Atribuições e funções

Brasil deve começar a discutir papel do advogado como gatekeeper

Autor

  • Taimi Haensel

    é advogada especialista em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais e mestre em Direito Comercial. Professora do LLM em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais do Insper.

25 de agosto de 2014, 12h46

Artigo produzido por especialistas do Insper. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

A doutrina jurídica estadunidense seguidamente aponta que o advogado de direito do mercado de valores mobiliários é um gatekeeper deste mercado. O que isso quer dizer e quais as implicações de se atribuir tal papel aos advogados?

Qualificar um determinado participante do mercado de valores imobiliários como gatekeeper possui diversas significações, que partem de uma metáfora em relação às atividades do porteiro, do zelador (em inglês, o gatekeeper).

Na doutrina norte-americana, Kraakman entende que os gatekeepers podem ser considerados como “terceiros que podem impedir a realização de condutas irregulares mediante a retirada de seu apoio.”[1] Para Coffee, os gatekeepers são “intermediários reputacionais que fornecem serviços de verificação e certificação para investidores, fazendo, essencialmente, o que investidores não podem fazer por si.”[2] A seu turno, Labby aceita ambas as explicações, encontrando no prestador de serviços classificado como gatekeeper ou a capacidade para inibir condutas irregulares ou a função de verificação e de certificação[3].

A doutrina brasileira, atenta aos estudos do regime jurídico norte-americano, também já vem empregando a expressão. Calabró, por exemplo, anota que os gatekeepers “São os intermediários que realizam os controles primários das operações realizadas pelos investidores.”[4]

Feitas as considerações acima sobre o significado da expressão, deve-se considerar os efeitos concretos desejados com a qualificação de um participante do mercado como gatekeeper. Em termos gerais, o que se espera do agente que assim for considerado é que ele desempenhe o serviço que originalmente se propõe a prestar no mercado de valores mobiliários, em razão de sua especialização técnica, e, concomitantemente, atue de forma prevenir a realização de ilícitos. Isto é possível porque tal prestador de serviço atua como intermediário, ou participa da estruturação do negócio, ou têm acesso a informações, dentre outras atribuições que lhe colocam em contato direto com as operações de mercado de valores mobiliários em que se busca prevenir a ocorrência de condutas ilícitas.

É no exercício de tais funções que os underwriters, os auditores independentes, as agências de rating, os analistas de valores mobiliários e os advogados[5] podem atuar como gatekeepers, segundo a doutrina norte-americana.

O advogado, em suas funções ordinárias em uma operação de mercado de capitais, atua como transaction engineer (engenheiro operacional, em tradução livre), conforme a lição de Coffee. Isto quer dizer que o objeto de seu trabalho é estruturação do negócio. Ainda, compete a ele a preparação dos documentos de divulgação de informações sobre o emissor e a emissão do valor mobiliário, bem como a due diligence das informações [6]. Para o autor, o papel dos advogados como gatekeepers ocorre no desempenho desta última atividade, com a elaboração de opinião legal endereçada ao underwriter, manifestando entendimento de que as informações foram divulgadas de maneira adequada[7].

Na realização de tal análise, o advogado teria a oportunidade de aconselhar ao emissor ou ao underwriter a adequação da oferta à lei ou de barrar a sua realização (seja terminando a prestação de serviços, seja não se manifestando quanto à regularidade do negócio na emissão de parecer).

As fraudes descobertas no caso da empresa Enron em 2001-2002 desencadearam uma reação do governo norte-americano no sentido de legislar a responsabilidade dos advogados de mercado de valores mobiliários. Se, previamente, o órgão de classe da profissão e o órgão regulador do referido mercado (a Securities and Exchange Comission – SEC) haviam se enfrentando quanto à existência e limites desta responsabilidade[8], o Artigo 307 da Lei Sarbanes-Oxley expressamente conferiu competência (e prazo) para a SEC regrar os padrões básicos referentes à atuação do advogado de mercado de valores mobiliários. Uma regra específica foi determinada pela própria lei. Trata-se do up-the-ladder reporting, o dever de “subir os degraus” para relatar eventuais ilícitos com que o advogado venha a se deparar. No primeiro momento, tal informação deverá ser prestada ao diretor jurídico ou presidente da companhia emissora; em caso de inação, deverá o advogado levar o caso ao audit committee do conselho de administração, a outro comitê independente do conselho de administração ou ao próprio conselho de administração. 

Em janeiro de 2003, a SEC editou a sua final rule regulamentando o Artigo 307, na qual estabeleceu as regras de conduta profissional a que os advogados atuantes no mercado de capitais estariam adstritos[9]. A minuta da regra propunha também um dever de notificação à SEC pelo advogado em caso de retirada da prestação de serviços ao emissor (denominado de noisy withdrawal), que não foi mantido na redação da norma em face dos debates suscitados[10]. Coffee relata que os esforços do órgão regulador no sentido de implementar a regra não foram continuados[11].

Mesmo qualificando o advogado como gatekeeper, os juristas norte-americanos não deixam de reconhecer certos limites à imposição da função a estes profissionais. Nesse sentido, Kraaman aponta restrições inerentes ao próprio objeto dos serviços prestados pelo profissional, que o capacita mais a controlar condutas irregulares antes que aconteçam do que a impedi-las[12]. Ainda, Laby destaca os deveres de lealdade e de zelo pelo cliente, devendo a atuação do advogado almejar o benefício de seu contratante[13].

Como visto em breves linhas acima, a doutrina e a regulação do direito estadunidense investigam e debatem a questão da atribuição de funções ao advogado como gatekeeper. O escopo vem sendo estabelecer um regime que trate, de forma adequada (considerando as características da profissão), dos deveres a serem observados pelos advogados de direito do mercado de valores mobiliários como gatekeepers, bem como de sua responsabilização em caso de inobservância de tais deveres.

Face a tais considerações, e considerando que tanto a doutrina[14] quanto a regulação[15] do direito do mercado de capitais brasileiro já se debruçam sobre o tema, investigando os efeitos da qualificação como gatekeeper em relação a diversos profissionais e instituições, eventuais discussões com enfoque específico no papel do advogado podem ser esperadas no direito pátrio, a exemplo do que já ocorre no direito comparado.


[1]     KRAAKMAN, Reinier H.. Gatekeepers – The Anatomy of a Third-Party Enforcement Strategy. Journal of Law, Economics and Organization, v. 2., n. 1, Spring 1986, p. 54, nota de rodapé 3.

[2]     COFFEE, JR., John C.. What went wrong: an initial inquiry into the causes of the 2008 financial crisis. Journal of Corporate Law Studies, v. 9, Apr. 2009, p. 1.

[3]     LABY, Arthur B. Differentiating Gatekeepers. Brooklyn Journal of Corporate, Financial& Commercial Law, v. 1, 2006. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=953948>. Acesso em: 04.11.2009. p. 123.

[4]     CALABRÓ, Luiz Felipe Amaral. Regulação e Autorregulação do Mercado de Bolsa – Teoria Palco-Plateia –, São Paulo, Almedina, 2011, p. 41.

[5]     Sobre os underwriters, os auditores independentes, os analistas de valores mobiliários e os advogados, vide LABY, Arthur B. Differentiating Gatekeepers. Brooklyn Journal of Corporate, Financial& Commercial Law, v. 1, 2006. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=953948>. Acesso em: 04.11.2009. Sobre os auditores independentes, as agências de rating, os analistas de valores mobiliários e os advogados, vide COFFEE, JR., John C., Gatekeepers: The Professions and Corporate Governance. Oxford, Oxford University Press, 2006. 389 p.

[6]     COFFEE, JR., John C., Gatekeepers: The Professions and Corporate Governance. Oxford, Oxford University Press, 2006. P. 192.

[7]     COFFEE JR., John C.. The Attorney as Gatekeeper: An Agenda for the SEC. Columbia Law Review. v. 103, 2003 p. 1302.

[8]     Vide COFFEE, JR., John C., Gatekeepers: (…), p. 199-207 para este histórico.

[9]     ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Securities and Exchange Comission. Final Rule: Implementation of Standards of Professional Conduct for Attorneys. Disponível em: <http://www.sec.gov/rules/final/33-8185.htm>. Acesso em 06.08.2014.

[10]    Idem.

[11]    COFFEE, JR., John C., Gatekeepers: (…), p. 220.

[12]    KRAAKMAN, Reinier H.. Corporate Liability Strategies and the Costs of Legal Controls. Yale Law Journal, 93, Apr. 1984. p. 894.

[13] LABY, Arthur B. Differentiating Gatekeepers. Brooklyn Journal of Corporate, Financial& Commercial Law, v. 1, 2006. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=953948>. Acesso em: 04.11.2009. p. 127-128.

[14]    A exemplo de TRINDADE, Marcelo. SANTOS, Aline de Menezes. Regulação e Auto-regulação no Brasil e a Crise Internacional. Espaço Jurídico BM&FBOVESPA, 2009, Disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/juridico/download/Artigo_MarceloTrindade.pdf>. Acesso em: 20.06.2012. p. 1-54 e de SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de. Agências de Classificação de Créditos e seu Papel de Gatekeepers. Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Marcelo Vieira von Adamek (Coord.). São Paulo, Malheiros, 2011, p. 373-387, além do estudo já indicado na nota de rodapé 4.

[15]    A exemplo das seguintes manifestações da Comissão de Valores Mobiliários: Edital de Audiência Pública nº 03/2010 (sobre os agentes autônomos de investimento); Relatório de Análise da Audiência Pública SDFM nº 16/11 (sobre as agências de rating) e Relatório de Análise da Audiência Pública SDM nº 01/2012 (sobre a alteração da Instrução CVM 301) . 

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    é advogada, especialista em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais e mestre em Direito Comercial. Professora do LLM em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais do Insper.

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