Constituição e Poder

Metáforas e metonímias inconscientes (des)constroem sentidos nas decisões

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

25 de agosto de 2014, 18h42

A decisão judicial é, antes de tudo, um ato complexo de produção de sentido de algo. O decidir juridicamente se desenvolve enquanto processo cognitivo que depende de inúmeros condicionantes, muitos dos quais não controláveis racionalmente. No entanto, a exigência de segurança jurídica impõe deveres doutrinários e constrangimentos normativos no intuito de tornar esse ato o menos discricionário possível.

Assim como toda boa receita necessita de um bom diagnóstico prévio, o primeiro grande desafio a ser enfrentado para superar essa problemática é a busca dos vetores de sentido discursivo que são determinantes no resultado final. Ao descrever adequadamente o fenômeno, aumentam-se as chances de uma prescrição adequada.

Nesse contexto, partindo da teoria do signo de Saussure e avançando na análise da linguística e sua importância para o direito, a coluna de hoje busca sintetizar algumas lições do querido mestre Jacinto Coutinho, que tem se dedicado ao estudo aprofundado da relação entre linguagem, psicanálise e decisão judicial em suas aulas no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, desnudando os processos ocultos de (des)construção dos sentidos, especialmente quando giros metafóricos ou metonímicos subvertem a possibilidade de um julgamento racional.

Eixos de combinação e de seleção na formação do sentido
A linguística sincrônica de Saussure se preocupa com o estudo da língua em estado isolado do tempo (corte transversal) como um sistema. Nele, as palavras ganham sentido em razão da função que desempenham na frase, quando relacionadas com os demais elementos do sistema linguístico. 

Isso significa que a produção de significado se dá inicialmente no âmbito interno da oração (analítica).  Por exemplo, dizer que “Getúlio Vargas foi um grande homem” não é o mesmo que dizer que “Getúlio Vargas foi um homem grande”, até porque a última frase seria facilmente desmentida em face da notória baixa estatura do ex-presidente.

Nesse caso, a simples troca de lugar da palavra “grande” gera uma alteração significativa do sentido da expressão. Essa relação ocorre em virtude da composição de palavras com funções diferentes — sujeito, verbo, predicado e suas adjetivações. Saussure denomina relações deste tipo de sintagmáticas, as quais se realizam no “eixo da combinação” e decorrem do caráter linear dos significantes, que não podem ser simultâneos e se formam na presença de dois ou mais termos, em que o sentido de um depende da posição do outro, que o precede ou o sucede[1], numa série efetiva[2].

A abordagem lógico-analítica do texto, contudo, é insuficiente para a aferição do sentido.  O texto demanda o contexto para fazer sentido. Na linguagem heideggeriana, diríamos que o logos apofântico é sustentado pelo logos hermenêutico, base material da compreensão no mundo vivido.

Como ainda não estamos avançando nas propostas da hermenêutica filosófica, por ora retomamos Saussure, que percebe a existência de outro eixo, o da seleção, de grande interesse para o estudo das funções do signo e também para a identificação das figuras de linguagem, sustentadas justamente pelo sentido oculto no contexto em que se fala.

No eixo da seleção se desenvolvem as relações associativas (também denominadas paradigmáticas) que ocorrem entre signos suscetíveis de figurarem no mesmo ponto, podendo variar ou não o sentido. O importante é que haja uma associação mental que pode ser de sinônimo, antônimo ou mesmo mera semelhança sonora ou escrita. Por isso, elas se dão na ausência ou substituição[3].

Essas relações podem ser visualizadas da seguinte maneira:

 

No eixo da combinação, há a junção de palavras com funções diferentes João+é+culpado (sujeito+verbo+predicado) que produzem sentido quando colocadas em conjunto, na presença simultânea de uma com a outra. No exemplo de Getúlio, citado anteriormente, fica claro como uma mudança nesse eixo também produz mudança no sentido.

Já no eixo da seleção, a troca da palavra “culpado” por “inocente” — que desempenham a mesma função na frase — revela uma operação de substituição que inverte completamente o resultado.

Giros metafóricos e metonímicos
Ao investigar as metáforas e metonímias a partir dos eixos da linguística sincrônica de Saussure e aplicá-las ao estudo das funções da linguagem, o linguista russo Roman Jakobson nota que a função poética promove ao menos duas rupturas na análise da estrutura convencional da língua: i) no plano da expressão, onde, em nome da sonoridade, ritmo e entoação, prefere-se a opacidade em detrimento da transparência e ii) no plano das associações de elementos da língua, uma vez que ela combina, no sintagma, elementos similares, fugindo da normalidade em prol da sonoridade.

Essas rupturas acontecem porque, na função poética, existe a possibilidade de projeção do princípio da equivalência (próprio do eixo da seleção, onde normalmente há a substituição de expressões com mesma função), sobre o eixo da combinação (sintagmático), fazendo com que a equivalência seja promovida a recurso constitutivo da sequência. Ou seja, de maneira mais clara: em casos como este, palavras com a mesma função são combinadas[4].

Um exemplo deixa claro esse recurso: a mensagem “Pesque o peixe” — “Pague o peixe”, torna-se simplesmente “Pesque e pague”, onde os elementos similares (pesque – pague) estão combinados sequencialmente. O mesmo recurso poético aparece na célebre frase atribuída a Júlio César: “Vim, Vi e Venci”. Normalmente, uma frase apenas composta de verbos não faz sentido algum.

Tais análises permitem a Jakobson confirmar que a linguagem possui uma estrutura bipolar onde, no desenvolvimento de um discurso, um tema pode levar a outro por similaridade ou por proximidade (contiguidade)[5]. Nesses casos, pode haver mudança no sentido constituído pelo significante convencionalmente posto por meio das duas principais figuras da linguagem: a metonímia e a metáfora[6].

As relações de contiguidade são marcas do processo metonímico que, segundo Jakobson, se realizam “como projeções da linha de um contexto habitual sobre a linha de substituição e seleção; um signo (garfo, por exemplo), que aparece ordinariamente ao mesmo tempo que outro signo (faca, por exemplo) pode ser utilizado no lugar desse signo”[7].  A metonímia também é chamada de sinédoque quando indica a substituição da parte pelo todo, ou vice-versa.

Na música Luz dos Olhos — de Nando Reis e Andréia Martins — encontramos farta utilização desses recursos. A frase “pus nos olhos vidros para poder melhor te enxergar” indica claramente uma metonímia/sinédoque, uma vez que a palavra “vidros” não está ali colocada em seu sentido comum, mas antes aparece combinada com outros elementos na oração que deixam claro se tratar de um substitutivo para “óculos”. É a combinação que permite essa construção de sentido.

Já a metáfora é caracterizada pelas relações de similaridade, nas quais um termo metafórico é substituído por outro[8], operação permitida em razão de algum elemento comum e oculto entre eles, que sustenta a possibilidade da troca de significantes. É o que ocorre, por exemplo, quando dizemos: “Parabéns por mais uma primavera!” referindo-se a “aniversário”. Essa troca só é possível porque algo oculto sustenta o sentido, talvez a ideia de recomeçar/ renovar a vida com um senso de juventude, frescor e esperança, próprios da primavera e da entrada em uma nova idade.

Transpondo essas lições para o campo da psicanálise e suas implicações no problema cognitivo da decisão judicial, compreende-se que, uma vez aceita a tese de Lacan de que o inconsciente é estruturado como linguagem[9] — ou seja, o inconsciente entendido como uma cadeia de significantes constituídos em outra lógica a partir de discursos, opiniões e desejos externos internalizados e organizados paralelamente à cadeia pré-compreensiva do Eu-sujeito consciente[10] — conclui-se que, por vezes, ele [inconsciente] faz irromper sentidos antecipados e expressões das quais não se tem controle, que substituem e tomam o lugar de signos pertinentes na cadeia linguística, gerando novas e diversas significações.

Isso é possível através de processos metonímicos e metafóricos que, aparentemente, se realizam nos moldes já percebidos por Jakobson, ou seja, a partir de novas combinações e/ou trocas de signos nos eixos estruturais da linguagem.

A metonímia se revela na incorporação discursiva do conceito freudiano de deslocamento, que leva ao direcionamento da carga emotiva reprimida para algo que lhe aparece numa relação de contiguidade. No exemplo trazido por Rosenfield, a aversão a um tio que usava bengalas pode ser deslocada para a própria bengala, já que ambos apareciam sempre combinados, justapostos[11].

Nessa operação, é o “recalque” (a barra entre significante e o significado), que faz com que “dentro de todas as possibilidades de sentidos das combinações da materialidade do significante, só permite produzir ‘um’ sentido[12], tornando  possível a compreensão de que, a metonímia, ao edificar relações contíguas e contextuais, é o mecanismo que doa o sentido permitido pelo recalque, ou seja, o sentido que conseguiu burlar esse filtro de significação[13].  

Já a substituição de significantes na metáfora é possível porque Lacan atribui a ela a incorporação do conceito freudiano de condensação, o qual, nas resumidas palavras de Rosenfield, “é o processo psíquico mediante o qual as similaridades são reunidas e enfatizadas, às custas das diferenças.”[14].

Decisão sem compreensão
A partir dessa constatação, é possível perceber porque é bastante comum a ocorrência desses giros linguísticos movidos pelo inconsciente, fazendo com que a antecipação de sentido nada tenha de racional. O exemplo clássico de substituição inconsciente metafórica é o da troca da expressão “meus pêsames” por “parabéns”, ao cumprimentar a viúva em razão da morte do marido que a maltratava — ou ainda, ao alterar o significante no signo sem alterar o conceito — isto é, a pessoa ouve o som “meus pêsames” mas o significa como “parabéns”.

Esses giros podem ocorrer também através da reorganização das palavras (ou de seu conteúdo) no eixo da contiguidade, através de um processo metonímico que promova novas formas de combinação de significantes.

Quando isso ocorre, pode-se afirmar que surge uma decisão a partir da não-compreensão, justamente porque é movido pelo inconsciente que trabalha com outra lógica, com uma racionalidade que foge das nossas possibilidades de entendimento. Nesses casos, como lembra Jacinto Coutinho, as metáforas e metonímias “esvaziam de sentido (ou conteúdo) preestabelecido qualquer palavra que ganhe um giro marcado pela força pulsional, logo, determinada pelo inconsciente”[15]. Uma vez tomada a decisão, o resto é justificação argumentativa.

No processo judicial, especialmente o penal, essa substituição pode ganhar ares dramáticos quando “João” deixa de ser inocente para ser culpado por meio de uma antecipação inadequada, motivada por uma aversão (à pessoa, à roupa, a seu modo de falar) inconsciente que desloca os sentidos: a defesa não é ouvida, toda a acusação é confirmada pelo filtro do desejo — especialmente quando se está diante de um justiceiro que quer preservar a legalidade violando a legalidade.

Imagine-se quantos giros podem ocorrer durante a narração de um crime pela testemunha, enquanto o juiz a ouve e atribui conteúdo às palavras a todo instante. O mesmo vale para o estudo dos fatos e da legislação aplicável.

Sem a percepção desses fenômenos, ainda é comum na práxis judicial a colocação de palavras com eminente caráter retórico (no lugar daquilo que se deveria compreender), utilizadas para justificar decisões judiciais que revelam, tão somente, as idiossincrasias do órgão judicante.

 


[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral.  25 ed. , trad.  Antonio Chelini et all. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 142-143.

[2] PIETROFORTE, Antonio Vicente. A língua como objeto da lingüística.  In: FIORIN, José Luiz (org). Introdução à lingüística: I. objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 88.

[3] Ibid., p. 89.

[4] JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. In: In: JAKOBSON, Roman.  Lingüística e comunicação.  19 ed. trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 118 e ss.

[5] JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: JAKOBSON, Roman.  Lingüística e comunicação…, p. 55 e ss.

[6] SOUZA LEITE, Márcio Peter de.  A negação da falta: cinco seminários sobre Lacan para analistas kleinianos.  Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992, p. 49.

[7] Id.

[8] JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia…, p. 61.

[9] LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20: mais ainda. 2 ed. trad. M.D. Magno. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 65-66.

[10] Cf. FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo.  Trad. Maria de Lourdes Sette Câmara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 28.

[11] ROSENFIELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. trad. Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 68.

[12] SOUZA LEITE, Márcio Peter. A negação…, p. 48.

[13] LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. Trad. Inês Oseki-Depré. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 242.

[14] ROSENFIELD, Michel. A identidade…,p. 61.

[15] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Dogmática crítica e limite lingüísticos da lei. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (orgs.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 225.

Autores

  • Brave

    é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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