Direito Comparado

Advogados, constituições e como são feitos julgamentos sem esperança

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

20 de agosto de 2014, 18h30

Spacca
Os regimes revolucionários e os ditatoriais podem se dividir entre os que eliminam os líderes depostos ou seus inimigos políticos por meio de procedimentos judiciais ou sem estes. Em comum aos que recorrem e aos que não recorrem ao Poder Judiciário, há a certeza de que suas vítimas já estão condenadas antes da formalização de suas execuções. Essa fórmula é excepcionada, evidentemente, por hipóteses como o exílio, o banimento, a deportação ou a anistia dos adversários políticos, seja para legitimar o julgamento de fachada, seja para atender a pressões estrangeiras.

O certo é que o julgamento em si é um obstáculo puramente retórico ao cair do cutelo sobre o pescoço dos vencidos ou dos inimigos políticos. Não há diferença em termos de coloração política ou de localização, de riqueza ou de pobreza, de civilização ou de barbárie, o efeito será inevitável.

Pode-se questionar se o resultado do julgamento ou da condenação a despeito de formalidades judiciárias seria o único adequado historicamente. Victor Hugo, em Os miseráveis, pela boca de um antigo membro da Convenção, que julgou o rei Luís XVI, tentou demonstrar que o monarca Bourbon, sua esposa Maria Antonieta, a Austríaca, e a criança Luís Carlos, o delfim, morreram por causa da marcha inexorável da História. Sua morte pelos revolucionários de 1798, no auge do Terror, foi a resposta de um época aos anseios de mudança social e política, que contaminaram todo o mundo naquele final do século XVIII.

Seria igualmente defensável que julgamentos do Tribunal Militar Internacional para os crimes de guerra da Alemanha, que condenou 12 líderes nazistas à pena de morte, e do Tribunal Militar para o Extremo Oriente, que condenou 25 líderes políticos e militares japoneses a penas máximas, resultaram em punições justas e esperadas pela opinião pública mundial, dada a ignomínia do Holocausto e dos massacres cometidos na invasão japonesa. O problema é que esses juízos, popularmente conhecidos como Tribunal de Nuremberg e Julgamentos de Tóquio, foram criados após os fatos sobre os quais exerceriam suas jurisdições. Tratou-se de clássico exemplo de violação do princípio do juízo natural e da vedação aos tribunais de exceção, apesar de respeitáveis opiniões doutrinárias em contrário.

O julgamento de Luís XVI pode ser considerado tanto quanto uma ignomínia, que ceifou as vidas de um casal de jovens inexperientes e uma criança em plena inocência, assim como um ato político submetido à ação de forças históricas incontroláveis. Ao passo em que os julgamentos de Nuremberg e de Tóquio foram uma resposta necessária à vergonha humana diante de sua (des)conhecida abominação, posto que em evidente ofensa aos princípios jurídicos que dão suporte aos direitos fundamentais do Direito Penal.

Nos anos 1930-1940, na União Soviética e na Alemanha nazista conduziram-se expurgos e julgamentos, regidos por espetaculosos juízes e promotores. Dessa época é que se tornaram célebres os Processos de Moscou (1936-1938), perante os tribunais populares, nos quais se condenaram à morte muitos dos líderes da Revolução Russa de 1917, além de líderes militares e heróis da Primeira Guerra Mundial. O Nazismo criou o Volksgerichtshof, Tribunal do Povo, no qual o juiz Roland Freisler se notabilizou por sua postura feroz e desrespeitosa com os réus. Em vários documentários sobre a Operação Valquíria, a conspiração civil-militar para assassinar Adolf Hitler, Reisler pode ser visto humilhando os acusados.

Mas não se fique nos exemplos tradicionais da Segunda Guerra Mundial, tempo no qual se sabia, com facilidade, diferenciar o certo e o errado. Na queda dos regimes comunistas após 1989, transmitiu-se em todos os telejornais o simulacro de julgamento do ditador romeno Nicolae Ceaușescu e de sua esposa Elena Petrescu. O líder deposto foi sumariamente julgado e levado a um pelotão de fuzilamento. Tudo às pressas e sob o alcance de câmeras de televisão.

O iraquiano Saddam Hussein, após sua derrota na Terceira Guerra do Golfo, viveu escondido em um buraco, na região de Tikrit, sua cidade natal. Traído por familiares, o antigo ditador do Iraque foi preso e, em 2006, submetido a um processo judicial sob a regência de um certo Tribunal Especial Iraquiano. O veredicto dos juízes foi sua condenação a morte por enforcamento. Três defensores do ditador foram assassinados durante a instrução e o presidente da Corte foi substituído durante o julgamento.

Os juízes que condenaram Ceaușescu provavelmente desejavam que ele fosse morto para que o povo não ouvisse as palavras do ex-ditador, as quais poderiam denunciar seus antigos comparsas, que logo assumiriam o poder no regime pós-comunista. Os magistrados iraquianos não tiveram liberdade de decidir com isenção, dado que eram juízes em um país ocupado por forças estrangeiras e dividido por ódios religiosos.

Em paralelo ou em contraste a essas formas “civilizadas” de aplicação de penas capitais a líderes decaídos, pode-se também mencionar a morte do ditador líbio Muammar Abu Minyar al-Gaddafi, em 2011, transmitida pelas televisões internacionais. O antigo homem forte da Líbia foi cercado por insurgentes, espancado e baleado.

No Brasil, a última ditadura militar (1964-1969) produziu diversos julgamentos nos quais a condenação era previamente conhecida. O Supremo Tribunal Federal mostrou-se tímido em algumas ocasiões. Em outras, sua reação levou os militares a ações de retaliação, como a aposentação compulsória dos ministros Victor Nunes, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Por mais curioso que possa parecer, o Superior Tribunal Militar teve — durante muito tempo — a primazia de exercer sua jurisdição corajosamente diante do regime. O ministro general Peri Constant Beviláqua (1899-1990), aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional no 5, foi o símbolo dessa altivez institucional de uma corte majoritariamente composta por oficiais generais.

Quando os regimes ou governos decidem se valer de procedimentos judiciais para conferir uma aparência de legalidade aos julgamentos de personagens políticas ou militares, é pouco provável que os tribunais consigam se manter por muito tempo imunes à intervenção das forças dominantes. A remoção, a aposentadoria ou mesmo a destituição dos juízes é moeda franca.

No entanto, uma figura permanece, com maior ou menor liberdade, autorizada a falar nesse circo dos horrores convertido em tribunal. É o advogado. Não que a classe seja dotada de qualidades especiais, que tornem seus membros uma espécie de homens superiores, acima do bem e do mal, das fraquezas e das baixezas humanas. Evidentemente que há advogados excepcionais na História, notáveis por sua coragem e por seu desapego a sua segurança e a sua vida. Sobral Pinto, o heróico defensor dos presos políticos no Estado Novo e na ditadura de 1964, é um desses exemplos. Mas, como ele há também juízes, militares e promotores, como o citado Peri Beviláqua ou dos advogados franceses que se negaram a legitimar o governo colaboracionista do general Philippe Pétain, com força moral acima dos padrões de seu tempo.

Quer-se referir precisamente ao advogado anônimo, que consegue ser sublime em meio a suas próprias limitações. É algo comparável às personagens do escritor britânico Graham Greene. Em O poder e a glória, Greene descreve a perseguição religiosa ocorrida no México, após a Revolução Mexicana de 1910-1920. A personagem principal é um padre, um de entre centenas que foi impedido de exercer o sacerdócio. Com uma filha sacrílega (na linguagem da época), alcoólatra e decadente, nem de longe ele conseguiria encarnar a pureza moral que sua condição religiosa faria supor. É, no entanto, com todas essas debilidades morais, que o padre de Greene consegue exibir a grandeza de sua condição de perseguido e de condutor da boa nova.

Volte-se à Revolução Francesa. Aquele movimento histórico foi, antes de tudo, o resultado da inusitada aliança entre um baixo clero ambicioso, cujos membros, em sua maioria, eram filhos do campesinato, da pequena nobreza, impedida de ascender por suas limitações de origem genealógica, e de advogados, os detentores do conhecimento humanista do século XVIII. De entre seus maiores líderes encontravam-se os advogados Maximilien François Robespierre e Georges Jacques Danton. Mas, é interessante focalizar nos advogados que ousaram defender o rei decaído: François Denis Tronchet, Chrétien-Guillaume de Lamoignon de Malesherbes, Guy-Jean-Baptiste Target e Raymond de Sèze. Esses homens, em circunstâncias que não são facilmente compreensíveis em nosso tempo, ousaram defender a vida e a liberdade do inimigo público número um, em um tempo no qual os humores da população eram incontroláveis e poderiam levar alguém à morte em instantes.

Mais do que o enaltecimento da figura do advogado corajoso, o que é excessivamente feito em discursos oficiais da categoria, a visão daqueles defensores de Luís XVI, ou Luís Capeto, como foi tratado no processo, fornece um painel de como o simples exercício profissional da advocacia pode-se constituir, em si mesmo, um ato de coragem insana. E tudo isso se torna ainda mais curioso quando se observa que François Denis Tronchet, ao lado de Portalis, Bigot de Préameneu, Maleville e Cambacérès, seria convocado pelo governo de Napoleão Bonaparte para integrar a comissão elaboradora do Código Civil francês, o mais duradouro legado político-jurídico da Revolução de 1789.

Essa contraditória e importante atividade mereceu ser inscrita em vários textos constitucionais. E essa inserção nos mais elevados textos normativos de cada país é fonte de relevantes informações.

A palavra “advogado” está presente em nada menos do que 49 constituições. Nesse grupo, são poucas as nações ricas e democráticas (Andorra, França, Portugal e Espanha). Em número também reduzido encontram-se democracias não tão prósperas (Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Lituânia, México, Colômbia, Turquia, Albânia, México, Costa Rica, República Dominicana), monarquias (Barein e Omã), estados pobres (Sudão, Sudão do Sul, Nigéria, Timor Leste, Moldávia, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Gana) e ditaduras (Mianmar e Cazaquistão).

As referências aos advogados nessas 49 constituições podem ser assim agrupadas, de modo exemplificativo: a) direito de comunicação com um advogado após a prisão (Albânia, Angola, Bolívia, Cabo Verde, República Dominicana, Timor Leste, Egito, El Salvador, Gana, Guiné, Cazaquistão, Quirguízia, Libéria, Moldávia e Rússia); b) direito a um advogado em juízo criminal (Andorra, Cabo Verde e Guiné); c) direito genérico a um advogado em juízo ou perante a Administração (Angola, Barein, Chipre e Portugal d) como requisito, não exclusivo, para integrar a Suprema Corte ou certas cortes superiores (Argentina, Chile, Colômbia, República Dominicana, El Salvador, França, Gana, Guatemala, Guiné, Lituânia, Maldivas, México e Mianmar), ou como requisito de experiência prévia para ser magistrado (Costa Rica e Nicarágua).

A palavra “advocacia” é referida em 12 constituições, especificamente Barein, Brasil, El Salvador, Fiji, Quênia, Kosovo, Moçambique, Ruanda, Sudão do Sul, Sudão, Tajiquistão e Ucrânia. As menções também podem ser assim divididas: a) a atividade de advocacia será regulada em lei especial (Barein, Kosovo, Moçambique, Sudão do Sul, Sudão, Ucrânia e Tajiquistão); b) a advocacia é essencial à Justiça (Brasil, Kosovo); c) menção a uma carreira de advogados públicos (Brasil); d) a função da advocacia é a defesa dos direitos fundamentais (Sudão).

A presença da “advocacia” nesses 12 textos constitucionais permite extrair algumas conclusões no mínimo interessantes: a) a defesa da atividade advocatícia é inversamente proporcional à natureza democrática da maioria dos regimes mencionados; b) as constituições que aludem à advocacia são mais modernas, o que, por si só, é indicativo do crescente processo de participação dos profissionais do Direito nos conflitos sociais e políticos; c) as nações menos ricas preveem a advocacia em suas constituições. Uma conclusão possível, ainda, seria a de que a “constitucionalização” da advocacia não é, por si só, um indicativo de um estado óptimo de reconhecimento dos direitos fundamentais. Ou, por outro ângulo, pode-se afirmar que essa “constitucionalização” deveu-se precisamente ao reconhecimento de que a violação desses direitos exigiria um reforço na normatividade hierárquica dessa profissão.

Com ou sem previsão constitucional, com ou sem julgamentos de cujos resultados já se conhece de antemão o resultado, o advogado permanece, ao longo dos séculos, como aquela figura um tanto quixotesca e incompreendida por sua gente. Em muitos aspectos, ele conserva em si a contradição do padre de O poder e a glória. Por ser humano, demasiadamente humano, o advogado termina por ser a síntese de tudo o que se sublime e de imperfeito em nossa trágica condição.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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