Resolução de conflitos

Sociedade deve mudar cultura do litígio e aceitar conciliação

Autor

  • Gustavo Catunda Mendes

    é juiz federal em São Paulo. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina - UEL.

19 de agosto de 2014, 7h26

A partir das normas que se encontram previstas no ordenamento jurídico brasileiro, é possível se verificar a constante preocupação do constituinte e do legislador em dispor ao cidadão direitos e garantias voltados para o exercício de seu direito de ação. Na Constituição Federal de 1988, na legislação ordinária e mesmo em disposições infralegais e súmulas de jurisprudência emanadas dos Tribunais pátrios, infere-se o arcabouço normativo de que dispõe a sociedade brasileira para que seus direitos sejam preservados, reconhecidos ou mesmo restabelecidos através da provocação da atividade jurisdicional prestada pelo Poder Judiciário.

Sobretudo em virtude do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal — segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” —, têm sido cada vez mais recorrentes os casos em que a concretização de direitos, a solução de controvérsias e a definição de condutas são objeto de litígios submetidos à apreciação e julgamento pelo Poder Judiciário.

É certo que a pacificação social constitui objetivo superior que se visa alcançar através da atuação do Poder Judiciário, que, no exercício da jurisdição que lhe compete e mediante a evolução da marcha processual e suas formalidades, possui como função precípua a resolução de controvérsias e a aplicação do direito.

Ocorre que, não obstante o Poder Judiciário tenha dentre os fundamentos legitimadores de sua existência e atuação, inclusive, a pacificação social, tem sido crescente na sociedade a consciência de que tal propósito não é alcançável, nem se faz presente, tão somente por intermédio de sentenças, que, muitas vezes, são proferidas após longas e desgastantes batalhas judiciais. Isto porque, o instituto da conciliação tem crescentemente se revelado mecanismo de solução de controvérsias hábil e efetivo a conferir às partes aquilo que de fato almejam quando do ingresso em Juízo: seu direito reconhecido ou mesmo seu caso definitivamente resolvido.

Em verdade, o incentivo à conciliação não se destina de maneira alguma a ofuscar o relevante papel social atribuído ao Poder Judiciário de exercício da jurisdição. Cuidam-se a promoção de conciliação e a existência de litígio de realidades que podem conviver na mais perfeita harmonia, sobretudo considerando que ambos visam, em última ratio, que de fato os conflitos sejam dirimidos e a paz prevaleça na sociedade.

Contudo, o que se verifica é resistente manutenção no meio social de uma cultura voltada para o litígio, para a instalação de demandas e o embate em Juízo na medida em que surgem controvérsias das mais diversas modalidades e sobre diferentes matérias, enquanto a tentativa de conciliação entre as partes acaba por ficar em segundo plano e sendo realizada tão somente em decorrência da existência de disposições legais que a estabelecem como formalidade a ser observada no curso do processo judicial.

Assim, justamente em virtude dos inúmeros benefícios relativos à conciliação — seja ela realizada antes da instalação do litígio (extraprocessual) ou mesmo no curso da ação já existente (endoprocessual) —, tanto em favor das partes quanto do Poder Judiciário, tais como a efetiva contribuição dos interessados mediante concessões mútuas, o desinteresse recursal sobre o decidido e o curto espaço de tempo e relativo baixo custo para a solução da controvérsia, tem se imposto a necessidade de mudança da cultura do litígio para a da conciliação, que tem recebido constantes incentivos dos Tribunais e sido atualmente a tônica quando se debate questões diversas relacionadas ao futuro e à efetividade do Poder Judiciário em atender sua função constitucional.

Verifica-se que se faz premente a necessidade de mudança da cultura do litígio para a da conciliação, tendo em vista esta constituir-se importante mecanismo alternativo de resolução de controvérsias, e que detém qualidades e produz resultados que permitem se atingir a tão almejada pacificação social.

E isso sem que seja necessária a atuação do Poder Judiciário para a solução de litígios, ressaltando-se a particularidade de que através de sentenças que julgam pela procedência ou não de demandas judiciais nem sempre se proporciona, mesmo à parte exitosa, a plena satisfação plena de seus interesses. Isto porque, ordinariamente, ao se deparar com a sentença aparentemente lhe favorável, a parte a princípio vitoriosa ainda está sujeita à denominada litigiosidade remanescente, que consiste no estado de descontentamento que lhe acomete mesmo tendo logrado êxito em uma ação judicial, em virtude da negativa bagagem emocional que persiste em relação à parte contrária.

A Constituição Federal trata dos princípios da inafastabilidade da jurisdição no artigo 5º, inciso XXXV, ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Note-se que, dentre os denominados “Direitos e Garantias Fundamentais” constantes da CF/88, constam de forma expressa princípios que remetem à litigiosidade entre as partes e garantias que preservam o efetivo exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório no devido processo legal, sem, contudo, ter sido feito referência ao instituto da conciliação como forma de resolução de conflitos entre partes, seja previamente à demanda judicial, ou mesmo após seu curso.

Ocorre que, ao ser promulgada a CF, constou do preâmbulo referência expressa a uma sociedade “fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

E, dentre os princípios que regem as relações internacionais da República Federativa do Brasil, consta da Constituição Federal, artigo 4º, inciso VII a “solução pacífica dos conflitos”.

Por oportuno, ressalta-se que o termo “conciliação” consta da atual da CF quando se refere que os Juizados são competentes, inclusive, para a “a conciliação… de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo”, na redação do artigo 98, inciso I.

Por oportuno, a EC 45/2004 introduziu na CF o princípio da duração razoável do processo no inciso LXXVIII, do artigo 5º, ao assegurar a “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, o que implica sobremaneira o incentivo à cultura da conciliação como forma de resolução dos conflitos judiciais para a abreviação de seu tempo de duração.

O Código de Processo Civil, por sua vez, a respeito do poder de conciliar do juiz, prevê no artigo 125, inciso IV, que “O juiz dirigirá o processo… competindo-lhe… tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes”.

E, ainda, o Código de Processo Civil cuida da conciliação em audiência nos procedimentos sumário e ordinário, nos termos do artigo 277, caput e parágrafo 1º, artigo 278 e artigo 331, parágrafos 1º e 2º.

E, de maneira geral, dispõe o Código de Processo Civil sobre o cabimento da conciliação no processo civil a partir do artigo 447, constando do artigo 448 que “antes de iniciar a instrução, o juiz tentará conciliar as partes”. E, conforme o artigo 475-N, inciso III, “a sentença a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo”, constitui “título executivo judicial”.

O Código Civil, por sua vez, trata do instituto da transação ao prever no artigo 840 que “é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas”, referindo-se o artigo 841 que “só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação”.

Em relação à conciliação, no ordenamento jurídico brasileiro constam a Lei 10.259/2001, que no artigo 10, parágrafo único afirma que “os representantes judiciais da União, das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais, bem como os indicados na forma do caput, ficam autorizados a conciliar, transigir ou desistir nos processos da competência dos Juizados Especiais Federais”, e a Lei 9.099/1995, que no artigo 2º prevê que “ö processo orientar-se-á pelos critérios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação”.

No propósito de estimular a prática da conciliação no Poder Judiciário, o CNJ editou a Resolução 125, de 01 de outubro de 2010, com redação alterada após Emenda 1, de 31 de janeiro de 2013, que “dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário” e no artigo 1º instituiu a “Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade”.

Conforme a Resolução 125/2010 do CNJ, artigo 1º, parágrafo único, “aos órgãos judiciários incumbe oferecer mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão”, sendo que, nos termos do artigo 5º, o programa de conciliação deverá contar com “participação de rede constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário e por entidades públicas e privadas parceiras, inclusive universidades e instituições de ensino”.

E, também no objetivo de regulamentar a boa prática da conciliação, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região editou, dentre outros atos, a Resolução 258, de 01 de janeiro de 2004, que trata da implantação do Programa de Conciliação na 3ª Região, a incidir sobre os processos relativos à discussão de contratos de financiamento, realizados pelo Sistema Financeiro de Habitação”, seguida das Resoluções 280/2007, 247/2011 e 367/2013, que tratam do Programa de Conciliação e das Centrais de Conciliação no âmbito da Justiça Federal da 3ª Região.

Com efeito, a conciliação tem sido permanentemente estimulada pra resolução dos feitos processuais (conciliação endoprocessual), quando já foi instaurada a lide, inclusive com a proposta de que seja elevada a utilização de acordos pré-processuais (conciliação extraprocessual), ou seja, nas hipóteses de conflitos ainda não jurisdicionalizados.

Assim, diante das múltiplas qualidades inerentes à conciliação, sua promoção tem sido permanentemente incentivada pelos Tribunais brasileiros, sobretudo em decorrência de seu grande potencial de por termo às inúmeras contendas que têm assoberbado os gabinetes dos juízes de complexos processos pendentes de julgamento, e inclusive pelo fato de controvérsias poderem ser dirimidas antes mesmo da instauração do litígio, sendo, por conseguinte, muito menos onerosa às partes e ao Estado.

Por tais motivos, observa-se a crescente difusão de atos administrativos dos órgãos do Poder Judiciário incentivando a prática da conciliação, sendo constante a elaboração de artigos doutrinários e a publicação de notícias originárias de fontes diversas promovendo a conciliação como instrumento de resolução de controvérsias, visto que capaz de diminuir o montante de ações judiciais que aguardam julgamento no Poder Judiciário e ainda conter a avalanche de demandas tem sido propostas dia-a-dia.

Como forma de reconhecimento de boas práticas voltadas à conciliação, o CNJ lançou em 2010 o Prêmio Conciliar é Legal, que tem como objetivo identificar, premiar, disseminar e estimular a realização de ações de modernização no âmbito do Poder Judiciário que estejam contribuindo para a aproximação das partes, a efetiva pacificação e consequentemente o aprimoramento da Justiça, sendo homenageados magistrados e servidores das Justiças Federal, Estadual e do Trabalho, bem como práticas jurídicas nas faculdades de Direito e na sociedade civil organizada que contribuam para a pacificação social.

Por óbvio, não se cuida da inauguração de novo instituto no ordenamento jurídico brasileiro, mas da mudança de paradigmas a partir da valorização de mecanismo de solução de conflitos já existente e, lamentavelmente, ainda pouco explorado diante de todo o contexto de litigiosidade que envolve os anseios das partes, a atuação dos advogados e a atividade dos juízes no cumprimento do mister precípuo do Poder Judiciário.

É preciso mudar, mudar para melhor, mudar para resolver, mudar para conciliar, mudar para que seja efetivamente alcançada a tão almejada pacificação social e fazer com que seja concretizada a sociedade fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias referida no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, que inaugurou a ordem jurídica vigente.

De fato, a partir da implementação pelo Conselho Nacional de Justiça da Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses, através da Resolução 125, de 01/12/2010, as conciliações passaram a ser a técnica preferencial de solução dos conflitos, sejam judicializados ou não.

Contudo, a conciliação como mecanismo de resolução de controvérsia, seja extraprocessual ou endoprocessual, não atingirá seu escopo superior, qual seja, a efetividade da pacificação social, tão somente em virtude da existência do maior número de disposições legais e infralegais a respeito da matéria, mas, certamente, na medida em que houver a adoção de uma nova forma de pensar na sociedade, através da quebra dos paradigmas de litigiosidade e, enfim, a partir da mudança da cultura do litígio para a da conciliação.

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