jato, de se invocar o artigo 312 do CPP, que tem como uma das hipóteses do encarceramento preventivo a conveniência da instrução criminal.

Qual a razão de se continuar interpretando o artigo 312 do CPP como se ainda estivéssemos na década de 1940? É preciso evoluir da jurássica interpretação para compatibilização com o moderno instituto da delação premiada, e não se diga que a hipótese fere o princípio da presunção de inocência, pois se assim o fosse, nenhuma prisão poderia ser decretada antes do trânsito em julgado da condenação.

Ressalte-se que nenhuma das prisões dessa operação foi decretada com base em tal tese. Ademais, a invoquei como argumento secundário, ao lado de outros argumentos que justificaram a decretação e manutenção da prisão. Nessa toada, ainda que o TRF-4 acolhesse tal tese e o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal entendesse como indevida, as prisões não cairiam, pois restaria fundamentação suficiente nos requisitos tradicionais do artigo 312, com base nos quais foram decretadas as prisões e negadas a tutela liminar.

Após esse longo texto, concluo: sou realista e não consigo trair minha consciência, isso é não ter pudor como fui acusado no bojo dessa polêmica?

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