Direito Comparado

Entra em vigor a nova lei geral do trabalho em funções públicas de Portugal

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

6 de agosto de 2014, 8h00

Spacca
Portugal, desde o início das Grandes Navegações, formou um extenso império colonial, formado por longínquas e diferentes colônias em África, Ásia e, após 1500, na América. Na base desse império, encontravam-se a Igreja, as Forças Armadas portuguesas e a burocracia civil, que, em muitos lugares, terminavam por se confundir. O jesuíta cuidava das escolas e outras ordens religiosas assumiam funções assistenciais e sanitárias. O militar, à falta de governança civil, administrava. E o burocrata, muita vez, se prestava a defender sua província ou seu entreposto, pegando em armas e assumindo funções militares.

No início do século XX, Portugal resistira às disputas imperialistas entre britânicos, franceses, alemães, belgas e italianos, mantendo suas possessões em África e os enclaves asiáticos no Timor, em Goa, Gamão e Diu, na Índia, e em Macau, na China. Com o regicídio de 1908, quando o rei D. Carlos e seu filho o príncipe real D. Luís foram assassinados no Terreiro do Paço, em Lisboa, as bases da monarquia portuguesa balançaram. Em 1910, um golpe civil-militar derrubou a dinastia Bragança e o rei D. Manuel II exilou-se.

Os anos iniciais de implantação da república foram turbulentos, seja pela tentativa de restauração monárquica, seja pela grave crise econômica em que o país foi lançado nos anos 1920. Sob um regime ditatorial após 1926, Portugal continuou em situação desastrosa. O presidente general Oscar Carmona, em 1928, convidou para o cargo de ministro das Finanças um obscuro e jovem professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, de origens camponesas e que obtivera notas altíssimas em sua vida acadêmica. Seu nome era Antônio de Oliveira Salazar. E, em sua posse, proferiu a célebre frase: “Sei muito bem o que quero e para onde vou”.

Com o tempo, Salazar conquistou o poder de facto e governo o país, inicialmente como ministro das Finanças e depois como presidente do Conselho de Ministros, até se afastar do poder em 1968, em decorrência de um acidente, que o deixou incapaz. Sucedê-lo coube a Marcello José das Neves Alves Caetano, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que governou Portugal até a Revolução dos Cravos, ocorrida em 1974, liderada pelo capitão Salgueiro Maia.

Para além da ditadura, da violência contra os dissidentes políticos e da manutenção do império colonial, denominado posteriormente de Ultramar Português, de 1928 a 1974, o regime salazarista teve uma marca que o distinguiu de outras ditaduras nascidas nos trágicos anos 1930 na Europa, como o nazismo, o fascismo e o franquismo. Essa distinção era baseada na circunstância de que o regime buscou nas universidades de Lisboa e de Coimbra os melhores quadros acadêmicos para governar o país, seguindo o modelo e o exemplo de seu próprio líder, um brilhante e precoce catedrático. Nomes até hoje muito respeitados no Direito brasileiro como João Antunes Varela, Adriano Vaz Serra e Inocêncio Galvão Teles, Mario Julio de Almeida Costa, além do próprio Marcelo Caetano, ocuparam altas posições no Governo português, como ministérios, comissões legislativas e presidência de órgãos públicos.

Apesar de se viver em uma ditadura, esse espírito acadêmico permitiu que se formasse uma geração de sucessores a esses reis-filósofos sem que a filiação ideológica fosse impeditiva de sua continuidade na academia. Como resultado disso hoje convivem — ou até pouco tempo conviviam — na universidade portuguesa nomes que, na juventude, filiaram-se a correntes ideológicas absolutamente antípodas como Marcelo Rebelo de Souza, Jorge Miranda, Vital Moreira e J. J. Gomes Canotilho, para se referir apenas a alguns desses nomes. Evidentemente que muito tombaram pelo caminho, com suas vidas ceifadas sob a tortura do regime ou sob as armas dos guerrilheiros nas Guerras Coloniais dos anos 1960-1970.

Marcelo Caetano, filho de um sargento da Cavalaria da Guarda Fiscal, notabilizou-se como um dos grandes nomes — de todos os tempos — do Direito Administrativo. Seu Manual de Direito Administrativo, em sucessivas edições, é até aos dias de hoje uma referência no tema para portugueses e brasileiros.

A tradição do Direito Administrativo português, herdada de seu passado imperial e mantida durante o longo século salazarista, foi muito alterada com o advento da Constituição de 1976 e suas sucessivas emendas de revisão.

Especificamente no que se refere aos servidores públicos, a Constituição de 1976, criada em um ambiente de forte inspiração socialista, em seu artigo 269o, cuidou do “regime da função pública”, segundo o qual “no exercício das suas funções, os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público, tal como é definido, nos termos da lei, pelos órgãos competentes da Administração”. O tratamento dado aos servidores públicos é o de “trabalhadores da função pública”, uma linguagem bem diferente da usada no Brasil e que, de certo modo, exibe um nível de precariedade dos vínculos entre esses trabalhadores e os órgãos estatais que não tem equivalência no Brasil.

Em agosto de 2014, entra em vigor em Portugal a Lei 35/2014, de 20 de junho deste ano, que altera e consolida as normas sobre os trabalhadores da função pública. Trata-se da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, um enorme diploma legislativo com 44 artigos e um anexo com 406 artigos.[1] Aos estudiosos do Direito Administrativo Comparado é um belo objeto de pesquisa, especialmente em uma área que, no Brasil, sempre largamente atingida por emendas constitucionais nos anos 1990 e, na última década, por decisões judiciais de enorme impacto.

A nova lei não foi aprovada sem alguma oposição. Os partidos de esquerda, como o Partido Socialista, o Partido Comunista, o Bloco de Esquerda e os Verdes, a ela se opuseram e rejeitaram-na na votação da Assembleia da República. A Lei Geral Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas é o produto da ação legislativa da coalização de centro-direita que ora governa Portugal, formada pelo Partido Social Democrata e pelo Partido do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP).

Nos próximos parágrafos, explorar-se-ão algumas das mudanças ou das consolidações trazidas pela nova lei geral portuguesa, sem qualquer pretensão de exaurir o tema e sim de mostrar seus pontos mais singulares.

O regime de trabalho dos trabalhadores na função pública aumentou para 40 horas semanais, com 8 horas diárias (artigo 105o). Reconheceram-se expressamente modelos de trabalho alternativos como o horário flexível, definido como é “o que permite ao trabalhador de um serviço gerir os seus tempos de trabalho, escolhendo as horas de entrada e de saída” (artigo 111o). Regulou-se ainda a possibilidade de teletrabalho, “que pode ser determinada pelo empregador mediante requerimento do trabalhador” (artigo 69o).

Outro ponto de interesse é o tratamento da greve e do lock-out, este último expressamente proibido. A greve é reconhecida como “um direito dos trabalhadores com vínculo de emprego público” (artigo 394o, item 1). Alguns setores são declarados como destinados à “satisfação de necessidades sociais impreteríveis”, ao exemplo da segurança pública, dos Correios e das telecomunicações, dos serviços médicos, hospitalares e medicamentosos, dos serviços de educação, de energia e minas, do abastecimento de combustíveis, de bombeiros, de transporte de pessoas, animais e gêneros alimentares deterioráveis e de bens essenciais à economia nacional, além do transporte e segurança de valores monetários (artigo 397o). Nesta hipótese, devem os trabalhadores assegurar formas de mantença de padrões mínimos de atendimento ao público, por meio de convenção coletiva de trabalho ou por meio de negociação ad hoc. À falta de acordo, no décimo-terceiro dia posterior ao aviso prévio de greve, a matéria será remetida a um colegiado arbitral (artigo 398o).

Curiosamente, a lei portuguesa trata do lock-out, uma prática associada geralmente ao universo das empresas privadas. Segundo o artigo 406o da Lei Geral, “considera-se lock-out qualquer decisão unilateral do empregador público que se traduza na paralisação total ou parcial do órgão ou serviço ou na interdição do acesso aos locais de trabalho a alguns ou à totalidade dos trabalhadores”, bem assim a “recusa em fornecer trabalho, condições e instrumentos de trabalho” impedindo a continuidade dos serviços.

No capítulo relativo ao poder disciplinar, que compreende os artigos 176o a 240o, encontram-se regras sobre:

a) O prazo de 1 ano para exercício da pretensão punitiva da Administração, salvo quando o fato também se constituir em infração penal, hipótese em que se sujeitará aos prazos especiais da lei penal. O procedimento disciplinar deve ser instaurado em até 60 dias, contados do conhecimento da infração por qualquer superior hierárquico, sob pena de “prescrição” (melhor seria de decadência), conforme o artigo 178o.

b) As penas administrativas são capituladas em repreensão escrita, multa, suspensão e despedimento disciplinar ou demissão (artigo 180o).

c) O processo disciplinar tem natureza secreta até que seja feita a acusação, “podendo, contudo, ser facultado ao trabalhador, a seu requerimento, para exame, sob condição de não divulgar o que dele conste”, embora seja possível expedir certidões para a defesa de “interesses legalmente protegidos e em face de requerimento” próprio (artigo 200o).

d) A constituição de advogado é facultativa (artigo 202o), podendo ser o processo retirado pelo advogado, nos termos das regras do Código de Processo civil (artigo 217o).

e) Após as fases de acusação e de defesa, o instrutor, autoridade que rege o procedimento, no prazo de cinco dias, deve elaborar um “relatório final completo e conciso”, no qual são narrados os elementos fundamentais do processo, com a proposta de julgamento (artigo 219o). O processo será decidido pela autoridade superior (artigo 220o) e dela caberá recurso hierárquico (artigo 225o).

A consolidação legislativa portuguesa possui evidentemente inúmeros pontos de contato com a realidade brasileira. No entanto, é perceptível a elevação dos níveis de precarização do serviço público em Portugal. As causas são antigas e conhecidas: a) crise demográfica e envelhecimento da população; b) desequilíbrio atuarial e déficit previdenciário; c) excesso ou superposição de órgãos públicos. O problema é que não se pode imaginar a realidade brasileira sem se contemplar os riscos de uma precarização da burocracia estatal. Ao se olhar para o lado, o exemplo dessa precarização tem sido comprovadamente maléfico para a solidez das instituições políticas (e da própria democracia) de muitos de nossos vizinhos latino-americanos, cujos servidores públicos, destituídos de estabilidade, podem ser substituídos em massa a cada troca de guarda nos palácios presidenciais. Outro exercício interessante é o de olhar para o passado e ver como o serviço público foi utilizado para fins idênticos e de como isso fragilizou historicamente a democracia no Brasil.

A lei portuguesa é, de fato, um belo campo de estudos comparatistas e, mais ainda, de reflexão sobre o futuro do serviço público no Brasil.


[1] A íntegra da lei está disponível aqui: https://dre.pt/pdf1sdip/2014/06/11700/0322003304.pdf. Acesso em 5.8-2014.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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