Constituição e Poder

Jurista deve entender teoria dos signos para combater totalitarismo

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

11 de agosto de 2014, 15h01

Um dos pilares do Estado de Direito é a garantia das liberdades civis, bandeira do constitucionalismo moderno que se coloca na linha de frente no combate a formas absolutistas de governo. Liberdade implica em responsabilidade e preserva o direito de resistência contra formas autoritárias.

No entanto, a banalização das interceptações telefônicas e da violação das comunicações eletrônicas nas investigações policiais, muito facilitada pelo expressivo desenvolvimento tecnológico atual, tem aumentado consideravelmente os quadros paranoicos que produzem sentido na lógica do investigador, aniquilando as chances de defesa. Pior, se tal controle deveria ser o último recurso, tem se tornado o primeiro, promovendo sucessivas violações dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade.

Esse totalitarismo digital condena os cidadãos a viverem em um Estado de não-direito. Tudo é ou pode ser controlado — basta você se insurgir contra a ordem instituída, seja ela qual for, e será incriminado.

Para agravar a situação, reina o despreparo para lidar com as manifestações discursivas que deveriam ser interpretadas/decifradas. Palavras soltas, sem o contexto: a que se ligam? Diretamente a um dado da realidade? Não. Já superamos a semântica realista e a tese da verdade como correspondência ao fato (adequatio intellectus ad res — Aristóteles). Também não mais se sustenta a racionalista tese da verdade como elucidação da consciência (Ockham/Descartes). O laço de produção de sentido é muito mais profundo e complexo.

Uma palavra ou frase pode significar algo diametralmente oposto ao que foi falado. E os atores jurídicos precisam ter conhecimento suficiente das noções de linguística e de filosofia da linguagem na interpretação dos casos jurídicos (envolvendo o direito, os fatos e as provas produzidas em uma complexa unidade de compreensão). O primeiro passo é entender as contribuições de Ferdinand de Sausurre, em especial sua teoria do signo.

Saussure e a linguística sincrônica
Em seu curso de linguística geral, ministrado entre 1906 e 1911 na Universidade de Genebra e publicado posteriormente com base nas anotações de seus alunos[1], Ferdinand de Saussure promove uma importante inovação ao notar que os estudos anteriores da matéria focavam a evolução histórica e as análises comparatísticas entre as línguas, com objeto mais próximo da filologia. Faltava um estudo da língua enraizado no tempo de cada sociedade, lacuna que ele se propôs a preencher através do que chamou de linguística sincrônica.

O objeto dessa nova ciência — a língua — é compreendida como “um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”[2].

Nessa perspectiva, língua e linguagem não se confundem, pois esta é multiforme e heterogênea, possui um domínio individual e social e não se classifica em nenhuma categoria de fatos humanos à medida que depende de aspectos físicos, psicológicos e psíquicos. Já a língua é a parte social da linguagem, manifestação exterior independente do indivíduo, que existe em razão do pacto dos membros da comunidade, o que lhe daria a homogeneidade para que pudesse formar um todo e orientar a classificação das condições de fala (parole).

A língua (langue) forma um sistema normativo em que uns signos ganham sentido em relação aos demais  que constituem essa totalidade. Opera como uma infraestrutura social, uma rede de conexões e regras que permite os atos de fala, garantindo as convenções previamente estabelecidas e a lógica que possibilita a comunicação. Já a fala é o ato linguístico individual, concreto, historicamente localizado[3] e mediado por aspectos hermenêuticos e psicanalíticos.   

Saussure faz sua reflexão a partir de experiências do dia a dia, entre elas o jogo (jogar e comunicar-se através de língua historicamente dada envolve interação com outras pessoas). O exemplo do xadrez é elucidativo por mostrar que a essência do jogo se revela naquilo que não se observa de imediato: as regras que permitem certas jogadas e que se tornam condição de possibilidade do jogar, da mesma maneira que a língua é condição de possibilidade do comunicar-se.  A preponderância do “regulamento do jogo” permite também que uma peça seja substituída por qualquer outro objeto, desde que haja convenção de que o objeto a representa[4].

Ou seja, não importa o material, o objeto da peça. O sentido está na função que ela exerce no jogo: a dama não é a peça, mas uma função. No limite, poderíamos jogar com uma pedra ou tampa de garrafa no lugar da peça que a represente, desde que antes fizéssemos o acordo de que ela desempenha a mesma função.

Da mesma maneira, uma vez retirada a ligação entre sentido e objeto, é possível alterar o significado de uma frase com a troca de apenas uma palavra cuja pertinência linguística seja diversa da palavra substituída. Isto faz com que, seguindo as reflexões de Rodolfo Ilari, a descrição de um sistema linguístico dependa, acima de tudo, da análise de funcionalidade e pertinência, o que traz as seguintes implicações:

i) a necessidade de distinguir entre diferenças de pronúncias, (por exemplo diferenças físicas e sotaque como em “mulé” ou “mulher”), das diferenças de função (como ocorre entre os fonemas "f" e "v" nas palavras “enfiar” e “enviar”) no momento de levantar a unidade fonológica de uma língua;

ii) a centralidade da noção de pertinência faz com que se exclua como não lingüística uma série de informações que tenham existência perceptiva, mas que não possuam relevância funcional ;

iii) serão objetos da análise apenas os elementos considerados pertinentes[5].

A teoria do signo
Saussure rompe com teorias marcadas pela iconicidade, as quais supunham que pudesse haver ideias completamente feitas que fossem preexistentes às palavras e que os conceitos (palavras) fossem etiquetas coladas às coisas, aos objetos. Para ele, a comunicação se realiza por meio de uma unidade linguística básica, o signo, entendido como uma entidade de duas faces que une um nome (significado) à sua imagem acústica (significante).

Segundo o mestre de Genebra, a imagem acústica, “não é som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la material é somente nesse sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato”.[6]  Ou seja, ela forma o conteúdo psiquicamente impresso (significante) que dará vida/matéria ao conceito (significado).

Saussure elenca, ainda, os princípios que levam às características do signo, quais sejam: i) arbitrariedade, que faz com que o laço entre o significante e o significado seja convenção, não possuindo caráter necessário, nem demandando motivação, ainda que seja admissível alguma ordem dada pela intervenção humana, como nos casos de substantivos e seus correspondentes[7]; e ii) a linearidade, pois se o signo possui uma natureza auditiva, o significante desenvolve-se no tempo e retém suas características.

Ainda, a imutabilidade do signo representa uma certa transcendência da língua, fazendo com que escape à vontade humana[8], fixando no tempo a convenção outrora arbitrária[9] em oposição à sua mutabilidade temporal, pois é admissível que, mesmo fixado, em razão de sua continuidade, ele possa sofrer alterações com o desenrolar dos processos históricos.

Essas características permitem duas reflexões importantes aos intérpretes do direito. A primeira, relacionada à arbitrariedade, reside no caráter convencional do significante que, como já demonstrado, não depende da ligação material com o objeto, mas antes com a sua impressão psíquica, rompendo com a clássica teoria da verdade como correspondência ao fato. Já a segunda, realçada pela imutabilidade do signo, indica que apesar do caráter convencional, o significante está além da vontade individual, é transcendente e depende da língua como dado coletivo para produzir sentido.

Isso significa que a convencionalidade não implica em relativismo lingüístico. Não cabe ao intérprete atribuir qualquer sentido ao conceito — ou seja, não é admissível juridicamente dizer, individualmente e arbitrariamente, qualquer coisa sobre o conceito. Ademais, os fatores de produção de sentido são complexos, dependem do contexto, da intencionalidade da fala, dos recursos lingüísticos, como a ironia, por exemplo. Assim, uma pedra no sapato pode significar somente uma pedra no sapato.

Certamente a linguística de Saussure é bem mais profunda, basta pensar na distinção que ele faz entre as relações de combinação e de seleção entre eixos da linguagem.  Contudo, considerando as problemas relacionados ao Direito e à sua interpretação, desde já é possível perguntar: teria o policial investigador condições de decifrar todas essas variáveis? E os promotores e magistrados? Estamos preparando os estudantes de Direito para compreender a complexidade dessas questões? Inclino-me a pensar que a resposta seja negativa.

Enfim, já passou da hora dos juristas compreenderem a teoria do signo e os ensinamentos da filosofia da linguagem. Sem eles, quadros mentais paranoicos passam imperceptíveis e rumamos ao totalitarismo inquisitorial/policial, no qual todos são culpados pelas palavras. O Estado de Direito precisa de mais Saussure e dos filósofos da linguagem. As liberdades civis agradecem.

 


[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral.  25 ed. , trad.  Antonio Chelini et all. São Paulo: Cultrix, 2003.

[2] Idem, p. 17.

[3] Cf. ILARI, Rodolfo. O estruturalismo lingüístico: alguns caminhos. In: MUSSALIN, Fernanda, BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos.  Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004, p. 57 e ss.

[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso…, p. 128.

[5] ILARI, Rodolfo. O estruturalismo linguistico…, p. 60 e ss.

[6] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso…, p. 80.

[7] Cf. CARMELO, Luís. Semiótica: uma introdução. Mem Martins-PT: Publicações Europa-America, 2003, p. 143. (col. Biblioteca Universitária, n. 82).

[8] Idem.

[9] STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 127.

Autores

  • é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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