Constituição e Poder

Uma decisão judicial que se tornou celebridade internacional

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19 de agosto de 2014, 18h33

Spacca
Em 15 de janeiro de 1958, o 1º Senado do Tribunal Constitucional alemão proclamou o que, para muitos, é a mais importante decisão de toda a sua jurisprudência sobre direitos fundamentais[1]. O famoso Caso Lüth (BVerfGE 7, 198-230) tranformar-se-ia rapidamente num dos mais extraordinários exemplos de sucesso da jurisdição constitucional da Alemanha, ajudando a explicar por que, a partir da segunda metade do Século XX, a corte alemã acabaria alcançando prestígio internacional superior ao da própria Suprema Corte norte-americana.

Dieter Grimm, consagrado jurista e professor alemão, hoje internacionalmente reconhecido, tendo ele mesmo sido juiz no Bundesverfassungsgericht, em artigo comemorativo aos 50 anos do Tribunal Constitucional de seu país, no periódico Die Zeit (40/2001, Politik), com o título “A carreira de um chamado ao boicote” (Die Karriere eines Boykottaufrufs), bem avalia a importância dessa decisão, considerando-a a mais importante já proferida pela Corte alemã. Em sugestiva análise, afirma o grande jurista que a ponderação de bens, a proporcionalidade, a irradiação dos direitos fundamentais sobre o direito ordinário e o dever de proteção que decorrem dos direitos fundamentais, a partir dessa decisão, tornaram-se “artigos de exportação” do Direito Constitucional alemão, oferecendo ainda justificativa para a estima que se costuma dedicar àquele Tribunal Constitucional.

Os contornos fáticos do caso são hoje bem conhecidos e por isso vou aqui apenas relembrá-los.

A provocação para a decisão proferida pelo Tribunal teve origem no recurso constitucional interposto por Erich Lüth, que se opunha à condenação que lhe havia sido imposta por um tribunal estadual (Landgericht) pelo fato de haver se expressado publicamente, por diversas vezes, convocando um boicote aos filmes de Veit Harlan, por seu suposto passado nazista, tendo considerado a Justiça ordinária, com base no parágrafo 826 do BGB (Código Civil Alemão), que a exortação de Lüth ao boicote seria contrária à moral e aos costumes, razão pela qual ele foi condenado a omitir-se de novas convocações a favor do boicote sob ameaça de uma pena de multa ou até mesmo de prisão[2]. A decisão da Justiça ordinária seria, entretanto, reformada pelo Tribunal Constitucional, sob o fundamento de que o direito fundamental à liberdade de opinião irradiava sua força normativa sobre o Direito ordinário, no caso o Direito Civil, impondo-se aos tribunais ordinários a necessidade de emprestar prevalência ao significado dos direitos fundamentais, mesmo nas relações entre particulares. Entendamos bem esses fatos.

Em 1940, já famoso como diretor de cinema, Veit Harlan realizou um filme de propaganda anti-semita, dando-lhe o título de Jud Süβ (o Judeu Süβ). Depois da Segunda Guerra, um tribunal ordinário da Justiça alemã considerou que Harlan, com aquele filme, teria praticado crime contra a humanidade, pois o filme, com sua influência tendenciosa sobre o público, segundo o tribunal, servira de causa para a perseguição aos judeus. Segundo o tribunal, o autor tanto sabia dessa específica finalidade perseguida pelo filme como também contava com suas consequências racistas. Não obstante tudo isso, ao final, o autor acabou absolvido por sua conduta, considerando aquele tribunal que ele não poderia recusar uma ordem do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, sem colocar sua própria vida em perigo nem poderia realizar o filme de forma menos impressionante ou eficaz para o público (weniger wirkungsvoll)[3].

Depois da sua absolvição e logo após o início do primeiro filme de pós-guerra de Veit Harlan, Erich Lüth, o presidente de clube de imprensa de Hamburgo, dirigiu-se, em uma palestra, a empresários e a produtores cinematográficos, convocando-os literalmente a boicotar o realizador do filme Jud Süβ. Afirmou, então, que a absolvição do realizador teria sido apenas formal, pois existiria na fundamentação da sentença uma condenação moral, com o que se podia e devia exigir dos empresários e dos proprietários das salas de cinema um comportamento moralmente digno. A uma interpelação da produtora do filme e da empresária do diretor, Lüth, reafirmando sua antiga posição, respondeu com uma carta aberta, na qual afirmava, entre outras coisas, ser um direito e uma obrigação de todo alemão decente colocar-se à disposição da luta contra estes indignos representantes do filme alemão (…) como também a favor do boicote[4].

Depois disso, em razão de uma ação promovida pela produtora e pela empresária do novo filme de Veit Harlan, Unsterbliche Geliebte (Amada Imortal), na qual se pedia a condenação de Erich Lüth a omitir-se de expressar suas opiniões, ele foi proibido pela Justiça estadual de Hamburgo a manifestar-se a favor do boicote do filme, seja propugnando que o filme não fosse emprestado, seja buscando sua não apresentação ou divulgação, ou mesmo simplesmente convidando o público para não frequentar as salas de cinema que o apresentasse.

Segundo a decisão, a ilicitude de uma manifestação de boicote por parte de Lüth resultava, entre outros fatores, da absolvição de Veit Harlan. Por conta disso, a Justiça de primeiro grau, em Hamburgo, com base no Código Civil alemão, em caso de descumprimento, cominou a Lüth uma sensível pena pecuniária, considerando sua conduta contrária à moral e aos costumes (parágrafo 826 do BGB), em razão do que lhe impôs a exigência de omissão de uma futura manifestação[5]. Contra essa decisão, Erich Lüth interpôs recurso de apelação perante os tribunais superiores, apresentando depois recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional[6].

O Tribunal Constituicional, como vimos, fazendo prevalecer o sentido dos direitos fundamentais sobre as normas do Direito ordinário, a partir de um juízo de ponderação de bens, reformou a decisão dos tribunais inferiores, impondo a ideia de que, a partir de então, toda a ordem jurídica deveria ser interpretada à luz do Direito Constitucional, mais especialmente a partir dos direitos fundamentais, ainda que se cuidasse, como no caso, de relações jurídicas entre particulares.

A relevância do Caso Lüth
A relevância da decisão Lüth (Lüth-Urteil) pode ser aferida por suas amplas e profundas consequências no âmbito do Direito Constitucional. De fato, com ela o Tribunal (i) afirmou os direitos fundamentais como primeira linha de direitos de defesa do cidadão contra o Estado[7]; (ii) fundamentou a irradiação da eficácia jurídica dos direitos fundamentais no âmbito do direito infraconstitucional (ainda que o Tribunal Constitucional apenas admitisse apreciar as sentenças proferidas pela Justiça ordinária em relação à violação dos direitos fundamentais, não em relação à generalidade dos erros de direito), propiciando o desenvolvimento de sua eficácia entre particulares[8]; (iii) conformou a amplitude do direito fundamental à liberdade de opinião, fixando que o direito fundamental à liberdade de expressão garante não apenas a livre manifestação de opinião, como também a possibilidade de agir e a influenciar sobre os demais espíritos[9]; (iv) fixou a primazia legal do direito à liberdade e desenvolveu a ideia de uma ordem objetiva de valores (não se fala em hierarquia aqui) incorporada nos artigos 1 a 19 da Lei Fundamental alemã (Grundgesetz), que influenciaria todas as esferas jurídicas[10], além de (v) dar início ao desenvolvimento da ideia de ponderação de bens (Güterabwägung) como método de solução para os casos difíceis em que normas de estatura constitucional entram em relação de tensão ou colisão, especificamente, demonstrando ser necessária, naquele caso, uma ponderação entre o direito fundamental da livre manifestação de opinião e outros interesses com mesma hierarquia, isto é, dignos de proteção (schutzwürdige) constitucional, os quais, no caso concreto, podiam ser violados pelo concreto exercício da liberdade de expressão[11].

No que se refere à necessidade de ponderação entre os bens constitucionalmente garantidos (Güterabwägung), o tribunal partiu da compreensão de que a manifestação da opinião é livre em suas consequências puramente intelectuais. Quando, porém, pela manifestação da opinião pode-se prejudicar bens jurídicos de outro indivíduo, cuja proteção, no caso concreto, diante da liberdade de opinião também pode merecer primazia, não se poderia, sem mais, consentir com essa violação que seria praticada por intermédio da concreta manifestação do pensamento contra o direito do terceiro. Por isso mesmo é que se mostraria necessária, no caso, uma ponderação de bens na qual se pudesse verificar, com base em todas as circunstâncias do caso, se interesses preponderantes estariam presentes em determinado caso[12].

Nunca é demais ressaltar que, nos exatos termos da própria decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, saber se outros interesses (eventualmente considerados predominantes) realmente se apresentam no caso é uma conclusão que apenas poderia ser averiguada, fundamentamente, com base em todas as circunstâncias do caso (ist auf Grund aller Umstände des Falles zu ermitteln)[13].

Exatamente em função de a ponderação mostrar-se vinculada a uma completa consideração de todas as circunstâncias que caracterizam o caso é que, acentuou o tribunal, alteradas as circunstâncias de fato, também se poderia exigir um resultado diferente do juízo de ponderação. No caso Lüth, em que a manifestação de opinião não serve diretamente apenas a bens jurídicos e a interesses de natureza privada ou egoísta, tratando-se antes de uma contribuição ao debate público de ideias sobre uma questão que se baseia essencialmente no interesse público, não há dúvida de que o bem jurídico ou interesse privado perde peso e significado, devendo retroceder em favor da liberdade de opinião. Como afirmou o tribunal, aqui a presunção fala a favor da admissibilidade da livre manifestação, ou da liberdade de discurso[14].

Assim, toda aplicação judicial que possa restringir a liberdade de opinião deve, conforme o entendimento adotado pelo Tribunal Constitucional, ponderar o significado desse direito fundamental contra o significado dos bens jurídicos protegidos eventualmente com ele em uma relação de colisão, trazendo sempre em consideração todas as circunstâncias de fato essenciais para a conformação do caso[15].

Foi assim, pois, depois de ampla e profunda carga de fundamentação, que o Tribunal Constitucional reformou a decisão dos tribunais inferiores para fazer prevalecer o direito à opinião e à manifestação de Erich Lüth — no caso, o direito a manifestar-se pelo boicote aos filmes de Harlan.

Em resumo, bem consideradas as circunstâncias históricas em que se desenvolveu a famosa decisão Lüth, resultando na afirmação dos valores democráticos sobre o totalitarismo nazista, assim como as suas consequências jurídicas, bem como a incrível propagação de ideias que ela propiciou (não apenas na Alemanha, mas por todo o mundo democrático), não parece ser difícil compreender por que os juristas alemães de fato têm razão por orgulharem-se desse verdadeiro “artigo de exportação” de sua mais elevada jurisprudência.


[1] BVerfGE 7, 198-230. Cf. Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 25 e seguintes; Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung: hundert Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts in Retrospektive. Tübingen: Mohr Siebeck, 2000, p. 97. Dieter Grimm, no periódico Die Zeit (40/2001, Politik), com o título “A carreira de uma convocação ao boicote” (Die Karriere eines Boykottaufrufs); Costa Andrade, no livro Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, p. 44/45, a partir de uma perspectiva jurídico-criminal, também reconhece que Lüth-Urteil viria a converter num dos mais importantes casos da experiência jurídica alemã.

[2] BVerfGE 7, 198 (199).

[3] Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 97.

[4] Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 97.

[5] BVerfGE 7, 198, 199, 203.

[6] BVerfGE 7, 199/203.

[7] BVerfGE 7, 198 e 204-205.

[8] BVerfGE 7, 198 e 207-209.

[9] BVerfGE 7, 198 e 210.

[10] BVerfGE 7, 198 e 205-206. Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 25.

[11] BVerfGE 7, 198, 210-212. Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 26 e seguintes. Bernhard Schlink. Abwägung im Verfassungsrecht, p. 17 e seguintes.

[12] Na sequência da decisão, o Tribunal utiliza o conceito “interesse” no lugar de “bem jurídico”, sendo que o próprio Tribunal irá designar como finalidade da ponderação ali realizada encontrar os interesses predominantes (überwiegenden Interessen), isto é, os interesses que apresentam primazia no caso concreto. BVerfGE 7, 198 (210 e seguintes). Compare-se com o exemplo da BVerfGE 27 (104, 109, 110): ali o direito fundamental da liberdade de informação aparece como protegendo um interesse de informação, conforme é indicado por Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 28 (nota 73).

[13] BVerfGE 7, 198 (210/211). Cf. também Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 26.

[14] BVerfGE 7, 198 (212). Cf. também Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 26/27; Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 99.

[15] Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 99.

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