solução negociada

"Judiciário tem compromisso com resolução do problema, e não só do processo"

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23 de julho de 2017, 8h00

Spacca
Não é difícil que o fim de o processo dê início a outro conflito, em vez de encerrar o litígio. Em temas sociais sensíveis como o despejo de centenas de famílias ou a preservação do meio ambiente, o juiz deve se questionar se uma decisão sua encerrá o problema. Em caso negativo, deve ter a humildade de reconhecer que o caso transcende seu poder de decisão e deve ser tratado de outra a forma, quem sabe a negociação amigável.

É o que pensa a desembargadora Marisa Ferreira dos Santos, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e responsável pelo Gabinete de Conciliação da corte. Segundo ela, a cultura de litígio no Brasil precisa mudar, e o Código de Processo Civil deu um passo importante nessa direção, conforme disse em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Ela conta que a prática da conciliação e mediação ainda é muito nova no Judiciário, mas já tem dado bons resultados na Justiça Federal. Para a magistrada, as práticas vão mudar a forma de se distribuir Justiça no país.

Segundo Marisa Santos, a partir do momento em que as pessoas deixarem de partir para o litígio e buscarem soluções por elas próprias, o Judiciário ficará mais livre para decidir conflitos que realmente precisam de sua interferência. 

A desembargadora recebeu a equipe da ConJur em seu gabinete para prestar informações ao Anuário da Justiça Federal 2018.

Leia a entrevista:

ConJur — A senhora tem feito uma gestão mais proativa no Gabinete de Conciliações do tribunal, pedindo que os colegas enviem casos que podem ser resolvidos por meio de acordo. Como isso tem funcionado?
Marisa Santos —
 O CPC fala em meios alternativos de solução de conflitos, e o meio que encontramos foi o da desistência do recurso. O primeiro foco que tivemos eram processos em que a Caixa tinha sido condenada a pagar indenização por dano moral e havia recorrido. Estabelecemos que, se o valor fosse abaixo de R$ 10 mil, que a Caixa desistisse do recurso. Aí o processo volta para o primeiro grau e faz o pagamento. Na verdade não chega a haver acordo, mas se coloca fim a um conflito que uma das partes cedeu. Fizemos isso em 838 processos. Ela desistiu dos recursos nesses casos de dano moral. Fizemos recentemente uma reunião com a auditoria da Caixa Econômica Federal, que veio de Brasília, e explicamos que se eles aumentassem um pouco esse limite não ficaria nenhum processo no tribunal mais da Caixa.

ConJur — Isso só foi feito com a Caixa?
Marisa Santos —
 O INSS tem outra questão: só na Vice-Presidência são 2,2 mil processos que tratam apenas da correção monetária esperando decisão de subida para o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal. O INSS quer a correção dos atrasados pela TR e as partes não concordam. O INSS pediu, então, que se separassem esses processos da Vice-Presidência, e nesses 2.200 processos fez uma proposta de acordo: pagar o débito se a parte concordar com a correção pela TR e aí pagar 100% do valor apurado, inclusive os honorários do advogado da parte.

ConJur — E as partes têm concordado?
Marisa Santos — 
Na maioria dos casos, a parte está aceitando o acordo. Agora, temos nos gabinetes da 3ª Seção, previdenciária, nas quatro turmas e também em todos os nossos gabinetes, essa mesma questão da correção pela TR. Então o INSS começou a fazer acordo também nos processos das turmas, que ainda não foram julgados.

ConJur — Há muitos processos sobre compra de imóveis com a Caixa?
Marisa Santos —
A Caixa tem feito muitos acordos de abatimento do valor daqueles processos mais antigos, do tempo em que a pessoa pagava financiamento de 30 anos, chegava no final e devia mais do que tinha pagado. Muitas questões de cartão de crédito, empréstimo e cheque especial têm vindo parar no Judiciário. A Caixa faz o acordo muitas vezes sem ter processo ainda. Ou a própria parte devedora também pode nos procurar e pedir uma tentativa de conciliação. Nós chamamos a Caixa e tentamos fazer. E tem dado muito certo. Muitas ações não tem entrado no Judiciário por conta desse primeiro momento, dessa tentativa antes do processo.

ConJur — Quem procura mais o tribunal para fazer acordo, a Caixa ou os devedores?
Marisa Santos —
Mais a Caixa. Estão agora lançando um projeto conosco que deram o nome de Quita Fácil. São processos de carteira comercial que estão já judicializados, mas não tratam de financiamento imobiliário, todas as outras questões em que o banco está cobrando dessas pessoas. A Caixa vai chamar essas pessoas, inclusive os processos que estão no arquivo, que são 5.400 processos. Vai pedir o desarquivamento e propor acordo de até 90% de desconto na dívida.

ConJur — Qual a vantagem disso para a Caixa e para o INSS?
Marisa Santos — 
Para o banco, tocar um processo de valor pequeno é caro, porque ele não tem só advogados da Caixa, há localidades em que a Caixa não tem advogados, então ela terceiriza esse serviço, tem que pagar para ele. O tempo também é dinheiro, o banco sabe bem disso também, então às vezes é mais fácil desistir de um recurso ou propor um acordo desse tipo do que insistir em cobrar o valor total da dívida de uma pessoa que não vai ter como pagar.

Para o INSS, a vantagem é que o processo não siga e o Supremo decida por outro índice de correção que não seja a TR. Essa é uma questão que STF está decidindo, e se disse que o índice é outro, o INSS vai ter de pagar essa diferença e sobre o atrasado vão ter de pagar juros, correção e sobre tudo isso incidem os honorários dos advogados. Para o INSS é bom porque encerra logo o processo e para a parte é bom porque ela recebe logo o dinheiro de que está precisando.

ConJur — Os acordos são feitos só nesses processos menores?
Marisa Santos —
Temos um grupo de juízes formados em conciliação e mediação, formados pelo CNJ, alguns têm até formação no exterior, em Harvard. Eles vão atuar como mediadores em processos de alta complexidade, por exemplo, ações civis públicas. Já temos um caso de sucesso em Santos, que foi aquele caso dos quiosques, uma ação civil pública que queria que se desocupasse a orla, que estava tomada pelos quiosques, aqueles vendedores todos. A juíza de Santos, que até ganhou um prêmio por isso, conseguiu fazer a mediação de forma que os quiosques estão sendo tirados da a areia da praia e realocados em lojas que a Prefeitura está construindo.

ConJur — Resolveu sem decidir.
Marisa Santos — 
Isso era um problema de Direito Ambiental sério e um problema social grave, porque aquilo era o trabalho daquelas pessoas. Era um tipo de processo em que uma decisão judicial que diz quem ganha e quem perde não resolveria o conflito. Se ela decidisse pela remoção dos quiosques seria até mais fácil, só que ela criaria outro problema social, de as pessoas ficarem sem trabalho. Às vezes uma decisão judicial não resolve o conflito, resolve o processo.

ConJur — Que tipos de casos complexos estão para ser decididos por aordo?
Marisa Santos — Temos casos que estão em andamento, de processos que correm em segredo de Justiça, que são ações civis públicas, questões de direitos humanos muito sérias. Temos duas já em fase negociação, acho que até o final do ano nós vamos ter uma boa notícia para dar. Um caso de um condomínio em Santo André, chama-se Barão de Mauá, que foi construído em cima de um lixão, tem um problema ambiental grave, só que aqueles apartamentos foram todos vendidos.

ConJur — Pode explodir?
Marisa Santos —
Já houve até explosões lá. Mas para onde essas pessoas vão? São 2,7 mil apartamentos, 5,4 mil pessoas. Não se coloca gente na rua assim. É um condomínio de baixa renda. Como é que você tira as pessoas dali? Você resolve o processo, mas não resolve o problema. É outra forma de ver a atuação do Judiciário. Ele tem compromisso com a solução. A cultura do Judiciário está mudando. Quando se faz um acordo, o acordo acaba com o problema. E mais, os envolvidos no acordo participam da solução do problema, não recebem uma solução imposta pelo Estado. As pessoas restauram a dignidade quando participam da solução.

ConJur — E execuções fiscais? Segundo o Justiça em Números, do CNJ, elas são o principal gargalo do Judiciário.
Marisa Santos —
 Temos em andamento um projeto com a Procuradoria da Fazenda, que vai começar a desistir de execuções fiscais. Já mandamos 150 processos. Na verdade, não formalizaram ainda isso, é um projeto. Ficou estabelecido que temos que mandar 50 processos por semana, porque estão formando lá na PFN um grupo específico para isso.

ConJur — Vale pra qualquer execução?
Marisa Santos — 
Nesse casos experimentais vamos ver os parâmetros. São execuções fiscais de até R$ 10 mil que já estão no tribunal, ou seja, houve recurso de uma das partes na decisão dos embargos. A ideia deles é desistir da execução para baixar para o primeiro grau e ir para o arquivo para executar. Aí a dívida já sai do cadastro de inadimplentes. O desbloqueio do bem e, eventualmente, se tiver algum sócio inscrito passivo eles também vão resolver isso. O objetivo é que a dívida não exista mais, que a parte não tenha o nome dela inscrito em algum órgão de cobrança do consumidor.

ConJur — Tem de mudar a cultura da direção dos entes públicos também, não?
Marisa Santos —
 Ah, tem, sim. Porque esse tipo de solução pacífica dos conflitos é uma cultura também. A própria Caixa tem um problema, ela faz acordo aqui na cidade de São Paulo. É fácil, os advogados daqui abraçaram a conciliação, fizeram até uma estrutura administrativa para trabalhar só com isso. Mas em Campinas o quadro é outro, o procurador de lá diz “não, eu não faço”. Ou nem aparece quando a gente convida para a audiência de conciliação. O INSS, a mesma coisa. Eles têm uma luta interna também de mudar a cultura do litígio. tem sentido você ter um ente público como o INSS que tem aproximadamente 70%, 80% das ações que tramitam na Justiça Federal? Tem alguma coisa errada aí. Na hora que percebermos que vale a pena resolver o litígio sem aumentar o número de processos, vamos ter um país pacificado. A cultura vai mudar, mas ainda vai demorar.

ConJur — A senhora conversa com os coordenadores de outras regiões?
Marisa Santos —
 Sim, a gente tem o Fórum Nacional de Conciliação, o Fonacon, que é anual. Cada um dos coordenadores expõe como está a sua situação, o que tem feito e tal. A gente copia as ideias uns dos outros, às vezes deu certo para um, pode não dar certo para outro, porque são perfis diferentes. Os juízes que atuam diretamente na conciliação também expõem projetos, então tem uma infinidade de coisas interessantes acontecendo pelo Brasil. Estamos caminhando, ainda está sendo construído. Daqui a dez anos a gente volta a falar e você vai encontrar outro quadro.

ConJur — Juízes de outras subseções também estão encaminhando casos para conciliação?
Marisa Santos —
Sim. Aqui na capital, como a gente tem um número grande de varas eu preciso que eles me ajudem nos fóruns. Mas nas outras subseções, que são menores, o próprio juiz coordenador da Central de Conciliação se entende com os colegas. Temos uma experiência boa, por exemplo, em São José do Rio Preto. Há outros lugares em que a conciliação está tendo muita dificuldade. Por exemplo, Barueri, Osasco, Campinas, Sorocaba.

ConJur — Por quê?
Marisa Santos —
 Os procuradores desses entes públicos relutam, não aparecem nas audiências ou, se aparecem, dizem que não vão conciliar. 

ConJur — Não deve ser tarefa simples.
Marisa Santos —
Dá trabalho conciliar. Tem que ir numa audiência, o sujeito se desloca, vai lá, tem o contato direto. Ele vai como advogado, mas tem que ir um funcionário da Caixa, pode ser o gerente do banco, alguém que a Caixa indique. Essa pessoa tem que ir preparada para o que ela vai encontrar. Ela vai encontrar o sujeito bravo porque ficou preso na porta giratória, ele processou o banco, quer uma indenização. Esse preposto tem de saber olhar para aquela pessoa e dizer "a gente não teve intenção de ofender", e isso é questão treinamento, ele tem que estar disposto a isso. E vai levar tempo, tem de ter muita paciência.

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