Marco civil

Prova na internet deve respeitar soberania de cada país

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12 de agosto de 2014, 14h41

Este artigo tem como objetivo aprofundar a discussão relacionada à interessante regra de direito, inserta no artigo 11, caput e parágrafo 1º, da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que limita a aplicação do ordenamento jurídico pátrio, e a consequente competência do Judiciário para determinar a exibição de dados produzidos em ambiente virtual — sem a necessidade de utilização de mecanismo de cooperação internacional — aos casos em que tenha concorrido para a constituição do registro ao menos um terminal de internet localizado no Brasil.

Desnecessária a exposição da relevância jurídica da imensa quantidade de dados que circulam pela rede mundial de computadores. A previsão da aludida regra, ademais, chama a atenção do intérprete do direito processual e parece se incluir, com ainda mais ênfase, dentre os temas atuais atinentes à prova.

A solução do Marco Civil e eventuais discussões dela decorrentes
Conforme destacado, o Marco Civil da Internet adotou solução segundo a qual são considerados “brasileiros” os registros e dados produzidos em ambiente virtual quando ao menos um dos atos necessários para a referida constituição tenha sido realizado em território nacional.

Vendo as coisas desse modo, a solução poderia até parecer simples aplicação. Sugere-se, todavia, a possibilidade de que o desenvolvimento e a consolidação do entendimento — doutrinário e jurisprudencial — a respeito do tema siga uma via tortuosa.

É possível que existam situações em que eventuais condutas, não obstante sentidas de modo perverso no Brasil, sejam praticadas por intermédio de conexões localizadas no exterior. Com a maioria dos servidores das megacorporações de internet (Google, Microsoft, Yahoo, Apple, Facebook, dentre outras) localizados no exterior, basta que o usuário se utilize de terminal também localizado também fora do Brasil para que os registros sejam inalcançáveis, ao menos sem a utilização de um mecanismo de cooperação internacional, pelo Judiciário Brasileiro.

Um exemplo disso — e aqui se utiliza de outro tema de bastante atualidade: a corrida eleitoral — poderia ser descrito a partir da seguinte situação: imagine-se uma demanda voltada à obtenção do registro de usuário que inseriu, no YouTube, um vídeo em que apresentadas informações falsas e deletérias a respeito de candidato à Presidência da República. Caso descoberto que a inserção partiu de terminal localizado fora do Brasil, seria lógico admitir-se que referido dado somente poderia ser obtido mediante a expedição de uma carta rogatória ao País do qual partiu a inserção.

A solução, todavia, parece, ao menos em um primeiro momento, de difícil admissão. A multinacionalidade das megacorporações de internet, aliada à necessidade de investigação de dano sentido no Brasil, não poderia ensejar uma interpretação sistemática do Marco Civil da Internet, de modo a permitir a pronúncia de ordem jurisdicional de fornecimento de dados pela autoridade brasileira? Seria mesmo necessária a expedição de carta rogatória em um caso como esse?

Os questionamentos merecem resposta cuidadosa, talvez inalcançável em um artigo de reduzidas dimensões. Aceita-se, de todo modo, o desafio.

No caso do exemplo, parece adequado sustentar que a transnacionalidade da sociedade empresária que armazena o registro não pode ser confundida com a origem da fonte de prova que se pretende alcançar. Constatada a constituição do registro em terminal estrangeiro, sua obtenção deve seguir os trâmites legais de cooperação internacional. Mostra-se pertinente destacar, por outro lado, que condutas praticadas no estrangeiro são sentidas no Brasil por diversas circunstâncias, e nem por isso a instrução processual pode se esquivar do devido processo legal.

A necessidade de expedição de cartas rogatórias também no âmbito da instrução processual não parece ser objeto de discussão em sede doutrinária. Exemplo básico disso é a produção de prova testemunhal quando a fonte de prova — testemunha — esteja localizada no exterior. Seu testemunho, como é evidente, somente pode ser obtido mediante a utilização de um mecanismo de cooperação. No caso de exibição de registros pretendida no exemplo, não há motivo para que a obtenção da prova seja procedimentalizada de modo diverso.

A verdade é que com fundamento nessas alegações (simplórias, com o perdão de quem eventualmente as defenda), poder-se-ia justificar a obtenção de todo e qualquer dado produzido via internet em todo o mundo a partir de uma ordem expedida pela autoridade brasileira. Tal entendimento pode se transformar em algo altamente indesejável.

O que serve para o bem, também pode servir para o mal. Na situação exemplificada, em que envolvido fato de considerável interesse público, não seria difícil imaginar a perplexidade dos envolvidos com a notícia de que teriam de se valer de uma carta rogatória para a obtenção dos registros de quem teria feito a inserção do vídeo na internet. Essa, todavia, é uma situação extrema, e parece no mínimo provável a possibilidade de que tal facilitação na obtenção da prova seja utilizada em casos muito menos relevantes.

Outra explicação guarda relação com o maciço repúdio, tanto do Brasil como de toda a comunidade internacional, com a notícia de que foram revelados dados constituídos no Brasil a uma autoridade estrangeira, sem que respeitados os acordos de cooperação internacional, ou sem que ao menos tivesse sido encaminhada, por aquele Estado, instrumento semelhante a uma carta rogatória. Termos como “destruição” da privacidade dos usuários de internet e “atentado” contra a soberania do Estado vítima da “espionagem”, certamente incisivo, revelam o caráter e o tamanho da rejeição de tal medida.

De mais a mais, não se está defendendo a impossibilidade de acesso à prova, e sim a necessidade de respeito a uma medida — qual seja, a expedição de carta rogatória — prevista há décadas na legislação processual.

Verifica-se, nessa perspectiva, que o ponto central da discussão aberta com a redação do artigo 11 do Marco Civil da Internet, para muito além do mero local de armazenamento das informações, relaciona-se com o local de formação da fonte de prova que se pretende obter. Tendo as informações sido produzidas a partir de terminal localizado no estrangeiro, a partir de conexão estrangeira, torna-se necessário o recurso a um mecanismo de cooperação para a sua obtenção pela autoridade brasileira.

Por tais razões, resumida e embrionariamente apresentadas por intermédio do presente artigo, é que se sustenta que a interpretação adequada do Marco Civil da Internet deverá guardar relação com a necessidade de observância às normas de competência internacional, à soberania de cada Estado, à ordem pública e ao devido processo legal na obtenção de fontes de prova não somente armazenadas, mas também constituídas em solo estrangeiro.

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  • Brave

    é mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Advogado em São Paulo.

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