Segunda Leitura

Caso do RS mostra que sistema de Justiça Criminal do país tem de ser repensado

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

17 de agosto de 2014, 10h42

Spacca
O acórdão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Criminal 70029495421, relatada pelo desembargador Constantino Lisboa, julgado em  26 de novembro de 2009, tem na  ementa o seguinte:

CRIME AMBIENTAL. Comete os delitos previstos nos arts. 68, c/c o art. 15, II, a, h e o; 54, § 2º, V, e 69, todos da Lei 9.605/98, o agente que supervisiona, constrói e instala obras potencialmente poluidoras, promovendo lançamento de dejetos industriais nocivos ao meio ambiente em recursos hídricos, sem licença ou autorização do órgão ambiental competente, contrariando normas legais e regulamentos pertinentes, causando poluição capaz de resultar em danos à saúde humana, além de causar a mortandade de peixes, deixando de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental e obstando ou dificultando a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais. Condenação mantida.”

O contido neste item da ementa não revela a importância do caso. O leitor desatento pensará que se trata de mais uma entre milhares de apelações criminais julgadas. Mas não é.

Em outubro de 2006 ocorreram vazamentos em uma empresa  localizada no município de Estância Velha (RS) causando  poluição, através de resíduos líquidos e substâncias oleosas, do solo e hídrica nos Arroios Portão e Cascalho e no Rio dos Sinos em níveis tais que podiam resultar danos à saúde humana e que provocaram a mortandade de 90 toneladas de, pelo menos, 16 espécies de peixes.

A denúncia do Ministério Público atribuiu à pessoa jurídica e ao seu diretor executivo e responsável técnico, a responsabilidade pela poluição em nada menos do que 20 itens, que incluem, entre outras coisas, aporte de contaminantes importantes para o solo, contrariando plano de regularização da atividade imposto pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais e fazer funcionar o estabelecimento, potencialmente poluidor, sem licença ou autorização do órgão ambiental competente.

Foi proferida sentença julgando extinta a punibilidade da pessoa jurídica e condenando o diretor da empresa a 18 anos de reclusão, em regime fechado, e a 12 anos de detenção, em regime semiaberto, e 10 dias-multa, à razão de 1/30 do salário-mínimo vigente à época dos fatos. Houve recurso de apelação e a sentença foi parcialmente reformada para o fim de reconhecer o crime como continuado e reduzir a condenação do réu para o total  7 anos e 6 meses de prisão.

A ação penal, sem dúvida, é das mais complexas, são 20 acusações distintas e uma grande quantidade de exames técnicos e testemunhas. Mesmo assim, em 8 de abril de 2009, dava entrada no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o recurso de apelação. Portanto, em apenas 2 anos e 6 meses, a Ação Penal foi sentenciada e o recurso de apelação chegou ao Tribunal.

No TJ-RS o recurso foi julgado pela 4ª Câmara Criminal apenas 7 meses e alguns dias depois (26 de novembro 2009). Saliente-se que a 4ª Câmara Criminal  é especializada em crimes ambientais, ou seja, seus desembargadores conhecem profundamente a matéria.

Pode-se afirmar, sem susto, que a Justiça gaúcha foi exemplar. Dificilmente, em algum país do mundo um caso grave e complexo como este seria julgado em duas instâncias em  prazo menor.

Mas, pouco tempo depois as coisas começaram a mudar. Em 24 de março de 2010 foram interpostos recursos especial ao Superior Tribunal de Justiça e extraordinário ao Supremo Tribunal Federal. Em 3 de março de 2011, portanto quase um ano depois, certamente porque negado seguimento aos recursos, foi distribuído um agravo no STJ a um desembargador convocado e em 16 de junho de 2011 redistribuído a um ministro (Ag.1383285/RS). E não teve mais andamento.

O acórdão do TJ-RS não foi executado. O STF entende que a pena só pode ser executada depois de transitada em julgada a decisão condenatória (HC 84.078-7/MG, rel. Eros Grau, j. 5.2.2009). A partir deste julgamento, teoricamente perfeito  mas na realidade altamente problemático, acórdãos de TJs e TRFs são mero rito de passagem para o STJ e STF. Em um país com 200 milhões de habitantes e centenas de milhares de ações penais, imagine-se o tempo que levam tais recursos para serem julgados nestas instâncias especiais.

Não se pode atribuir culpa ao relator no STJ. Fosse quem fosse, certamente teria dificuldades em examinar um agravo que discute a subida de um recurso especial em processo com mais de 30 volumes e deixar todos os outros parados. Há gabinetes com milhares de processos pendentes (10 mil, 20 mil ou mais).

Mas, suponha-se que seja negado seguimento ao recurso. Em seguida  terá início a discussão sobre agravo relacionado com a tramitação do recurso extraordinário para o Supremo. E ele ficará no STF por mais alguns anos, porque lá também todos os Ministros estão assoberbados de trabalho.

E suponha-se que os recursos especial e o extraordinário subam e sejam conhecidos. O resultado provável é que demorem muitos anos mais para serem julgados e ocorra a prescrição. Afinal, as penas impostas no TJ=RS (3 anos de reclusão e 2 de detenção, mais o acréscimo da continuidade) prescrevem em 8 e 4 anos, respectivamente. Entre a publicação do acórdão no TJ-RS (14/12/2009) e hoje passaram mais de 4 anos. Portanto, as penas de detenção já prescreveram. As de reclusão prescreverão em 14 de dezembro de 2017.

Tudo que aqui foi dito não tem a finalidade de discutir o mérito da condenação. Como nunca examinei os autos, não posso tirar qualquer conclusão sobre a inocência ou culpa do recorrente. O foco aqui é outro, é mostrar a fragilidade do sistema. Este caso é citado apenas porque teve grande repercussão à época em que ocorreu.  

Nas prateleiras ou nos registros eletrônicos de Varas e  Tribunais milhares de graves ações penais (como casos de homicídio) seguem na lenta e burocrática marcha das quatro instâncias, sem que possam  ser executadas condenações impostas pela segunda instância. Caminham para a prescrição ou uma execução da pena 15 anos depois, quando o condenado desapareceu,  envelheceu ou regenerou-se. Seja qual for a hipótese o cumprimento da pena perdeu o sentido.

O resultado disto tudo é que  nem os tribunais de segunda Instância têm o poder de executar os seus julgados e nem os tribunais superiores têm ou terão poder de solucionar em tempo razoável centenas de milhares de recursos. A ineficiência é  fruto do sistema de Justiça criado com a Constituição de 1988 e da decisão do STF no HC 84.078-7/MG. Isto tudo gera descrédito nas instituições, estimula linchamentos e a vingança pessoal por parte das vítimas ou familiares.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.

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