Contas à Vista

A inconstitucional unanimidade do Confaz e o surpreendente Convênio 70

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de agosto de 2014, 9h00

Spacca
A melhor forma de compreender um problema é colocá-lo em perspectiva histórica a fim de que seja possível visualizar todos os aspectos envolvidos. Tratar de guerra fiscal, da Súmula Vinculante 69 e do surpreendente Convênio 70/2014 não foge a esta regra. Entendo que a gênese deste problema encontra-se em uma errônea perspectiva adotada pela Constituição de 1988 quanto ao federalismo fiscal.

O federalismo fiscal é uma fórmula financeira para melhor distribuir os recursos públicos em um território politicamente considerado, pois sobre o espaço geográfico superpõem-se os desdobramentos político-administrativos. Assim, uma coisa é o poder de tributar que incumbe aos Estados nacionais; outra é dar conta da distribuição desse recurso entre diversos entes federativos, qualquer que seja seu nomen juris (União, Estados, municípios, províncias, regiões, comunidades autônomas entre outros). Na definição de Régis Fernandes de Oliveira: “significa a partilha dos tributos pelos diversos entes federativos, de forma a assegurar-lhes meios para atendimento de seus fins (…) Não só dos tributos, no entanto, mas também das receitas não tributárias, como as decorrentes da exploração de seu patrimônio (preço), da prestação de serviços decorrentes da concessão ou da partilha do produto da produção, de energia elétrica e da produção mineral, na forma do parágrafo 1º, do artigo 20, da Constituição Federal.” Expus esta situação em outro texto, recentemente transformado em livro[1] Dentro dessa linha, o estudo do federalismo fiscal pode ser dividido em duas grandes áreas: o federalismo fiscal tributário, que diz respeito ao rateio da arrecadação advinda dessa espécie de receita e seus acréscimos, e o federalismo fiscal patrimonial, que trata do rateio das receitas originárias, que envolvem a exploração do patrimônio público, seja o que advêm da exploração de recursos naturais[2], seja o das receitas dos programas de desestatização ou de fontes semelhantes.

Na Constituição de 1988, e em sua regulamentação, foi construída a seguinte sistemática para o ICMS, inserida dentro do escopo de realização de um verdadeiro federalismo cooperativo no Brasil:

1. Foi atribuída competência aos estados para instituir o ICMS, que é um tributo sobre a circulação de mercadorias, e nele ainda foram incluídas outras incidências anteriormente tributadas pelo sistema de impostos únicos (IUM, IUEE entre outros, que foram extintos em 1988).

2. Não foi atribuída toda a receita do ICMS ao estado de origem, pois isso transformaria os estados menos desenvolvidos em verdadeiros feudos dos estados mais desenvolvidos. Em face da desigualdade existente entre as regiões do país, o Senado Federal (artigo 155, parágrafo 2º, IV, Constituição Federal) editou a Resolução 22/89, na qual foram determinadas as seguintes alíquotas para as operações interestaduais de ICMS, nas quais, como pode ser visto abaixo, foram estabelecidos critérios diferenciados de apropriação da receita a partir da origem das mercadorias:

a) Regra geral: O Estado de origem fica com 12% e o de destino com 5%;

b) Regra dos desiguais: Mercadorias oriundas do Sul e Sudeste (exceto ES) para as demais regiões do país = o Estado de origem fica com 7% e o de destino com 10%

Assim, a regra geral é que nas transações interestaduais a maior parte do ICMS fique no estado de origem, onde está localizado o vendedor (12%), e a menor no estado de destino, onde está localizado o comprador (5%).

Todavia, partindo-se da constatação de que a maior parte da produção brasileira ocorre nos estados das Regiões Sul e Sudeste, excetuado o estado do Espírito Santo, nas vendas que forem realizadas a partir destes para compradores localizados nas Regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste, e incluindo o Estado do Espírito Santo, a regra geral acima é modificada, adotando o que se denomina de regra dos desiguais: o Estado do Sul e do Sudeste (menos o do Espírito Santo) de onde são originadas as mercadorias, ficará com a menor parte, (7%), enquanto que o do destino das mercadorias ficará com a maior parte (10%).

3. Mantendo viva uma legislação do período autoritário, a Lei Complementar 24/75 (artigo 34, parágrafo 8º, ADCT), foi colocado nas mãos de um órgão fazendário, o Confaz, a harmonização do sistema (“regular provisoriamente a matéria”) — porém esse órgão não entendeu muito bem o que quer dizer “harmonização do sistema” e acabou por se tornar um legislador positivo, muitas vezes criando incidências — o que é inconstitucional —, em especial nos primórdios de sua atuação pós-88.

4. Ainda decorrente desse processo de aproveitamento da legislação do período anterior, incorporou-se à legislação democrática que deveria advir com a Constituição de 1988 um contrabando normativo autoritário da Lei Complementar 24/75, que previa a unanimidade das deliberações do Confaz referente às renúncias fiscais[3].

A consequência do descumprimento da regra acima informada seria, de forma cumulativa[4]: a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria e a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido, além da ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.

Desta forma, o que deveria ser a organização de um sistema tributário nacional acabou por se tornar uma colcha de retalhos, com o aproveitamento de diversas normas de um período anterior, que não se coadunava com o espírito democrático e a nova conformação de federalismo fiscal que se pretendia. Afinal, a ideia de federalismo cooperativo não tem nenhuma vinculação com a sistemática impositiva com que eram tratados estados e municípios sob a égide do regime militar que deveria ter se encerrado normativamente com o advento da Constituição de 1988. Porém, como visto, permaneceram resquícios daquele sistema autoritário dentro de um regime democrático, tal como o contrabando normativo autoritário da unanimidade decisória no Confaz.

Será constitucional a exigência de unanimidade pelo Confaz? A pergunta é direta e específica. Não se busca saber se a Lei Complementar foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 — disso não restam dúvidas, até mesmo pelo texto da Carta, que à essa lei faz referência expressa (artigo 34, parágrafo 8º, ADCT). O que se busca saber é se norma constante do artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei Complementar 24/75 é constitucional. O texto é o seguinte: “Art. 2º – Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal. §2º – A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.”

Analisando as incontáveis decisões do STF sobre guerra fiscal do ICMS são encontradas várias deliberações sobre a constitucionalidade da exigência de prévios convênios no âmbito do Confaz para validar a concessão de renúncias fiscais. Porém não foram vislumbrados debates sobre a peculiaridade dessa exigência, que é a da regra de unanimidade.

Observe-se que a exigência de unanimidade não existe nem mesmo para alterar a Constituição. As propostas de emenda constitucional devem ser aprovadas por 3/5 (três quintos) dos votos dos membros do Congresso Nacional. Todo o processo legislativo possui regras de aprovação inferiores a esta proporção de 3/5, sendo a regra geral a de metade mais um dos membros das Casas Legislativas (artigo 47, Constituição Federal). Mesmo a aprovação de Súmulas Vinculantes pelo STF exige a concordância de apenas 2/3 de seus membros (artigo 103-A, caput, Constituição Federal).

Logo, será constitucional esta exigência estabelecida em Lei Complementar? Trata-se da única regra de aprovação unânime existente em todo o sistema político brasileiro!

Já mencionei em outra coluna que um grupo de especialistas do qual faziam parte Paulo de Barros Carvalho, Ives Gandra da Silva Martins, Everardo Maciel e Marco Marrafon recomendou a manutenção da regra da unanimidade nas deliberações do Confaz, arguindo inclusive que sua alteração feriria a Constituição. E que Regis Fernandes de Oliveira trilha caminho distinto, com o qual me alinho, pela não recepção da norma que impõe a unanimidade[5]. Pela lógica da unanimidade, o Confaz se torna o dono do ICMS e não cada Estado individualmente considerado. O Confaz tem um papel de harmonização fiscal em um Estado Democrático de Direito, e não de Coação Fiscal, própria do período em que foi criado. Durante o autoritarismo a regra da unanimidade possuía uma lógica interna ao sistema; durante o período democrático esta norma não pode prosperar, pois não encontra amparo em nenhuma norma constitucional.

Esta exigência de unanimidade do Confaz não é inconstitucional, ela simplesmente não foi recepcionada. A referência efetuada pelo artigo 34, parágrafo 8º do ADCT à Lei Complementar 24/75 realizou a recepção da norma, mas não em sua inteireza. A regra da unanimidade simplesmente não foi recepcionada por falta de norma que a ampare sob a égide da Constituição de 1988. Entendo que o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei Complementar 24/75 não foi recepcionado pela atual Constituição em face do Princípio Federativo e do Princípio Democrático, pois, da forma como se encontra estruturado, é possível a um único Estado da Federação bloquear uma deliberação que seja relevante para o conjunto dos demais entes federados. Isso não está auxiliando ou permitindo o desenvolvimento federativo, ao contrário, está matando a Federação. Nem mesmo uma proposta de Emenda Constitucional que contivesse este tipo de obrigatoriedade poderia ser analisada, por ferir cláusula pétrea de nossa Constituição (artigo 60, parágrafo 4º, I, Constituição Federal).

O STF está analisando a constitucionalidade da LC 24/75 como um todo, até mesmo porque não foi chamado a analisar especificamente a norma do artigo 2º, parágrafo 2º da LC 24/75, que é onde se encontra o problema a ser enfrentado. O ponto central da discórdia não é o sistema de Convênios, mas a exigência de unanimidade do Confaz. Como as ADI que foram propostas pedem a invalidade de normas estaduais que descumpriram o trâmite da LC 24/75, o debate judicial está circunscrito a esta análise, não observando que o problema é pontual — e que este específico ponto não está sendo analisado pelo STF para a aprovação da Súmula Vinculante 69, e reside no artigo 2º, parágrafo 2º da LC 24/75, e não na totalidade da referida lei.

Surpreendentemente veio a lume em 30 de julho o Convênio Confaz 70/2014 no qual são estipuladas as linhas gerais para a concessão de anistia e de remissão dos débitos de ICMS concedidos unilateralmente pelos estados. Observa-se que, por se tratar de uma deliberação de apenas 20 estados, o Convênio 70/14 não contém força normativa. Supõe-se que os demais ainda aguardem a confirmação da contrapartida exigida pelos estados à União para o fim da guerra fiscal. Tais exigências são, dentre outras: a renegociação dos juros e da correção monetária das dívidas dos entes federativos com a União; edição de Resolução, pelo Senado Federal, estabelecendo a redução das alíquotas do ICMS nas operações interestaduais; promulgação de Emenda Constitucional visando modificar a alíquota do ICMS nas operações de vendas pela internet a consumidor final, a fim de que seja aplicada a mesma fórmula das operações interestaduais; e ainda, a criação de Fundos Financeiros, considerados como transferências obrigatórias não sujeitas a contingenciamento, no valor de R$ 55 bilhões pelos próximos cinco anos a serem desembolsados pela União aos Estados; e do afastamento das exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal quanto à esta remissão e anistia, dentre outras exigências.

Certamente este Convênio decorre do acirramento dos ânimos no Confaz, esgarçando ainda mais o frágil tecido federativo atualmente existente.

Ao ler estas exigências tive a impressão de estar defronte de um pedido de resgate de reféns ao invés de uma negociação entre entes federados. Lembrei-me de um velho ditado que diz, que quando o mar briga com as rochas, quem sofre são os mariscos. Neste caso, o marisco, ou o refém, são os contribuintes — todos nós. Ou a União paga o que os estados exigem ou os reféns/contribuintes serão executados/cobrados.

Colocado o problema sob o ponto de vista do contribuinte nesta disputa interfederativa, é melhor que o STF analise urgentemente a exigência de votações unânimes pelo Confaz. O preço do resgate poderá ser menor.


[1] Regis Fernandes de Oliveira, Curso de direito financeiro cit., p. 42.
[2] Para este assunto ver Royalties do Petróleo, Minério e Energia – Aspectos constitucionais, financeiros e tributários, de Fernando Facury Scaff (SP: RT, 2014).
[3] Conforme o texto da norma: isenções, redução da base de cálculo; devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, ao responsável ou a terceiros; a concessão de créditos presumidos; e a concessão de quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus fiscal. Arts 1º e 2º, LC 24/75
[4] Art. 8º, LC 24/75
[5] Regis Fernandes de Oliveira, Exigência da unanimidade na concessão e estímulos fiscais e a constitucionalidade da LC 24/75, (Sanções para quem descumpre a glosa de créditos). In: Congresso Nacional de Estudos Tributários – Sistema Tributário Nacional e a Estabilidade da Federação brasileira, Alcides Jorge Costa et all. SP: Noeses, 2012, págs. 848/849

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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