Diário de Classe

A imoralidade da Copa do Brasil e o
direito de perder de cabeça erguida

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16 de agosto de 2014, 8h01

Spacca
No filme francês Intocáveis (Intouchables) — que não deve ser confundido com o clássico Os Intocáveis (The Untouchable), no qual estrelam Robert De Niro, Sean Connery e Kevin Costner —, um aristocrata tetraplégico (François Cluzet) contrata um jovem (Omar Sy) para cuidá-lo. Aquilo que era para ser um período experimental transforma-se numa grande aventura. Não se trata de um lançamento cinematográfico. O filme é de 2011, mas para quem ainda não viu vale a pena conferir. Além da trilha sonora, em que se destaca Fly, de Ludovico Einaudi, há duas cenas bastante interessantes, que servem para a reflexão no campo do direito.

Na primeira cena (assista abaixo), ao sair para levar Philippe a uma galeria de arte, Driss depara-se com um carro bloqueando sua saída da garagem. O motorista fala ao celular. Então, movido por seu instinto, Driss desce e lhe dá uma “lição”, arrancando-o de dentro do veículo e esfregando seu nariz na placa que adverte ser proibido o estacionamento em frente ao portão. Apavorado, o motorista se desculpa e sai imediatamente.

Na segunda cena (indisponível), mais próxima do final do filme — e, portanto, após todas as experiências vivenciadas por Driss no período em que esteve com Philippe —, ele e seu irmão mais novo, Adama, estão saindo a pé da luxuosa residência quando, ao abrirem o portão, veem um carro bloqueando a saída de veículos. Driss aproxima-se e bate no capô do carro para chamar a atenção do motorista, que está falando ao telefone:

Driss: — Hei!
Motorista, erguendo dois dedos sem olhar para Driss: — Espere…
Motorista ao telefone: — Qual é o seu banco?… Ok….
Driss interrompe: — Desculpe-me. Poderia, por favor, tirar o carro? Não pode estacionar aqui. Está escrito ali.
Motorista: — Estou saindo.
Driss: — Obrigado.
Motorista (ao telefone): — Eu ligo de volta.
O motorista arranca o carro e Driss retorna para junto do irmão.
Adama: — Por que você se importa? Não estamos dirigindo.
Driss: — É uma questão de princípio.

Pois bem. Tudo indica que os dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) não assistiram ao filme ou que, se o fizeram, certamente não prestaram atenção à lição de Driss. Me refiro, aqui, ao “regulamento” da Copa do Brasil que premiou, na última quarta-feira, três clubes eliminados com uma vaga na Copa Sul-Americana, estimulando, assim, o boicote ao torneio local ao determinar que, se desclassificados, poderiam disputar uma competição continental.

Com base neste “regulamento”, Internacional, São Paulo e Fluminense ganharam ao perder suas partidas. Conquistaram vagas porque foram eliminados. Não estou dizendo aqui que estas equipes jogaram para perder, embora não faltem suspeitas. Uma delas, do sul do país, inclusive jogou com time misto, mesmo sem que houvesse motivo.

Como isto é possível? O futebol é um jogo com regras próprias, cuja interpretação nem sempre é clara (ao contrário do que dizem por aí!). Seu objetivo é fazer golos (como diz o meu avô). Ao final da partida, a equipe que marca mais gols é a vencedora. E, assim como ocorre nos demais esportes, profissionalizados ou não, os atletas devem buscar a vitória. Se é verdade que o importante é competir, isso não significa que seja admissível jogar para perder.

Mas, então, como deveriam se comportar os dirigentes e/ou atletas destas equipes diante de um “regulamento” que coloca em xeque a própria finalidade que deve orientar toda e qualquer prática desportiva?  O que significa agir ou decidir por princípio?

Em respeito à sua dignidade e, igualmente, às suas torcidas, tais equipes deveriam agir por princípio; ou melhor, jogar por princípio. Quando se invoca uma questão de princípios, o que está em jogo — para manter a linguagem futebolística — é o agir pautado por um argumento moral: praticar o bem e fazer aquilo que é certo mesmo que não se tenha obtenha nenhuma vantagem com tal conduta, ou seja, independentemente do resultado. É isto que, ao final, nos permite sair de campo com a cabeça erguida, sobretudo quando derrotados. Trata-se, com efeito, de um comportamento virtuoso que deveria orientar toda ação humana.

É disso que nos fala Ronald Dworkin em seu Justice for Hedgehogs (Justiça para ouriços): o valor da boa vida, de uma vida bem vivida, é adverbial, e não adjetivo. Está, portanto, no modo como se faz as coisas, e não necessariamente nos resultados que se obtêm. Viver bem é uma questão de responsabilidade pessoal intransferível, de maneira que cada um deve eleger aquilo a que atribui valor e, com base nisso, pautar sua vida, submetendo-se apenas a algumas restrições relativas à dignidade humana. É objetivamente importante que se viva bem e que se faça a coisa certa. Uma pessoa boa é aquela que age de forma coerente com estes princípios.

Se isso se aplica à vida privada, na esfera pública, assume caráter ainda mais sério. Um Estado democrático tem o dever de agir corretamente, sob pena de perder a autoridade moral da qual depende seu poder de coerção. É por isto que, politicamente, esse Estado não pode atuar de modo pragmaticista, abrindo mãos dos princípios morais fundantes de  determinada comunidade política. E são os tribunais que devem garantir o bom funcionamento disso tudo. Ou, ao menos, é assim que pensava Dworkin.

Numa palavra final: mais uma vez, a CBF não fez a coisa certa ao elaborar um “regulamento” que premia a ação imoral. Como diz Habermas, no direito produzido democraticamente, uma norma jurídica não pode contrariar uma norma moral. E os clubes? Estes, se preferiram à eliminação para se beneficiar disso, que lucrem o máximo que puderam, pois abdicaram do virtuoso direito-de-perder-de-cabeça-erguida.

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